A CULTURA DA AGIOTAGEM E O AUMENTO DA PENA DO DELITO DE USURA  

31/10/2020

No último século, diversas foram as crises financeiras que assolaram toda uma sociedade. Pode-se analisar a partir da crise financeira de 2008-2009, quando estourou a bolha imobiliária e viveu-se o desequilíbrio da maior economia, os Estados Unidos da América. Os  efeitos se seguiram por anos, e ainda estão pulsando em diversos países que não conseguiram retornar ao status anterior. (MATTEI, 2020, p. 03)[1].

Diante disso, com a diminuição de crédito no mercado, surgiu uma preocupação na Câmara dos Deputados[2]

Com o agravamento da crise que vem se estendendo por décadas e diminuição do crédito no sistema financeiro nacional, volta a ganhar destaque a figura do indivíduo que empresta dinheiro para terceiro de modo ilegal, com taxas de juros altamente elevadas e sem autorização do Banco Central.

Aqui abre-se um parênteses, a preocupação com a prática popularmente conhecida por “agiotagem”, realizada pela figura do "agiota", não parece infundada e deve-se polemizar acerca dessa cultura impura, uma vez que, a prática de agiotagem que aflige a sociedade não é nova e o Decreto n. 22.626/33, mais conhecido como Lei da Usura segue vigente e atual.[3]

Seguindo o contexto histórico, o mundo, quando ainda em recuperação financeira, foi surpreendido por uma pandemia avassaladora, a COVID-19, que atingiu a saúde das pessoas, de modo amplo, e, nesse estudo, o destaque é a saúde financeira das pessoas.

A nova crise econômica é totalmente diferente da anterior, cujos efeitos economistas acreditam que não serão de curta duração e que seus impactos poderão destruir a estrutura econômica de muitos países, isso inclui o Brasil. (MATTEI, 2020, p. 04).

Acerca da atual situação econômica do país, julgados já se posicionaram que os vendedores autônomos quanto mais os empresários são os maiores lesados. Em recente decisão do Supremo Tribunal Federal, sob relatoria do Ministro Gilmar Mendes em ADPF 645 MC/DF, entendeu-se por desestimular circulação de dinheiro físico e estimular a isenção de cobrança de tarifas de transferência enquanto perdurar moléstia. Leia-se:

Por fim, considerando o atual cenário de pandemia, considero oportuno registrar que o Banco Central poderia atuar estrategicamente, seguindo a linha adotada por inúmeros países, mediante intervenção na economia, para estimular as transações bancárias e, de outro lado, desincentivar a circulação de dinheiro em papel físico, evitando propagação do “Covid-19” (Sars-CoV-2), de forma a isentar temporariamente algumas tarifas de transferências e/ou pagamentos durante o período em que perdurarem as consequências socioeconômicas da moléstia.

Cito como exemplo, Portugal, que incentivou o sistema bancário a isentar tarifas bancárias em transferências realizadas por meios digitais, procurando evitar o contato físico com dinheiro e máquinas eletrônicas, tal como se colhe da seguinte reportagem:

“(...) Todas as transferências realizadas através dos canais digitais são agora gratuitas.  A CGD disponibiliza ainda linhas de crédito dirigida a empresas, no âmbito do Capitalizar 2018 - Covid 19. O banco está a isentar, nos comerciantes, a comissão mínima aplicada nas transações realizadas nos Terminais de Pagamento Automático (TPA) através da rede multibanco, com o objetivo de incentivar os comerciantes a aceitarem mais transações multibanco e reduzir o manuseamento de moeda e notas. Suspendeu as comissões nas transferências interbancárias, pagamentos de serviços, 'cash-advance' e transferências MBWay e está a isentar de comissões os pagamentos de serviços e os carregamentos de telemóveis. Isenta ainda da primeira anuidade os novos cartões de débito e pré-pago ou substituições. Nos comerciantes, isenta de custos fixos nas transações efetuadas através de Terminal de Pagamento Automático (TAP). Está também a criar uma linha de conta corrente destinada a apoiar os comerciantes e pequenos negócios, com isenção de comissões nos primeiros seis meses e ainda isenções no serviço de 'homebanking' para novos pedidos”. (Disponível em: https://www.jn.pt/economia/veja-o-que-o-seu-banco-esta-a-fazer-para-reduzir-os-efeitos-do-covid-19-nas-empresas-e-familias-11973514.html. Acesso em 2.4.2020).

É óbvio que o sistema protetivo-constitucional incide em toda e qualquer circunstância. Já tive oportunidade de afirmar que as salvaguardas constitucionais não são obstáculo, mas instrumento de superação dessa crise. O momento exige grandeza para se buscarem soluções viáveis do ponto de vista jurídico, político e econômico.

 As consequências da pandemia se assemelham a um quadro de guerra e devem ser enfrentadas com desprendimento, altivez e coragem, sob pena de desaguarmos em quadro de convulsão social.

