A DERROTATIBILIDADE DA NORMA E A PONDERAÇÃO DE INTERESSES EM TEMPOS DE PANDEMIA

12/09/2020

O presente artigo tem como objetivo fazer um breve estudo sobre a aplicação do princípio da derrotatibilidade da norma e a técnica de ponderação de interesses no âmbito da Administração Pública.

É verdade que a Administração Pública, diferentemente do particular, deve praticar seus atos em consonância com o que estiver previamente estabelecido em lei, face ao respeito ao princípio da legalidade estrita, “que consiste na ideia de que todo e qualquer ato que emane da Administração Pública deve ter amparo legal, sob pena de ilegalidade. Nesta trilha são os ensinamentos do saudoso administrativista Hely Lopes Meireles, ao aduzir que:

A legalidade, como princípio da administração, significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil, criminal, conforme o caso[1]. (Grifos).

Destarte, em todo e qualquer ato administrativo o agente público deve obediência ao princípio da legalidade administrativa, em observância à determinação contida no caput do artigo 37 da Constituição de 1988. Todavia, em certos casos em que a aplicação da norma se tornar injusta, o texto legal, apesar de válido, deve ser afastado. No entanto, é necessária a apresentação de elementos que justificam o afastamento da norma, pois, por se tratar de excepcionalidade é indispensável a apresentação da devida motivação.

Também na aplicação das normas no âmbito do direito público pode ocorrer um conflito normativo, neste caso, o intérprete pode lançar mão da técnica de ponderação de interesses para avaliar qual norma deve prevalecer no caso concreto, devendo, ainda, observar o planejamento, com a implementação de medidas mais adequadas visando dar a devida continuidade aos serviços públicos.

No que tange a ausência de parâmetros em nosso ordenamento jurídico capaz de suportar os efeitos e consequências desta pandemia Marçal Justen Filho ensina que:

Os institutos jurídicos tradicionais do direito administrativo são incompatíveis com a complexidade da situação fática e a dimensão supraindividual das dificuldades. Mais precisamente, a submissão dos fatos a esses institutos gera distorções insuportáveis.[2]

Assim, muito embora a Administração Pública deva pautar seus atos com base no que estiver previsto em lei, é perfeitamente possível a aplicação dos princípios da derrotatibilidade da norma e da técnica de ponderação de interesses no âmbito da Administração pública, conforme será visto a seguir:

 

O PRINCÍPIO DA DERROTABILIDADE DA NORMA E DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

O princípio da derrotabilidade da norma jurídica de forma didática e objetiva significa a possibilidade, no caso concreto ou prático, de uma norma ser afastada ou ter sua aplicação negada, sempre que ocorra uma exceção relevante, mesmo que a norma ou lei tenha presentes suas condições necessárias e suficientes para que a mesma seja válida e aplicável.

Os defensores do princípio da derrotabilidade da norma jurídica defendem que, em um caso concreto, uma norma pode ser afastada ou ter sua aplicação negada, sempre que uma exceção relevante se apresente, ainda que a norma não possua nenhum vício, em razão de uma exceção plausível justificadora do afastamento da norma no caso concreto, ou seja, não há discricionariedade para afastar a aplicação da norma, pois sempre deverá existir um fato relevante justificador.

A doutrina nacional vem debatendo sobre a força normativa dos princípios, partindo da premissa de que regras e princípios são espécies de normas e que, enquanto ponto de partida para o intérprete, não guarda entre si hierarquia, especialmente diante da unidade da Constituição.

Assim, em determinado caso uma norma, mesmo de índole constitucional, pode ser afastada quando sua aplicação se tornar injusta ou contrariar os interesses da coletividade.

