A grande mídia insiste em dizer (para confundir) que aqueles que defendem direitos e garantias fundamentais – inclusive as prerrogativas próprias do exercício da advocacia – querem acabar com a famigerada Operação “Lava Jato”. Afirmam, ainda, levianamente que os que se colocam na trincheira da legalidade democrática estariam, de certo modo, acobertando a “corrupção” e a “impunidade”.
É preciso que a sociedade entenda que a defesa de direitos e garantias insculpidas na Constituição da República não é incompatível com a responsabilização daqueles que cometem crimes. Contudo, é necessário que o tão almejado ataque a criminalidade, especialmente, a corrupção seja feito dentro dos limites da legalidade democrática e dos princípios que regem o Estado de Direito. Fora da legalidade democrática só existe o caminho perigoso e ameaçador do autoritarismo e da arbitrariedade.
Não é despiciendo salientar que no Estado de Direito há uma supremacia da lei sobre a autoridade pública. O Império da Lei prevalece sobre o Império dos Homens. De igual modo, o Estado Democrático de Direito está vinculado à Constituição da República como instrumento de garantia jurídica e pela imposição de limites ao exercício do poder punitivo estatal.
Ao lado dos direitos e garantias fundamentais, que deveriam funcionar como instrumentos de contenção do avanço do Estado Penal, de acordo com Rubens Casara estão previstos na Constituição da República “as regras que deveriam condicionar a elaboração de leis e mesmo a modificação da própria Constituição, bem como as competências e atribuições que serviam à legitimação da atuação dos órgãos e agentes públicos”.[1]
Hodiernamente, o processo penal é voltado, principalmente, para a garantia e realização dos direitos fundamentais e que tem como objeto a limitação do poder punitivo estatal. O processo penal acusatório – único compatível com a democracia – deve ser balizado e interpretado conforme a Constituição da República.
Na concepção do processo penal democrático e constitucional, a liberdade do acusado, o respeito à sua dignidade, aos direitos e garantias fundamentais são valores que se colocam acima de qualquer interesse ou pretensão punitiva estatal. Em hipótese alguma pode o acusado ser tratado como “coisa”, “instrumento” ou “meio”. De tal modo, não se pode perder de vista a formulação kantiana de que o homem é um fim em si mesmo.
Logo na introdução de sua paradigmática obra “Sistema Acusatório...”, Geraldo Prado faz menção ao julgamento do Habeas Corpus nº 73.338-7, no Supremo Tribunal Federal, de relatoria do ministro Celso de Mello, em decisão publicada no Diário da Justiça de 19 de dezembro de 1996, na qual, destacou-se, que a persecução penal rege-se, enquanto atividade estatal juridicamente vinculada, por padrões normativos, que consagrados pela Constituição e pelas leis, traduzem limitações significativas ao poder do Estado. Assim é que, diz o ilustre processualista, “contemporaneamente, não mais se concebe a atuação do Estado, em busca da imposição da sanção penal aos autores das infrações penais, fora dos marcos processuais estabelecidos pelas leis e, principalmente, pela Constituição. Nulla poena sine judicio”.[2]
Já na seara penal, Juarez Tavares salienta que “a teoria crítica do delito tem como objetivo estabelecer limites dogmáticos ao poder punitivo. Esta é uma tarefa que corresponde à estrutura do Estado democrático de direito, que tem por base a proteção da dignidade da pessoa humana, dos direitos humanos e da cidadania”.[3]
O preço que a sociedade pagará, no futuro próximo, pela sua intolerância, pela indiferença com o autoritarismo, pela omissão em relação aos abusos perpetrados e pela exaltação das soluções nada ortodoxas, que eliminam direitos e garantias gravadas na Constituição da República, será a derrocada da própria democracia e do Estado de direito.
A história, cedo ou tarde, cobrara e não absolverá os que em nome de um ilusório combate ao crime, sustentados na perversa lógica de que “os fins justificam os meios”, atropelam os valores mais caros e sagrados do Estado Democrático de Direito.
* Para Bárbara Bastos.
Belo Horizonte, 09 de novembro de 2017.
[1] CASARA, Rubens R. R. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
[2] PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório. A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais, 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[3] TAVARES, Juarez. Teoria do delito. São Paulo: Estúdio Editores.com, 2015.
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