A dedução dos materiais da base de cálculo do ISS-Construção Civil: ausência de decisão do Supremo Tribunal Federal e a possível rescisão dos julgados que a admitem

05/08/2018

Coluna Advocacia Pública em Debate / Coordenadores Weber de Oliveira e Jose Henrique Mouta Araújo

Muito se discute sobre o papel do Poder Judiciário na atual quadra do desenvolvimento institucional brasileiro enfatizando-se, no mais das vezes, a possível postura ativista frente aos Poderes Legislativo e Executivo.

Muito embora esse tema esteja na ordem do dia e mereça, realmente, séria discussão, a presente abordagem tratará, ainda que sucintamente, do Poder Judiciário em si mesmo, tomando-se por premissa à exposição o entendimento que vem sendo adotado em relação a um específico tema: a possibilidade de exclusão dos materiais da base de cálculo (rectius, base calculada) do Imposto sobre Serviços – ISS, de titularidade dos Municípios (art. 156, III, da CRFB), presente os serviços indicados nos subitens 7.02 e 7.05 da lista anexa à Lei Complementar n. 116/03 (construção civil, em geral).

Como legitimação à essa possibilidade, invoca-se provimento advindo do Supremo Tribunal Federal que a teria secundado em sede de repercussão geral, consoante decisão proferida no RE n. 603.497/MG (Tema n. 247), relatora a Ministra Ellen Gracie.

Com fundamento nesse pronunciamento, os demais tribunais (e juízes) passaram a admitir a exclusão dos materiais alterando, inclusive, suas posições anteriores que a rechaçavam como uma simples pesquisa o demonstra, especialmente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça.

Constata-se que os tribunais (e juízes) passaram a considerar aquela decisão como verdadeiro provimento vinculante ou, como alguns preferem, precedente vinculante/obrigatório digno, portanto, de impor essa sujeição aplicativa. Mais do que simplesmente persuadir, o pronunciamento citado seria portador de “carga de normatividade abstrata, erga omnes[i] a exigir fidelidade dos juízes e tribunais ao quanto decidido pelo Supremo Tribunal Federal, característica que vem sendo reforçada pelo modelo jurídico brasileiro que tem reservado importância cada vez maior às decisões judiciais, notadamente as provenientes dos tribunais superiores.

Sem emitir juízo de valor sobre ser esse dado da realidade positivo ou negativo, tampouco de nele vislumbrar o que alguns denominam, quer-nos parecer com equívoco, de “commonlização” do direito brasileiro, força reconhecer, com Weber Luiz de Oliveira, que “a influência [...] da doutrina dos precedentes da tradição do common law nos estudos brasileiros foi crescente na última década, ultimando-se com a adoção, em certa medida, dessa doutrina no Código de Processo Civil de 2015”.[ii]  

Consequentemente, a decisão judicial e, principalmente, o correto manejo do instrumental jurídico-processual relativo à aplicação desse primado, é de suma importância para se evitar distorções do próprio sistema e, com isso, gerar maior insegurança, exatamente o contrário do que a adoção da doutrina de precedentes busca alcançar.

O Poder Judiciário, portanto, especialmente os tribunais e juízes, precisam, primeiro, identificar se dado provimento detém a nota de obrigatoriedade, por exemplo, ou se ele é meramente persuasivo; precisam raciocinar por analogia, de forma a reconhecer a similaridade entre os casos e, a partir da ratio decidendi, proceder à aplicação desta ao caso em julgamento ou, sendo a hipótese, distingui-lo daquela (distinguishing) ou mesmo superá-la (overrunling). 

A doutrina do precedente, portanto, mesmo a vigente no Brasil, não se satisfaz com a mera reprodução de ementa de um determinado julgado sem que haja a identificação, no mínimo, de se tratar de um provimento originado de tribunal superior[iii], assim como que há similaridade entre os casos a justificar a possível aplicação da ratio decidendi fixada no precedente cuja aplicação se pretende.

Sem isso e ter-se-á, apenas, mera retórica para, quando muito, (tentar) conferir um verniz de legitimidade à aplicação de pronunciamentos judiciais que em nada se conformam a um precedente obrigatório/vinculante, mesmo em tradições jurídicas de civil law como a nossa.

E é aqui que reside a inquietação que motivou a escrita deste breve artigo.