Neste sentido são os ensinamentos de Juliano Taveira Bernardes e Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira:

 A derrotabilidade das normas tem a ver com a não aplicação, total ou parcial, de certa norma jurídica, apesar de exteriorizados os pressupostos a partir dos quais se deveria aplica-la em condições normais. […] Por outras palavras, como os órgãos que editam normas são incapazes de prever as infinitas circunstâncias que futuramente aparecerão no momento em que uma norma deva ser aplicada, as previsões normativas estão sempre abertas a uma lista de exceções (cláusulas a menos que) que podem derrotar os comandos inicialmente propostos pela autoridade normativa.[3] 

O Jurista Humberto Ávila enumerou alguns pressupostos a serem preenchidos para a ocorrência da Derrotabilidade ou superação de determinada norma jurídica, eis os requisitos:

a) Requisitos Materiais: a Derrotabilidade da norma pelo caso concreto não poderá embaraçar a regular aplicação e concretização de valores intrínsecos da norma.

b) Requisitos Procedimentais: para que uma regra não seja aplicada ao caso concreto (Derrotabilidade), faz-se necessário apresentar argumentação condizente, demonstrando que a aplicação da norma seja incompatível com a finalidade subjacente da mesma, ou seja, estaria cometendo uma grande injustiça, cuja não era finalidade da norma em sua elaboração. Ainda, os motivos da Derrotabilidade devem ser expressados de forma clara, para que possam ser consultadas e controladas. Por fim, não menos importante está o imperativo de apresentar comprovação condizente para derrotar uma regra, considerando que a mera alegação não pode ter o condão de superar uma norma positivada.[4] (Grifos).

Dessa forma, desde que devidamente motivado o ato e apresentados os motivos de forma clara, o hermeneuta pode afastar a aplicação da norma jurídica válida quando a aplicação se tornar injusta ou contrariar os interesses da coletividade.

Sobre a aplicabilidade da derrotabilidade da norma, o jurista Humberto Ávila continua ensinando que:

Como já analisado, as regras possuem uma eficácia preliminarmente decisiva, na medida em que pretendem oferecer uma solução, provisória para determinado conflito de interesses já detectado pelo Poder Legislativo. Por isso, elas pré-excluem a livre ponderação principiológica e exigem a demonstração de que o ente estatal se manteve, no exercício de sua competência, no seu âmbito material. (...). Como já mencionado, as regras possuem uma rigidez maior, na medida em que a sua superação só é admissível se houver razões suficientemente fortes para tanto, quer na própria finalidade subjacente à regra, quer nos princípios superiores a ela. Daí por que as regras só podem ser superadas (defeasibility of rules) se houver razões extraordinárias para isso (...)”. (...) A superação de uma regra deverá ter, em primeiro lugar, uma justificativa condizente. Essa justificativa depende de dois fatores. Primeiro, da demonstração de incompatibilidade entre a hipótese da regra e sua finalidade subjacente. É preciso apontar a discrepância entre aquilo que a hipótese da regra estabelece e o que sua finalidade exige. Segundo, da demonstração de que o afastamento da regra não provocará expressiva insegurança jurídica. Com efeito, as regras configuram meios utilizados pelo Poder Legislativo para eliminar ou reduzir a controvérsia, a incerteza e a arbitrariedade e evitar problemas de coordenação, de deliberação e de conhecimento. Sendo assim, a superação das regras exige a demonstração de que o modelo de generalização não será significativamente afetado pelo aumento excessivo das controvérsias, da incerteza e da arbitrariedade, nem pela grande falta de coordenação, pelos altos custos de deliberação ou por graves problemas de conhecimento. Enfim, a superação de urna regra condiciona-se à demonstração de que a justiça individual não afeta substancialmente a justiça geral. Em segundo lugar, a superação de uma regra deverá ter uma fundamentação condizente: é preciso exteriorizar, de modo racional e transparente, as razões que permitem a superação. Vale dizer, uma regra não pode ser superada sem que as razões de sua superação sejam exteriorizadas e possam, com isso, ser controladas. A fundamentação deve ser escrita, juridicamente fundamentada e logicamente estruturada. Em terceiro lugar, a superação de uma regra deverá ter urna comprovação condizente: não sendo necessárias, notórias nem presumidas, a ausência do aumento excessivo das controvérsias, da incerteza e da arbitrariedade e a inexistência de problemas de coordenação, altos custos de deliberação e graves problemas de conhecimento devem ser comprovadas por meios de prova adequados, corno documentos, perícias ou estatísticas. A mera alegação não pode ser suficiente para superar uma regra.

