O Professor Mestre e Doutorando Juliano Keller do Vale lança, nesse momento, a segunda edição de sua obra “A Defesa do Direito de Defesa: uma percepção garantista”. Nos seus quatorze capítulos, o autor enfatiza como o direito a defesa é um dos pressupostos no qual favorece o aperfeiçoamento e a segurança da Dignidade da Pessoa Humana. Percebe-se, hoje, no cenário político e jurídico brasileiro, não mais uma sensação de que as instituições judiciárias e legislativas não estejam funcionando de modo harmonioso, mas a realidade desse cenário, sempre conivente com os interesses – especialmente monetários – de grupos intitulados como os “salvadores da pátria”.
O direito de defesa, no entendimento constitucional, proíbe, limita[1] a atividade estatal de exercer o seu arbítrio e autorizar, conforme sua conveniência, todos os meios que estejam à sua disposição para atingir os objetivos desejados. Parece que as revoluções do século XVIII, ao instituírem os espaços democráticos a partir da liberdade, e consagrarem o Estado liberal, tinham alguma clareza sobre a Dignidade Humana, mas não subestimaram, em nenhum momento, o velho conselho de Maquiavel. Na verdade, quanto mais a História percorreu a sua trajetória, provou-se que os ressentimentos – visualizado pela expressão Grollen[2] - aumentaram e a segurança jurídica, mesmo com a adoção do Estado social, não foram suficientes para se evitar as piores tragédias humanas sob o nome da legalidade[3].
Por esse motivo, Valle insiste: ao se pensar o direito à defesa como resultado do principio da estrita legalidade, não é possível que se admita, no Estado Democrático de Direito, nenhuma forma de interpretação[4] jurídica que ponha em risco a integridade física e moral das pessoas quando estabelecem qualquer forma de proibição que não esteja dentro da prescrição legal. Semelhante caso pode ser observado quando o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o habeas corpus impetrado pelo ex-Presidente da República Luiz Inácio “Lula” da Silva, tornou o Princípio da Presunção de Inocência uma “bacia semântica” que alterou, profundamente, o significado da expressão “dialética da complementaridade” entre fatos e valores como descrito na Teoria Tridimensional do Direito em Miguel Reale, ou seja, projetam-se valores pessoais nos fatos apresentados que moldarão, conforme uma pretensa atividade hermenêutica, o resultado jurídico mais desejável pro ego, mesmo que represente algo contrário às provas trazidas aos autos.
Nesse momento de crise institucional frente às metamorfoses sociais, é preciso insistir: o direito à defesa, sob o ângulo dos Direitos Fundamentais[5], pertence à esfera do indecidível, ou seja, não é algo negociável, permutável, um objeto de mercancia, ou, ainda, um direito que pode ser renunciado. A proposição de uma perspectiva garantista do direito à defesa tem compromisso sólido com a democracia consubstanciando, nas palavras de Ferrajoli, uma “cultura jurídica militante[6]”. Ignorar o direito fundamental à defesa, seja na esfera administrativa ou judicial, é não oportunizar a chance de se demonstrar outros pontos de vista, outras manifestações as quais podem e devem trazer mais luzes ao esclarecimento de qualquer conflito humano. Em outras palavras: sem uma defesa intransigente ao direito de defesa, todas as conquistas feitas em termos de gerações dos direitos se tornam inócuas e privilegiam tão somente a vontade do Estado em detrimento à Sociedade.
No entanto, todo direito, especialmente o fundamental à defesa em sede de Direito Penal, restringe-se, como sinaliza Valle[7], à determinação e delimitação dos bens juridicamente tuteláveis. Quando se observa as mudanças históricas, sociais, culturais, ambientais no Direito, sabe-se que, mais cedo ou mais tarde, haverá a sua mutação em termos de ampliar a proteção de bens que asseguram o desenvolvimento e a manutenção de todas as vidas. O reconhecimento estatal dessas condições é resultado de uma dupla tarefa: a) da Sensibilidade Jurídica; b) da Consciência Jurídica.
A Sensibilidade Jurídica[8] denota, por meio de todos os tipos de relações existenciais humanas, mesmo aquelas que não ocorrem entre os humanos, como, por exemplo, a Natureza. A experiência sensível favorece a identificação daquilo que torna o viver e conviver adequados a um sentido de equilíbrio, de prudência, pelos valores existenciais imanente em cada ser vivo e não apenas aqueles que provém de uma racionalidade estritamente utilitarista. Dito de outro modo: trata-se de uma experiência individual na qual é possível separar violência do cuidado, ideologias de utopias, indiferença da inclusão. Todos esses fenômenos sinalizam a imprescindibilidade para uma vida mais harmoniosa.
A Consciência Jurídica[9], no entanto, revela uma fase posterior àquela iniciada pela Sensibilidade Jurídica. Nesse momento, tem-se uma genuína espécie do gênero Consciência Coletiva. A pluralidade de Sensibilidades Jurídicas compartilhadas e criadoras de uma Consciência Jurídica demonstram ao Estado o que se torna algo necessário para se manter a ordem e reciprocidade entre as relações humanas e não humanas. A dinâmica social e jurídica, nesse caso, determina e delimita o surgimento de um bem juridicamente tutelável, ou seja, busca-se a Sustentabilidade das dimensões relacionais em sua matriz ecológica.
Por esse motivo, a Sustentabilidade Social[10] e a Sustentabilidade Jurídica[11] provocam um novo agir legislativo e amplitude do direito à defesa. Novamente, quando as mudanças sociais não viabilizam novas experiências sensíveis e racionais, quando o tempo demanda, exige uma outra compreensão acerca dos fatos e valores que nos rodeiam e essas situações não ocorrem no momento presente, as metamorfoses se tornam e “carne e osso”, o que dificulta ainda mais a existência dessas novas racionalidades devido aos grilhões postos pelas tradições, pelas posturas moralistas, pelos interesses sectários. Os resultados que surgem desses cenários são outras formas de violência, de miséria humana, de negação do Outro na sua absoluta diferença.
