A desconformidade constitucional do aforismo in dubio pro societate como fundamento para submissão do acusado da prática de crime doloso contra a vida a julgamento perante o  Tribunal do Júri    

08/03/2019

 

Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont

O procedimento que envolve a apuração da prática de crime doloso contra a vida, como se sabe, é marcado pela existência de duas fases, sendo, a primeira, juízo de admissibilidade da acusação, também chamada iudicium accusationis – e que se assemelha ao procedimento ordinário previsto na legislação processual brasileira. Ao final desta fase, em sendo o acusado pronunciado, ele é encaminhando para a segunda parte do procedimento (iudicium causae), sendo, então, remetido a julgamento perante o Tribunal do Júri.

A doutrina faz um sem número de críticas acerca de vários aspectos do procedimento do júri, mas, neste momento, busca-se chamar atenção aos fundamentos utilizados na decisão de pronúncia, notadamente o princípio (sic) do in dubio pro societate.

A decisão de pronúncia constitui a admissibilidade da acusação nos crimes no procedimento do júri, conduzindo o acusado ao julgamento pelos seus pares.

Para alguns autores como Capez, (CAPEZ, 2010), a decisão de pronúncia não passa de um mero juízo de admissibilidade da imputação, que serve, tão somente, para encaminhar o réu a julgamento perante o júri popular.

Tal posicionamento, contudo, é uma interpretação simplista do artigo 413 do Código de Processo Penal e realizada fora das garantias processuais penais insculpidas pela Constituição Federal.

Segundo o art. 413 do Código de Processo Penal, “o juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação.

Não obstante a maior parte da doutrina – representada por Júlio Mirabete, Fernando Capez - e da jurisprudência dos Tribunais Superiores entenda que a decisão de pronúncia constitui juízo superficial de admissibilidade da acusação, como já dito anteriormente, e que, para que se sustente, não é necessária prova incontroversa, mas, apenas a existência perfunctória de indícios autoria e prova da materialidade a respaldar as incriminações contidas na denúncia, é importante consignar que o legislador, ao estabelecer que deve haver, para a pronúncia do réu, prova de materialidade e “indícios suficientes” de autoria, não utilizou sem motivo o adjetivo suficientes.

A esse respeito, parece mais coerente a doutrina segundo a qual os indícios de autoria não devem ser meros indícios, mas indícios coerentes, fortes, que levem o juiz a remeter o réu a julgamento a júri apenas se ele próprio fosse condená-lo, caso tivesse competência para tanto.

Nesse mesmo sentido, Vicente Greco Filho entende tal decisão

atua como uma garantia da liberdade, evitando que alguém seja condenado e não o mereça. No procedimento dos crimes de competência do juiz singular, a garantia da liberdade encontra-se na exigência da fundamentação da sentença e na possibilidade de recurso a um tribunal revisor. No procedimento do júri, em virtude da soberania e do julgamento por convicção íntima sem fundamentação, a garantia da liberdade somente pode estar na decisão de pronúncia. (p. 118-119)

Para referido autor, malgrado muitos entendam ser a função da decisão de pronúncia remeter o réu a júri, a real função da pronúncia é exatamente o oposto. Segundo ele, a função do juiz sumariante é de evitar que um inocente possa ser condenado, por meio de julgamento soberano, em uma decisão não fundamentada, fundada na íntima convicção, podendo ser expressão de vingança pessoal ou social. (GRECO FILHO, 1999. P. 118)

Destaca, ainda, que é necessário o juízo de admissibilidade no procedimento do júri, haja vista que seu veredito

é qualificado pela soberania, que se consubstancia em sua irreformabilidade em determinadas circunstância, e tendo em vista a ausência de fundamentação da decisão, a função, às vezes esquecida, da pronúncia é a de impedir que um inocente seja submetido aos riscos do julgamento social irrestrito e incensurável. (GRECO FILHO, 1999, p. 118)

Sérgio Pitombo, no artigo Pronúncia e o In dubio pro societate, faz ponderações bastante pertinentes sobre o tema. Em contraponto aos conceitos lançados por Mirabete e Capez, Pitombo faz interessante diferenciação entre os termos “suspeita”, e “indícios” de autoria. Segundo o autor, tem-se feito confusão entre os conceitos das palavras supracitadas. Para Pitombo, “suspeita desponta na investigação e na instrução preliminar, ou preparatória; seja inquérito policial, seja outra forma, aceita no Direito brasileiro”.

Segue afirmando que

O suspeito, sobre o qual se reuniu prova da autoria da infração, tem que ser indiciado. Já aquele que, contra si, possui frágeis indícios, ou outro meio de prova esgarçado, não pode ser indiciado. Mantém-se ele como é: suspeito.

A mera suspeita não vai além da conjectura, fundada em entendimento desfavorável a respeito de alguém. As suspeitas por si sós não são mais que sombras; não possuem estrutura, para dar corpo à prova da autoria. Nada aproveitam para a instrução criminal; apenas importam a simples investigação policial.[1]

Para o autor, “suspeitar é supondo, tachar de duvidosa a pessoa, a coisa ou o fato”, impondo-se diferenciar a figura do suspeito da do indiciado. As figuras deste e daquele diferem-se, havendo, para tanto, dois juízos no que tange à autoria: o do possível e do provável.

