A democracia da inteligência artificial e o que resta da inteligência natural

14/01/2019

Após notórios exemplos de como fakenews podem causar impactos negativos em eleições presidenciais dos EUA e do Brasil, bem como do referendo para saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit), devemos nos perguntar: “o que restou de escolha natural para uma real democracia?”

Uma das grandes características do ser humano é ter, de forma geral, uma consciência apta a discernir sobre as consequências de suas escolhas e como tais consequências lhe trarão um novo leque de opções das quais, igualmente responsável, precisará fazer para que o melhor desenvolvimento possível ocorra no menor espaço temporal disponível.

Essa capacidade humana é compreendida de diversas formas: livre arbítrio, autodeterminação, autonomia de vontade, etc. O que se espera, ainda, é que o uso de tal dom humano seja sempre voltado para o bem comum, considerando a busca do desenvolvimento intersubjetivo como dever maior de qualquer Estado contemporâneo estruturado sob a lógica de um regime ´democrático de direito´.

Democracias pressupõem um livre exercício de escolhas, em que cidadãos consigam discernir qual é o melhor caminho a seguir conforme seus pessoais interesses de ter um vida melhor.

Entretanto, essa clássica noção de democracia nitidamente encontra-se ameaçada pelo exponencial crescimento da influencia de mecanismos de inteligência artificial (IA) que estão a influenciar desproporcionalmente as escolhas realizadas por aqueles detentores de inteligência natural (IN).

Logo, devemos refletir: qual é o ponto de inadequação e de desnecessidade do uso da IA para a realização de escolhas que determinarão o futuro de uma nação e como tal neblina causada pela IA pode desequilibrar o exercício de escolhas razoáveis, responsáveis e responsabilizáveis?

A questão da impessoalidade, nesse contexto, mais uma vez, ganha corpo, pois a programação de IA voltada a influenciar decisões da IN para alcançar um determinado objetivo de promover a vitória de um lado de uma disputa eleitoral obviamente ocorre para atender interesses pessoais daqueles que encomendam a estruturação de algoritmos criados para esse fim.

Entretanto, talvez, o grande problema da democracia na era da IA seja, basicamente, em determinar qual é o limite de tais sistemas e quais serão os meios utilizados pela IA para cumprir sua missão.

Assim como a humanidade vive a constante ameaça do uso indiscriminado e criminoso do livre arbítrio humano para o alcance de proveitos pessoais em detrimento de benefícios comuns, o que esperar do uso de um poder potencialmente maior do que o humano e que cresce de forma exponencial a cada momento?

O caminho, invariavelmente, será de fusão da IN com a IA, levando à extinção do sentido clássico de democracia que compreendemos, pois quanto maior a capacidade de análise (crítica, inclusive) de dados da IA, maior será a necessidade da busca de adequação do ser humano a essa nova realidade.

É o que já ocorre nos dias de hoje com esquizofrênica necessidade de estar atualizado o tempo todo, principalmente, por informações aparentemente irrelevantes para a promoção do desenvolvimento pessoal, motor propulsor de qualquer ser biótico.

A questão é que tal aparência de inutilidade de informações, na verdade, passa a moldar decisões e escolhas que cada um toma em sua realidade social e, invariavelmente, política.

Assim, a decisão sobre o futuro das nações volta-se aos programadores da IA que, em determinado momento, ficam sob o controle da IA de forma tão complexa que a IN não é mais capaz de regular, tampouco, limitar seus destinos.

Contudo, não podemos nos esquecer que os envolvidos nos novos tempos de informação democratizada (artificial ou natural) estão, necessariamente, ainda estão comprometidos com deveres constitucionais de promoção de uma sociedade mais livre, justa e solidária.

Entretanto, torna-se imperioso lembrar que deveres possuem um custo e, assim, passa a ser pertinente a questão: para o alcance de uma sociedade melhor, até que ponto o indivíduo pode ter suas decisões condicionadas de modo desproporcionalmente artificial?