E isso porque inexiste propriamente um precedente, muito menos vinculante/obrigatório, oriundo do Supremo Tribunal Federal a legitimar que, com base nele, tribunais e juízes possibilitem a exclusão dos materiais da base calculada do Imposto sobre Serviços – ISS, presente os indicados nos subitens 7.02 e 7.05 da lista anexa à Lei Complementar n. 116/03 (construção civil, em geral).

Há, somente, uma decisão unipessoal proferida pela então relatora, Ministra Ellen Gracie, autorizando dita exclusão; todavia, esse pronunciamento foi desafiado por recurso de agravo para que o plenário do Supremo Tribunal Federal possa, aí sim, sendo o caso, fixar um precedente de ordem vinculante/obrigatória estabelecendo a respectiva tese ao Tema n. 247 da Repercussão Geral.

Não houve, portanto, sequer a prolação de um acórdão sendo equivocado falar-se, até mesmo, em jurisprudência; trata-se de decisão monocrática atacada por recurso ainda não julgado pelo colegiado do Supremo Tribunal Federal.

Quer-nos parecer, portanto, equivocado extrair deste pronunciamento as consequências reservadas aos precedentes vinculantes/obrigatórios que reclamam, antes de tudo, em regra, decisão de tribunal superior.

Nesse sentido, tanto o Código de Processo Civil de 1973 (considerado com as inovações das Leis 11.418/06 e 11.672/08) como, especialmente, a vigente lei processual, exigem como condição à categorização como precedente (ou provimento vinculante/obrigatório) tratar-se de decisão de tribunal (v.g. art. 927) ou, especificamente, acórdão paradigma (v.g. art. 1.040).

Decisão unipessoal de ministro não é decisão de tribunal, tampouco acórdão paradigma a atrair a doutrina do precedente, muito menos de caráter vinculante/obrigatório, sendo inapta, quer-nos parecer, a sujeitar juízes e tribunais como se o fosse.

Como aceitar, então, que tribunais e juízes de todo o território nacional, a incluir o Superior Tribunal de Justiça, estejam a aplicar um simples pronunciamento unipessoal, atacado por recurso pendente de julgamento pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, em detrimento às (combalidas) finanças dos 5.570 Municípios?

Mais, caso o plenário do Supremo Tribunal Federal fixe orientação diversa daquela esposada pela então relatora, Ministra Ellen Gracie, como ficarão as decisões de juízes e tribunais que autorizaram, com fundamento naquela decisão unipessoal, a exclusão dos materiais da base calculada do Imposto sobre Serviços – ISS, presente os serviços indicados nos subitens 7.02 e 7.05 da lista anexa à Lei Complementar n. 116/03?

Haverá, por certo, campo possível à propositura, por exemplo, de ações rescisórias pelos Municípios; e o jurisdicionado, como ficará?

Já é hora de se estruturar uma teoria da decisão judicial de molde a debelar pronunciamentos alicerçados em premissas jurídico-teóricas inexistentes ou, na melhor das hipóteses, equivocadas.

O caso aqui exposto – que não é único – bem retrata essa desconformidade e evidencia que a ausência de uma teoria da decisão judicial e de um compromisso com a relevante função exercida pelo Poder Judiciário, cuja responsabilidade política é a ela inerente, pode gerar perplexidades como a que foi aqui apontada.

Juízes e tribunais, a incluir o Superior Tribunal de Justiça, revendo posição que anteriormente professavam com base, frise-se, em interpretação da própria Lei Complementar n. 116/03 (e do Decreto-Lei n. 406/68), adotando um suposto precedente vinculante/obrigatório que, em verdade, não passa de mera decisão unipessoal de ministra relatora desafiada por recurso cujo julgamento ainda está pendente junto ao plenário do Supremo Tribunal Federal.

 

Notas e Referências

[i] OLIVEIRA, Weber Luiz de. Precedentes judiciais na administração pública: limites e possibilidades de aplicação. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 54.

[ii] OLIVEIRA, Weber Luiz de. Precedentes judiciais na administração pública: limites e possibilidades de aplicação. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 46.

[iii] O Código de Processo Civil veiculado pela Lei n. 13.105/15 também confere força de precedente às decisões proferidas por Tribunais Locais em, por exemplo, incidentes de resolução de demandas repetitivas – IRDR, conforme rol apresentado no art. 927.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Supremo Tribunal Federal // Foto de: A C Moraes // Sem alterações

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