Assim sendo, indiciado é aquele cujas provas colhidas nos elementos de informação sejam suficientes para acusá-lo em juízo perpetrando-se ação penal ante a existência consideravelmente evidenciada de autoria e materialidade delitivas.

Por isso mesmo, a pronúncia do réu acusado de crime doloso contra a vida não pode, nunca, basear-se em suspeita, pois esta só tem espaço na fase administrativa da persecução penal. (PITOMBO, 2011).

Caso fosse possível uma decisão de pronúncia com base em “suspeitas”, o legislador assim o teria positivado no artigo 413 do Código de Processo Penal. Mas, não sem motivos, o legislador requereu suficientes indícios, vale dizer, é necessário um juízo de probabilidade e não de possibilidade.

Walfredo Cunha Campos, no artigo “A falácia do IN DUBIO PRO SOCIETATE na decisão de pronúncia”, faz ponderações pertinentes sobre o tema, ao afirmar que

para se evitar constrangimentos, humilhações e vexames inúteis (para o acusado principalmente, mas também para a comunidade), em processos que não tenham provas ou sejam elas raquíticas, deve o juiz atuar como um filtro selecionador de julgamentos pelo júri, só remetendo a ele casos com prova séria de autoria e materialidade, barrando as demais com a impronúncia. (CAMPOS, 2006)

Para Campos, o juiz técnico deve exercer verdadeiramente o controle que a lei lhe dá, na fase do iudicium accusationis, da seguinte maneira: ao ler os autos e entender, com base nas provas produzidas, colocando-se na situação hipotética de julgador do caso, que o réu deve ser condenado, deve remetê-lo ao Júri. 

Se, entretanto, o julgador sumariante entender que de forma alguma condenaria o acusado em base nas provas constantes nos autos, seria o caso de impronunciá-lo. Isso porque o Tribunal Popular não se trata somente de instrumento de participação do cidadão na justiça, mas tem sua natureza relacionada à garantia individual do réu acusado da prática de crime doloso contra a vida.

Não há outra razão - senão a de dar aos jurados a chance de condenar um inocente - para remetê-lo a julgamento perante o conselho de Sentença em processos cuja prova seja de conteúdo débil quando o juiz togado o absolveria de plano ou, no mínimo, impronunciaria.

Em outras palavras: no mesmo momento processual, o cidadão que não tem o direito fundamental – porquanto insculpido no artigo 5º da Constituição Federal - de ser julgado pelo júri popular deve ser absolvido caso haja dúvidas sobre a sua participação no delito. O acusado da prática de crime doloso contra a vida, por sua vez, deve ser remetido ao Júri, pois a dúvida, neste caso, de acordo com a estagnada doutrina processual sobre o tema, a dúvida resolve-se “a favor” da sociedade – e se a sociedade tem interesse em condenar alguém sem provas bastantes da prática do crime, tem-se que rever a sociedade.

Nesse sentido, César Peres faz uma interessante suposição, em relação a diferentes réus de procedimentos diversos:

Numa vara única, três denúncias são recebidas na mesma data. Uma por lesão corporal gravíssima (reclusão de 2 a 8 anos), outra por latrocínio (reclusão de 20 a 30 anos) e a última por homicídio simples (reclusão de 6 a 20 anos). O primeiro crime tem a pena menor do que a do crime doloso contra a vida; O segundo tem a maior. Terminada a instrução, são os autos conclusos ao magistrado para sentença. Nos três casos, restam dúvidas quanto a serem os réus culpados ou inocentes. O juiz, então, diante daquele ensinamento repisado, deve absolver os acusados pelos dois primeiros crimes e enviar o último a Júri, porque não pode absolvê-lo, em face de ter a “garantia” sobre a qual já se falou. Ora, melhor seria não tivesse então a referida franquia: poderia ser absolvido desde logo. Quer dizer, a elevação do Júri à condição de direito fundamental, impede, segundo a miopia que se multiplica, seja, de logo, na fase da pronúncia, o cidadão poupado do strepitus fori, como aconteceria se para o crime cometido não houvesse aquele privilégio. (PERES, 2005)

O constituinte pretendeu que o Júri fosse algo a mais, um obstáculo que o Estado – pelo órgão acusador – deve transpor para condenar, tratando-se crime doloso contra a vida. Para isso, existe a decisão de pronúncia, prolatada por juiz togado, que visa a impedir que um inocente seja julgado em julgamento soberano – soberania dos vereditos – que independe de fundamentação, haja vista que os julgadores decidem por íntima convicção (PERES, 2005).