Ou, para uma preocupação ainda maior: até quando o que consideramos ´artificial´ ainda terá esse rótulo na nossa realidade de transmutação do ser humano dependente de elementos não naturais para se desenvolver?

Nesse sentir, julgamos que se tornam imprescindíveis a pesquisa e o efetivo empenho de criação e de aperfeiçoamento de formas reguladoras do impacto da IA não só no exercício democrático das nações que ainda consideram o Estado de Direito como o melhor caminho a se trilhar, mas, também, na realidade cotidiana de interação do homem consigo próprio, com os outros e com o meio onde concretiza sua existência física.

Vale lembrar que a realidade em que hoje se vive, de informação rápida e dividida entre os mais altos graus hierárquicos institucionais e o mais comum do povo, traz ao direito a necessidade de revisão da ideia de democracia e de controle estatal.

Consequentemente, esse cenário induz à reconsideração do entendimento sobre a proposta de um Estado minimamente ordenado e promotor de um responsável desenvolvimento de sua estrutura realizado por humanos que, agora, estão sob uma nova força de influência: a IA.

Novamente, voltamos à preocupação de analisar qual é o ponto que essa nova força influenciadora das decisões humanas podem ser consideradas antijurídicas, porque desproporcionais.

Nesse sentir, para continuarmos a vislumbrar o exercício da democracia clássica idealizada no texto constitucional, não podemos escapar da busca de uma nova compreensão acerca dos limites do compartilhamento da informação.

A nova Lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/18) representa, talvez, um bom começo, mesmo que tardio. Isso porque, de forma geral, ainda se vive sob uma falsa sensação de que a internet é uma terra de ninguém, ou seja, sem regulamentação apta o suficiente a determinar limites e a promover um efetivo efeito dissuasório de atos antijurídicos que, por sua própria característica, afetam milhões de um só vez.

A consciência dessa nova dimensão, além da realidade virtual jurídica, e da expressão sensorial humana de existência no mundo real, passa a elevar a compreensão de como os avatares virtuais das pessoas conectadas ao universo eletrônico precisam, também, ter limites, direitos e deveres.

Do contrário, simplesmente, essa nova dimensão, naturalmente, desenvolverá uma autoregulamentação das atividade que lá se desenvolvem que, não necessariamente, irão estar em conformidade com a regulação jurídica e social que vivenciamos no mundo real.

E quais são as consequências de tal sintonia regulatória?

Um crack entre tais realidades/dimensões que nos trarão a sensação de viver em um universo bizarro ao mesmo tempo que enxergaremos, além da janela, um distante cenário ideal de desenvolvimento.

O problema é que, nesse contexto, chegaremos a um ponto de distorção de dimensões que não saberemos mais se o bizarro é ser ´natural´ ou se o ideal é ser ´artificial´.

Isso porque, sabemos – por experiências sociais empíricas –  que, de forma geral, o rotulado como ´diferente´ é normalmente diminuído, marginalizado e até excluído.

Assim, como será em poucos anos o ser humano totalmente natural?

Será o diferente da sua espécie, pois os demais contarão, em sua maioria, com a IA para aumentar suas capacidades e, assim, conseguirem alcançar o maior e o melhor desenvolvimento possíveis.

Desse modo, em pouco tempo a democracia, orginalmente fruto de uma ´livre escolha´, estará totalmente dependente de escolhas direcionadas à promoção e à proteção da IA.

Tal situação nos traz sensação de perigo ou de esperança?

Logo, a depender da resposta dessa pergunta, talvez precisemos começar a pensar em direitos fundamentais da (à) IA como algo que já devemos nos preocupar.

Não podemos nos esquecer que toda forma de esclarecimento que compõe o discernimento de uma pessoa, uma vez inserida em uma determinada sociedade, é condicionada ou decorrente de inúmeros fatores externos (interesses intersubjetivos, consumo, política, ideologias de determinados grupos etc.), logo, não há como falar de uma capacidade de discernimento totalmente livre.