Destarte, faz-se necessária a utilização de um raciocínio jurídico que admita que as regras jurídicas são dotadas de exceções implícitas, e esse raciocínio é o que a doutrina denominada de derrotabilidade, ou seja, admite-se o afastamento da regra geral, num determinado caso concreto, diante da evidente incompatibilidade entre a hipótese descritiva da norma e sua finalidade.

Inclusive, em nosso ordenamento jurídico, vemos a evolução prática e quase que explicita do princípio da derrotabilidade, para tanto, basta-nos observar o Decreto Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas Básicas do Direito Brasileiro), alterado pelas Leis nº 12.376/2010 e 13.655/2018, principalmente em seu artigo 22, caput e parágrafo § 1º, deixa claro e explícita a possibilidade de o gestor público interpretar as normas e fazer a sua aplicação levando em conta os percalços vividos naquele momento, in verbis:

Art. 22.  Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)

§1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)

Vale registrar que a própria Lei de Introdução às Normas Básicas do Direito Brasileiro foi alterada para que sua redação fosse mais adequada, possibilitando ao gestor observar o primado da realidade quanto à luz da contextualização do caso concreto, sendo possível examinar as medidas mais aptas a afastar ou minimizar o rigor da norma com uma decisão mais equilibrada e com efeitos e resultados apropriados ao rigor do caso concreto.

No que tange ao acolhimento do princípio da derrotabilidade da norma, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem se posicionado adepto ao afastamento do texto legal quando existir incompatibilidade entre a hipótese descrita no texto legal e a situação vivenciada no caso concreto. Com isso, o hermeneuta deve construir um raciocínio que permita justificar, no caso concreto, uma solução mais justa e razoável, eis julgados neste sentido:

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. DESISTÊNCIA DA EXECUÇÃO EM RAZÃO DO TRÂNSITO EM JULGADO DE SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA EM AÇÃO ANULATÓRIA. CANCELAMENTO DA CDA APÓS A OPOSIÇÃO DE EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE E EMBARGOS. INAPLICABILIDADE DO ART. 26 DA LEF. PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. CABIMENTO. PROVEITO ECONÔMICO OBTIDO NA AÇÃO ANULATÓRIA, NÃO NA EXECUÇÃO FISCAL. VALOR DA CAUSA MUITO ELEVADO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS ARBITRADOS POR APRECIAÇÃO EQUITATIVA, NOS TERMOS DO ART. 85, §8º, DO CPC. PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO QUE JUSTIFICAM O AFASTAMENTO DA NORMA DOS §§ 3º E 5º DO MESMO ARTIGO. DERROTABILIDADE. JUSTA REMUNERAÇÃO DO PROFISSIONAL E FINALIDADE DA NORMA. - Extinta a ação executiva em razão do cancelamento da CDA, é devida a condenação da Fazenda Pública ao pagamento de honorários advocatícios se, à época da desistência, a parte executada já havia constituído sua defesa. A aplicação da norma contemplada pelo art. 26 da LEF, que isenta as partes de "qualquer ônus" em caso de cancelamento da inscrição antes da decisão de primeiro grau, pressupõe ato espontâneo da Fazenda Pública, sem prejuízo para a outra parte. Precedentes desta Corte e do STJ. - Descabida a aplicação dos §§ 3º e 5º do art. 85 do CPC, uma vez que o proveito econômico fora obtido na ação anulatória, e não na execução fiscal, consistindo a extinção do feito executivo em dever de ofício do julgador que conduz o processo. Desse modo, não obstante o valor da causa não seja irrisório, mas, pelo contrário, muito elevado – superior a um milhão de reais –, merece aplicação a norma do art. 85, §8º, do CPC (arbitramento dos honorários por apreciação equitativa), tendo em vista que nova fixação com base no valor do débito configuraria bis in idem, além de enriquecimento indevido de uma das partes e, por conseguinte, sacrifício de outra, sem razoável justificação para tanto. - Por vezes, o raciocínio meramente legalista mostra-se insuficiente para solucionar determinadas questões jurídicas, porquanto o mundo fenomênico é muito mais rico do que o imaginado pelo legislador; quer dizer, casos não imaginados pelo legislador podem surgir, tal como evidenciado no caso concreto, em que a aplicação pura e simples da regra jurídica poderia subverter a sua própria finalidade. - Nesse cenário, necessária a utilização de um raciocínio jurídico que admita que as regras jurídicas são dotadas de exceções implícitas, e esse raciocínio é a derrotabilidade, ou seja, admite-se o afastamento da regra geral diante da evidente incompatibilidade entre a hipótese descritiva da norma e sua finalidade. - Arbitrados os honorários advocatícios em R$ 20.000,00 (vinte mil reais), valor que remunera, de forma justa e adequada, o trabalho dos procuradores, sobretudo considerando a responsabilidade assumida no processo. APELO PARCIALMENTE PROVIDO. (Apelação Cível, Nº 70080572308, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marilene Bonzanini, Julgado em: 21-03-2019). (Grifos).