Valle tem razão quando insiste na necessidade de uma defesa intransigente ao direito de defesa. Esse é o espírito e a força constitucional na preservação não apenas da Dignidade da Pessoa Humana, mas, agora, de um outro nível: a da Dignitas Terrae. O direito à existência se manifesta pelos Direitos da Natureza e pelos Direitos dos Animais, por exemplo. Essa é a demonstração de que o ser humano está junto com outros seres no mundo e, num sentido biopsíquico, a sua sobrevivência, prosperidade dependem de sua adaptação num mundo que está em constante movimento.
Ao surgirem esses “novos direitos”, bem como a amplitude de atores globais os quais defendem essas causas, tem-se, sem dúvida, a atuação in loco da Sustentabilidade social e jurídica. Surgem, a partir dessas novas premissas, uma maior sensibilidade social e jurídica para aquilo que torna o viver e conviver democráticos a pedra angular do Estado de Direito. A defesa do direito de defesa somente tem significado na medida em que representa o sopro de vida que emana das utopias sociais e jurídicas. Essa é a segurança almejada pela legalidade no seu sentido estrito.
NOTAS E REFERÊNCIAS:
[1] VALLE, Juliano Keller do. A defesa do direito de defesa: uma percepção garantista. Florianópolis: Habitus, 2017, p. 40.
[2] "[...] o escuro na alma do viandante é a zanga retida e independente da atividade do eu, zanga esta que, através de um repetido perpassar de intenções de ódio ou de outras emoções hostis, acaba por se formar, sem ainda abarcar nenhuma precisa intenção hostil; aproximando, porém, de seu sangue todas as intenções possíveis de um tal tipo". SCHELER, Max. A reviravolta dos valores. Tradução de Marco Antonio dos Santos Casanova. Petrópolis, (RJ): Vozes, 1994, p. 45.
[3] “[...] A exposição de motivos anexada ao novo Código penal italiano (1930) parte expressamente da concepção do Estado como um organismo [...]. O direito penal desse Estado não tem o caráter de defesa de uma sociedade [...], mas o de uma defesa do Estado mesmo [...] e considera como meios para essa defesa a intimidação e a neutralização [...], que atuam sobremaneira em inúmeras ameaças de pena de morte”. RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Tradução de Marlene Holzhausen. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 243.
[4] “[...] Si toda interpretación de las normas jurídicas debe resultar y estar de conformidad con los derechos fundamentales, la interpretación de estos es esencial. Incluso podría llegar a afirmarse que todo análisis sobre la interpretación jurídica debe comenzar con el examen de la interpretación de los derechos fundamentales, de los valores y de los princípios”. MARTÍNEZ, Gregório Peces- Barba. Lecciones de derechos fundamentales. Madrid: Dykinson, 2004. p. 303.
[5] “[...] Todos os direitos fundamentais são (e se justificam enquanto) leis dos mais fracos em alternativa às leis dos mais fortes que vigorariam na sua ausência: em primeiro lugar, o direito à vida, contra a lei de quem é mais forte fisicamente; em segundo lugar, os direitos de imunidade e liberdade, contra a lei de quem é mais forte politicamente; em terceiro lugar, os direitos sociais, que são os direitos à sobrevivência, contra a lei de quem é mais forte social e economicamente”. FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos direitos e bens fundamentais. Tradução de Alexandre Salim et al. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 106.
[6] “[...] O constitucionalismo garantista repropõe, de maneira iniludível, os nexos biunívocos entre direito e política e entre ciência jurídica, filosofia política e sociologia do direito, programaticamente ignorados e excluídos pelo velho método técnico-jurídico, promovendo uma cultura jurídica militante na defesa da Constituição e dos direitos fundamentais: uma cultura, portanto, que exige não um menor, mas um maior rigor metodológico”. FERRAJOLI, Luigi. A democracia através dos direitos: o constitucionalismo garantista como modelo teórico e como projeto político. Tradução de Alexander Araujo de Souza et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 96
[7] VALLE, Juliano Keller do. A defesa do direito de defesa: uma percepção garantista p. 46
[8] Compreende-se essa categoria no seguinte conceito operacional: é o ato de sentir algo junto à pluralidade de seres, lugares, momentos e linguagens que constituem a vitalidade e dinâmica da Terra, cujas diferentes maneiras de cumplicidade denotam condições de pertença e participação, as quais precisam ser expressas pelo Direito [continental ou global] para assegurar condições - históricas ou normativas - sobre a importância do desvelo da Alteridade no vínculo comunicacional entre humanos e não-humanos.
[9] “Aspecto da Consciência Coletiva [...] que se apresenta como produto cultural de um amplo processo de experiências sociais e de influência de discursos éticos, religiosos, etc., assimilados e compartilhados. Manifesta-se através de Representações Jurídicas e de Juízos de Valor”. MELO, Osvaldo Ferreira de. Dicionário de Política Jurídica. Florianópolis: Editora da OAB/SC, 2000, p. 22. Grifos originais da obra em estudo.
[10] Retoma-se o Conceito Operacional proposto para essa categoria: a adequação homeostática que se manifesta pela interação entre as diferentes microestruturas sociais e ratificam ou modificam a função coercitiva das macroestruturas sociais no decorrer do tempo e dos espaços.
[11] Retoma-se o Conceito Operacional proposto para essa categoria: É a interação entre os diferentes níveis de articulação, organização, linguagem e estrutura das fontes normativas para assegurar os modos de desenvolvimento das vidas e sua dignidade.
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