Mas, quais são os limites do condicionamento dessa liberdade?

Devemos acreditar que pensar na IA como elemento que em breve também exercitará atividades conscientes não seria um norte para manter sua atuação proporcionalmente controlada?

Isso porque, a influência natural sentida em nossas decisões compõe a construção do seu discernimento relativamente livre. E é desse modo que a IN efetiva a sua capacidade de escolha conforme sua racionalidade.

Então, quando falamos em eleições e outras formas de expressão democrática de uma nação, por que a IA pode representar uma ameaça?

Porque podem indicar o abuso do poder econômico de determinados players eleitorais em detrimento de outros, fator que desequilibra desproporcionalmente a disputa de votos.

Na verdade, se imaginarmos que a escolha de caminhos para um melhor futuro para si e para os que ama de cada cidadão delimita a participação verdadeiramente democrática de um povo, para o bem de uma nação, por meio de sua IN – há muito tempo a influência da IA faz a balança da disputa eleitora pender para um dos lados.

Contudo, a grande novidade dos últimos anos é o massivo uso de fakenews para a ilegítima conquista de votos.

Nessa linha, aparentemente, o cidadão se afasta de suas naturais convicções, preferências e interesses e se aproxima dos objetivos determinados por aqueles detentores do poder de programação da IA, contratados por um dos lados da disputa eleitoral.

Tal situação é inadmissível, pois, como relatado, deforma não só a dimensão jurídica do exercício da democracia, mas, também, traz ao mundo real os reflexos de governos não escolhidos pelo povo, mas, sim, pelos detentores do poder econômico.

Nesse sentir, com o inevitável fim da democracia vinculada ao ser humano natural, torna-se extremamente relevante que acordemos para que a IA não passe a fazer escolhas por nós.

Apesar de que tal cenário parece ser o ideal para muitos e que essa aparente ausência de preocupação e de responsabilidade sobre as escolhas feitas pela IA em nosso nome vai trazer uma dimensão de avatares totalmente comandados por aqueles que, minimamente, conhecem como o poder da realidade digital vai nos tornar seres humanos mais fortes ou mais conformados.

Assim, resta-nos lembrar que o Estado continuará com sua obrigação de não só regular a dimensão real, por meio da dimensão jurídica, das relação intersubjetivas, mas, também, terá que aprender a regular a dimensão digital em que projeções da realidade (avatares) lá estarão com poderes ilimitados, até então.

É dever irrenunciável do Estado viabilizar o exercício de cada liberdade autônoma da melhor forma e para o maior número de pessoas possíveis, mesmo que seja necessário limitá-la de forma mais contundente sob um determinado aspecto (ou pessoas), ou sob outro, em prol do exercício e da realização do constitucional Estado Democrático de Direito.

Dessa maneira, parte-se da ideia de que o efetivo esclarecimento, para um livre discernimento, é pressuposto democrático e, consequentemente, do controle do deveres da IA, em razão de seu papel para a racional atuação do cidadão.

Para tanto, começar a pensar em formas economicamente desmotivadoras de disseminação de fakenews, por exemplo, pode ser uma alternativa. Ao imaginar, hipoteticamente, que redes sociais poderiam ser responsabilizadas pela disseminação de fakenews no seu ambiente trairia um natural elemento de combate à reprovável prática de distorção de informações para o alcance de benefícios pessoais.

Assim desenhado, ao alcançar a conclusão de que os meios de controle de proteção da expressão democrática de um Estado precisam ser urgentemente revistos e aperfeiçoados, com a inevitável ascensão da IA e de sua influência na dimensão real reconhecida pelo ser humano, chegamos ao ponto de promover o exercício de uma franca e sincera reflexão.

O que (ainda) de natural sobrou do humano?

Certamente a resposta que tenho quando redigi este texto não será a mesma quando com ele me encontrar novamente.

 

 

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