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO ADMINISTRATIVO. LICITAÇÕES E CONTRATOS. AÇÃO DE COBRANÇA EM DESFAVOR DA FAZENDA PÚBLICA. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO E HONORÁRIOS DE SUCUMBÊNCIA. BASE DE CÁLCULO. VALOR DA CONDENAÇÃO. ART. 85, §§ 2º E 3º, I, DO CPC. AFASTAMENTO DAS NORMAS DE REGÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL NÃO CARACTERIZADA. REFORMA DA SENTENÇA, NO PONTO. Certo é que esta Corte já afastou a aplicação literal dos dispositivos do Código de Processo Civil referentes à fixação dos honorários sucumbenciais, em razão da exorbitância do valor da causa, da condenação ou do proveito econômico, que ocasionaria flagrante desproporção desarrazoada entre a verba honorária e o trabalho realizado, situação que subverteria a própria finalidade da norma de regência – a justa remuneração do profissional. Todavia, a aplicação da derrotabilidade está reservada a situações limite, que constituem exceções no sistema, exatamente porque o legislador não é capaz de prever todas as possíveis ocorrências fáticas, tornando necessária a construção de um raciocínio que permita construir a justiça no caso concreto, sem as amarras cegas da lei, que por vezes podem conduzir a circunstâncias de insurreição ao ordenamento jurídico como um todo. É preciso ter cuidado para que a exceção não se torne a regra, exatamente como na espécie, em que a fixação da verba honorária sobre o valor da condenação (R$ 109.200,00), resulta em quantia que nem de longe pode ser considerada exorbitante, sobretudo em um processo com tramitação de quase quatro anos e diversas manifestações dos procuradores da autora, inclusive com a produção de prova oral. APELO PROVIDO. (Apelação Cível, Nº 70080281215, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marilene Bonzanini, Julgado em: 13-02-2019). (Grifos).

Dessa forma, a previsão contida no inciso XV do artigo 37 da Constituição Republicana de 1988, que estabelece que “o subsídio e os vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos são irredutíveis, ressalvado o disposto nos incisos XI e XIV deste artigo e nos arts. 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I”, pode ser perfeitamente afastada quando, de alguma maneira, a aplicação da norma contrariar os interesses da coletividade. Até porque, como é de conhecimento de todos, os interesses da coletividade devem sobrepor aos interesses egoísticos do particular.

Portanto, considerando a calamidade pública decorrente da pandemia denominada COVID-19, vivenciada por todos nós, que está afetando sobremaneira as questões orçamentárias dos municípios brasileiros e, por conseguinte, inviabilizando o pagamento dos subsídios e dos vencimentos dos agentes públicos, pode perfeitamente ser afastada a vedação constitucional de redução dos subsídios e vencimentos, ocorrendo a derrotabilidade da proibição contida no inciso XV do Texto Constitucional.

É fato que, na atual conjuntura jurídica e a escassez de recursos públicos que se faz presente, além dos deveres específicos com serviços públicos e políticas públicas, deparamos agora com uma demanda, uma pandemia que traz em seu bojo a necessidade de gastos específicos no combate à sua disseminação e repressão, gastos estes que serão suportados por um sistema público deficitário e carente de recursos.