Sobre o tema, importante mencionar as sempre pertinentes palavras de Aury Lopes Jr.:

bastante problemático é o famigerado “in dubio pro societate”. Segundo a doutrina tradicional, neste momento decisório deve o juiz guiar-se pelo “interesse da sociedade” em ver o réu submetido ao tribunal do júri, de modo que, havendo dúvida sobre sua responsabilidade penal, deve ele ser pronunciado...Pois bem, discordamos desse pacífico entendimento. Questionamos, inicialmente, qual é a base constitucional do “in dubio pro societate”? Nenhuma. Não existe. Por maior que seja o esforço discursivo em torno da “soberania do júri”, tal princípio não consegue dar conta dessa missão. Não há como aceitar tal expansão da “soberania” a ponto de negar a presunção constitucional de inocência. A soberania diz respeito a competência e limites ao poder de revisar as decisões do júri. Nada tem a ver com carga probatória. Não se pode admitir que os juízes pactuem com acusações infundadas, escondendo-se atrás de um princípio não recepcionado pela Constituição, para, burocraticamente, pronunciar réus, enviando-lhes para o tribunal do júri e desconsiderando o imenso risco que representa o julgamento nesse complexo ritual judiciário. Também é equivocado afirmar-se que, se não fosse assim, a pronúncia já seria a “condenação” do réu. A pronúncia é um juízo de probabilidade, não definitivo, até porque, após ela, quem efetivamente julgará são os leigos, ou seja, é outro julgamento a partir de outros elementos essencialmente aqueles trazidos no debate em plenário. Portanto, a pronúncia não vincula o julgamento, e deve o juiz evitar o imenso risco de submeter alguém ao júri, quando não houver elementos probatórios suficientes (verossimilhança) de autoria e materialidade. A dúvida razoável não pode conduzir à pronúncia. Nessa linha, vale o in dubio pro reo para absolver sumariamente o réu que tiver agido ao abrigo da legítima defesa (não apenas quando a excludente for “estreme de dúvidas”, mas quando for verossímil a ponto de gerar a dúvida razoável); impronunciar réus em que a autoria não esteja razoavelmente demonstrada; desclassificar para crime culposo as abusivas acusações por homicídio doloso (não eventual) em acidentes de trânsito, onde o acusador não fez prova robusta da presença do elemento subjetivo (LOPES JR., 2017, p. 795/796).

Ensina, ainda, o autor que, “além de não existir a mínima base constitucional para o in dubio pro societate (quando da decisão de pronúncia), ele é incompatível com a estrutura das cargas probatórias definida pela presunção de inocência” (LOPES JR., 2017, p. 359).

Por fim, não se deve deixar de ter em mente os severos efeitos extrapenais decorrentes de decisões com frágil fundamentação, que acarretam restrições severas a direitos fundamentais do acusado. Sobre o tema, Ana Cláudia Pinho explica que

acusações injustificadas, com base no in dubio pro societate, possuem um efeito criminógeno espetacular. Além de submeter o imputado ao constrangimento natural do processo penal, ainda o expõe a outras conseqüências mais drásticas, verdadeiras penas processuais, como v.g., as prisões cautelares e os assédios da mídia sensasionalista que se alimenta de escândalos e muitas vezes sequer espera a formalização da acusação, promovendo uma execração pública do investigado antes mesmo de existir processo (PINHO, 2001).

Em razão dessa superexposição que o processo penal – sobretudo o injusto, lastreado em suspeitas lacônicas acerca da autoria e materialidade – causa ao réu, ocorre o que a

Criminologia moderna chama de labeling approach (teoria do etiquetamento). Em razão de acusações sem justa causa, o indivíduo sofre todas as agruras do processo penal, todas as humilhações e, não raro, corre o risco de ser segregado provisoriamente para, após encerrada a instrução, vir a ser absolvido por falta de provas. Essa é a conseqüência perniciosa da aplicação do in dubio pro societate (PINHO, 2001).

Assim sendo, o in dubio pro societate deve ser banido definitivamente do Tribunal do Júri, ou de qualquer outro momento no qual se lhe invoque a aplicação (recebimento da renúncia, revisão criminal, por exemplo), haja vista que vai de encontro à Constituição Federal e aos Tratados de Declarações de Direitos Humanos do qual o Brasil é signatário.

 

 

 

Notas e Referências

CAMPOS, Walfredo Cunha. A falácia do in dubio pro societate na decisão de pronúncia. Boletim IBCCrim. São Paulo, v. 14, n. 164, p. 18, jul. 2006.

CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal: de acordo com as leis n. 1.343/2006 (Lei de Drogas) e 11.449/2007 (Prisão em Flagrante). 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

GRECO FILHO, Vicente. Tribunal do júri: estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. Coordenação de Rogério Lauria Tucci.

PERES, César. Sentença de pronúncia: “in dubio pro societate? Disponível em www.ibccrim.org.br.

PINHO, Ana Cláudia Bastos de. In Dubio pro Societate x Processo Penal Garantista. Disponível na internet: www.direitocriminal.com.br. Acesso em 21.8.2014.

LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

MORAES PITOMBO, Sérgio Marcos de. Pronúncia e in dubio pro societate. Brasília: Boletim dos Procuradores da República, n.º 45, janeiro de 2002.

[1] MORAES PITOMBO, Sérgio Marcos de. Pronúncia e in dubio pro societate. Brasília: Boletim dos Procuradores da República, n.º 45, janeiro de 2002.

 

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