Não é segredo que os maiores problemas enfrentados pelos gestores estão reunidos quase que em sua totalidade na área da saúde, sejam pelo excesso de demandas, seja pela falta de recursos para suprir as necessidades diárias de um sistema falido, em contrapartida, há necessidade de se realizar gastos com educação, assistência social e infraestrutura, que são tão importantes quanto a saúde para o equilíbrio de uma sociedade igualitária.

Ademais, a redução dos subsídios e dos vencimentos do prefeito, vice-prefeito, secretários municipais, detentores de cargos comissionados e de demais servidores tem como objetivo preservar os interesses da coletividade no que tange à manutenção dos serviços essenciais na área da saúde, notadamente no combate à pandemia. Dessa forma, resta justificada a derrotabilidade da norma que proíbe a redução dos subsídios e vencimentos, tendo em vista que o valor economizado será revertido no combate à pandemia, o que é salutar.

 

A APLICAÇÃO DA TÉCNICA DE PONDERAÇÃO DE INTERESSES NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A técnica da ponderação foi desenvolvida por Robert Alexy, tendo a doutrina nacional e a jurisprudência dominante acampado a tese desenvolvida pelo jurista alemão. Tal método de interpretação principiológica visa adequar os princípios a cada caso concreto, objetivando impedir a supremacia de determinado princípio/norma.

Segundo Alexy, o julgador deve buscar uma decisão “racional” diante de conflitos entre princípios constitucionais que asseguram direitos e garantias fundamentais, tendo como parâmetro a análise do princípio da proporcionalidade — que se subdivide em adequação, necessidade e proporcional idade em sentido estrito — e fazer a opção pelo princípio que contenha o mandamento que proporcione a satisfação de um dever ideal, já que princípios são comandos de otimização e, como tal, pressupõe que algo seja realizado na maior medida possível.

Nesse caso, para Alexy, estamos diante da “lei da ponderação” que consagra que quanto mais alto for o grau de descumprimento de um princípio, maior deve ser a importância do cumprimento do outro princípio que está em conflito (ou seja, a proporcionalidade em sentido estrito). O detalhe é que para mensurar tal situação é necessária a incidência de uma carga de argumentação.[5]. (Grifos).

Na mesma trilha advoga Ricardo Maurício Freire Soares, aduzindo que:

O juízo de ponderação é construído a partir da própria concretização do entendimento extraído de um determinado princípio, ocasionando, portanto, a densificação da referida norma in concreto. Desta forma, a prática da ponderação não gera a desqualificação e não nega a validade de um princípio preterido, mas, tão-somente, em virtude do peso menor apresentado em determinado caso, terá a sua aplicação afastada, não impedindo, portanto, a sua preferência pelo jurista em outra lide[6]. (Grifos)

Diante da colisão de direitos fundamentais, de um lado a impossibilidade de redução dos subsídios e vencimentos e de outro lado os interesses da coletividade, o intérprete deve lançar mão da técnica de ponderação para solucionar o conflito existente entre os bens jurídicos tutelados pelo Texto constitucional. Nesse sentido são os ensinamentos do professor Virgílio Afonso da Silva:

é possível que, em casos concretos específicos, após a aplicação da proporcionalidade e de sua terceira sub-regra, a proporcionalidade em sentido estrito (sopesamento/ponderação), nada reste de um determinado direito. Por mais que isso soe estranho e posse passar uma certa sensação de desproteção, isso apenas reflete o que ocorre em vários casos envolvendo direitos fundamentais. Quando alguém, por exemplo, tem seu sigilo telefônico devassado e suas conversas interceptadas, nada sobra desse direito fundamental. Quando se proíbe a exibição de determinado programa de televisão ou a publicação de determinada matéria jornalística, também sobra pouco ou nada da liberdade de imprensa naquele caso concreto. Quando alguém é condenado a pena de reclusão, sua liberdade de ir e vir é aniquilada. Ou, por fim – e talvez de forma ainda mais clara -, quando alguém de um terreno que é desapropriado, o seu direito, nesse caso concreto, desaparece por completo. Em diversos casos semelhantes, por ser impossível graduar a realização de um determinado direito, qualquer restrição a ela é uma restrição total ou quase total.[7] (Grifos).

Nas palavras de Daniel Sarmento, a técnica de ponderação de interesses é fundamental na aplicação das normas. Eis os comentários do autor:

longe de se limitar à normatização esquemática das relações entre cidadão e Estado, a Constituição de 1988 espraiou-se por uma miríade de assuntos, que vão da família à energia nuclear. Assim, é difícil que qualquer controvérsia relevante no direito brasileiro não envolva, direta ou indiretamente, o manejo de algum princípio ou valor constitucional. A ponderação de interesses assume, neste contexto, relevo fundamental, não apenas nos quadrantes do Direito Constitucional, como também em todas as demais disciplinas jurídicas.[8] (Grifos).

Segundo a melhor doutrina, no processo de ponderação o intérprete deve levar em conta o princípio da proporcionalidade:

O juízo de ponderação a ser exercido liga-se ao princípio da proporcionalidade, que exige que o sacrifício de um direito seja útil para a solução do problema, que não haja outro meio menos danoso para atingir o resultado desejado e que seja proporcional em sentido estrito, isto é, que o ônus imposto ao sacrificado não sobreleve o benefício que se pretende obter com a solução. Devem-se comprimir no menor grau possível os direitos em causa, preservando-se a sua essência, o seu núcleo essencial (modos primários típicos de exercício do direito). Põe-se em ação o princípio da concordância prática, que se liga ao postulado da unidade da Constituição, incompatível com situações de colisão irredutível de dois direitos por ela consagrado.[9] (Grifos).

Para a melhor doutrina a colisão de direitos fundamentais decorre da natureza principiológica dos direitos fundamentais. Com isso, os princípios, ao contrário das regras, não emitem diretrizes definitivas, logo, devem ser analisados em cada caso concreto, vez que não são absolutos. Assim, a aplicabilidade dos princípios dependerá das possibilidades fáticas e jurídicas que se oferecem no caso concreto, conforme ensina o jurista alemão Robert Alexy.[10]

Segundo o constitucionalista George Marmelstein, os direitos fundamentais, “apesar de serem os valores mais importantes, ocupando o ponto mais alto da hierarquia jurídica, eles podem ser restringidos caso o seu exercício possa ameaçar a coexistência de outros valores constitucionais”[11], ou seja, em algum momento um direito fundamental pode ser restringido por conflitar com outro direito de igual hierarquia.

Não sendo possível a harmonização dos direitos em conflito, o intérprete terá de avaliar qual dos interesses deverá prevalecer. Assim, entre a vedação de reduzir os subsídios e os vencimentos e de outro lado os interesses da coletividade, deve prevalecer este, pois os interesses da coletividade com a redução dos pagamentos devem sobrepor aos interesses particulares dos agentes públicos.

Vale registrar que o Código de Processo Civil de 2015, em seu artigo 489, § 2º, adotou expressamente a técnica de ponderação, ao estabelecer que “No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão”, o que demonstra a importância da técnica de ponderação na aplicação das normas na atual conjuntura jurídica.

De mais a mais, a necessidade de sopesamento passa necessariamente pela aceitação da existência de hierarquia axiológica entre os valores constitucionais. Não há nenhuma dúvida de que existe uma hierarquia axiológica entre os interesses da coletividade em reduzir os gastos com a folha de pagamento e a vedação de redução de subsídios e vencimentos, pois sempre deve preponderar os interesses da coletividade em detrimento dos interesses do particular, principalmente em época de calamidade pública.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, em seu artigo 29, reconhece que os direitos por ela estabelecidos não são absolutos, pois podem sofrer limitações “com o fim se assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática”.

Acompanhando o movimento de que os direitos fundamentais não são absolutos, no julgamento do MS 23.452/RJ, o Supremo Tribunal Federal decidiu no sentido de que no sistema constitucional brasileiro não há direitos ou garantias com caráter absoluto, “mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das relações de liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, dede que respeitados os termos estabelecidos na própria Constituição”.[12]

A decisão proferida pela Suprema Corte serve de sustentáculo para fundamentar e justificar o afastamento da proibição de redução dos subsídios e vencimentos dos agentes públicos, pois presente está o interesse da coletividade em detrimento dos interesses individuais dos agentes públicos, pois com a redução dos subsídios e vencimentos será possível reduzir os gastos com a folha de pagamento para que o valor economizado seja aplicado no combate à disseminação e repressão da pandemia, o que é louvável.

Em nada adianta não reduzir os subsídios e os vencimentos, em nome de um apego exacerbado ao texto legal, que nada contribui para a efetiva justiça social, pois se as finanças do Estado entrar em colapso, aí sim, não terão recursos para pagar a folha de pagamento e nem mesmo para combater a pandemia que aterroriza e afeta significativamente todos nós. Portanto, o Estado deve agir com prudência e com proporcionalidade em seus atos para equalizar o conflito existente entre os interesses individuais dos agentes públicos e os interesses da coletividade, a fim de atender as finalidades sociais e do bem comum.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo estudo realizado, conclui-se pela possibilidade de aplicação do princípio da derrotabilidade da norma, bem como da aplicação da técnica de ponderação de interesses no âmbito da Administração Pública, desde que o ato seja devidamente motivado e que tenha como finalidade atender aos interesses da coletividade, até porque estes devem sobrepor aos interesses do particular.

A aplicação da derrotabilidade está reservada a situações graves, que constituem exceções, até porque o legislador não é capaz de prever todas as possíveis ocorrências no mundo jurídico, portanto, é necessária a construção de um raciocínio que permita construir a justiça no caso concreto, sem as amarras estritas aos textos legais, que por muitas vezes podem conduzir a circunstâncias de injustiças e de desarrazoabilidades. No entanto, é preciso ter cuidado para que a utilização da derrotabilidade da norma não se torne a regra, para afastar a norma criada pelo legislador democraticamente eleito pelo povo sem a presença de elemento extraordinário justificado do afastamento da norma.

Além do mais, quando a norma vigente não contém uma exceção, mas a situação concreta impõe o dever de agir de outro modo, o intérprete, com base nos princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e de justiça, deverá afastar a previsão legal; no caso a proibição de redução de subsídios e vencimentos, em nome de um interesse maior, que é o interesse da coletividade, em reduzir os gastos com a folha de pagamento, para ser revertido na manutenção dos serviços essenciais à população.

Conforme restou demonstrado ao longo deste texto, é perfeitamente possível afastar a proibição constitucional de redução dos subsídios e vencimentos quando o administrador se deparar com uma situação de calamidade, como é o caso da pandemia denominada COVID-19, para que sejam garantidos recursos para aplicação em prol da coletividade, principalmente no combate à pandemia.

De mais a mais, em nada adianta não reduzir os subsídios e vencimentos se, ao final, a Administração não tiver condições de honrar suas obrigações em razão do colapso das finanças. Assim, é prudente e razoável a redução da folha de pagamento na busca de garantir a continuidade da prestação dos serviços essenciais aos administrados.

Dessa forma, presente o fator de anormalidade grave, a Administração pode perfeitamente reduzir os subsídios e vencimentos de seus colaboradores, para atender aos interesses coletivos.

 

Notas e Referências

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[1] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 35 ed. Malheiros, 2009, p.89.

[2] JUSTEN FILHO, Marçal. Covid-19 e o Direito Brasileiro. Coletânea de estudos. E-book, Curitiba: Justen, Pereira, Oliveira & Talamini, 2020.

[3] BERNARDES, Juliano Taveira; FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves. Direito Constitucional: Tomo I. 3. ed., rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 245-246

[4] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 117.

[5] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.

[6] SOARES, Ricardo Maurício Freire. Hermenêutica e Interpretação JurídicaSão Paulo: Saraiva, 2010, p. 69

[7] SILVA, Virgílio Afonso. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. In: Revista de Direito do Estado, n. 4, Rio de Janeiro: FGV Editora, 2006, p. 44.

[8] SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 23.

[9] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 182.

[10] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.

[11] MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2019, p. 377.

[12] STF – MS 23.452-RJ, rel. Min. Celso de Mello.

 

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