O que se colhe e o motivo de se trazer à tona tal posicionamento, é que a Suprema Corte já entendeu e vislumbrou a crise econômica do país ao ponto de conceder redução de tarifas bancárias, o que claramente aumentará concessão de crédito pelas instituições financeiras. No entanto, não sendo positiva essa abertura, incontestável é a preocupação com a cultura da agiotagem, de modo a voltar os olhos à majoração da pena do crime de usura, pois a prática considerada ilegal é extremamente nociva à economia popular.

Importante pontuar que a cobrança de ágios dentro dos limites legais, não é considerado crime, uma vez que é exatamente o que os bancos fazem quando emprestam dinheiro. (TJDF/2017). Todavia, o empréstimo “informal” e abusivo é crime.

Nas palavras do Ministro Jorge Scartezzini do Superior Tribunal de Justiça "o crime de usura é instantâneo e formal, consumando-se com a mera exigência de juros exorbitantes, acima do permitido legalmente.” (HC 17.943/SP, rel. Min. Jorge Scartezzini, Julgamento em 23/03/2004).

À vista disso, ainda pendente de aprovação[4], o Projeto de Lei n. 5032/2019, proposto pelo Deputado Federal José Nelto, em 11/09/2019, foi para aumentar a pena do crime de usura, previsto no art. 4º da Lei n. 1.521, de 26 de dezembro de 1951. É o atual artigo:

Art. 4º. Constitui crime da mesma natureza a usura pecuniária ou real, assim se considerando:

a) cobrar juros, comissões ou descontos percentuais, sobre dívidas em dinheiro superiores à taxa permitida por lei; cobrar ágio superior à taxa oficial de câmbio, sobre quantia permutada por moeda estrangeira; ou, ainda, emprestar sob penhor que seja privativo de instituição oficial de crédito;

b) obter, ou estipular, em qualquer contrato, abusando da premente necessidade, inexperiência ou leviandade de outra parte, lucro patrimonial que exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, de cinco mil a vinte mil cruzeiros.

O artigo supracitado enquadra o crime de usura pecuniária ou real como conduta delituosa, considerado pelo ato de cobrar juros e outros tipos de taxas ou descontos, superiores aos limites legais, além do ato de realizar contrato abusivo, aproveitando-se da situação de necessidade de outrem para obter lucro excessivo. (TJDF/2017)[5].

O endividamento popular se tornou um grande problema social. A utilização dos créditos ou empréstimos para financiar a vida cotidiana tem se tornado prática cada vez mais corriqueira, incluindo a cultura impura da agiotagem na cultura brasileira. (RODRIGUEZ, 2020).[6]

Some-se a isso, o Superior Tribunal de Justiça em análise ao problema de ordem socioeconômica, já teve oportunidade de manifestar seu entendimento de que “um elevado número de cidadãos encontra-se à margem do acesso ao crédito oferecido pelas instituições financeiras, o que os torna vulneráveis e sujeitos ao talante daqueles que comumente são chamados de agiotas.” (REsp 722600 / SC, rel. Ministra Nancy Andrighi). 

Indubitavelmente, com o aumento do desemprego e da miserabilidade, os mecanismos informais, velhos conhecidos da população, se multiplicaram através do movimento econômico dos agiotas. Ainda que os próprios bancos façam as vezes o papel de agiotas, a escala nociva é incomparável. Os meios que os agiotas utilizam para cobrança pelo inadimplemento são dos mais torvos possíveis. (DOWBOR, 2019)[7].

O indivíduo conhecido como “agiota” pode ser qualquer pessoa física que opte por fazer o patrimônio de forma ilícita pelo seu retorno lucrativo, “prática essa que só traz benefício a quem empresta o dinheiro, que "usurpa" os últimos recursos daqueles que normalmente já está no limite do endividamento.” (MENDRONI, 2020, p. 413)[8].

Sobre a definição do termo “agiota”, o Supremo Tribunal Federal entende por: “O agiota que empresta dinheiro com recursos próprios, mediante a cobrança de juros, ainda que superiores à taxa legal, que poderá responder pelo crime de usura”[9].

Bem sabido que agiotagem promove uma dívida impagável, e, a partir do momento que não é possível mais sustentar e adimplir com os juros altíssimos, são realizadas medidas ilícitas, cobranças mediante grave ameaça, juros sobre dívidas em dinheiro, sendo necessário que a vítima procure a Polícia quando sente-se ameaçada pelas cobranças.

Por considerar atroz e desumana a prática da agiotagem, a PROBUS, entidade associativa beneficente sem fins lucrativos, constituída pela  Universidade do Estado da Bahia - UNEB, desenvolveu uma Cartilha em combate com uma interessante abordagem, o qual se sugere a leitura[10], em destaque:

Há algumas dificuldades que se apresentam na mente de quem está sendo extorquido pela prática usurária. A primeira é o temor de expor seu nome como dependente desse tipo de socorro financeiro extraoficial. A segunda é achar que uma exposição judicial do problema irá comprometer sua imagem de pessoa que honra seus compromissos negociais. A terceira gira em torno da falta de confiança na via judicial, quase sempre motivada pela convicção de que não tem como comprovar a agiotagem de que está sendo vítima.

Não é novidade a tentativa de barrar a prática onzenária no ordenamento jurídico, tanto que está expresso na MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2.172-32, DE 23 DE AGOSTO DE 2001, acerca das nulidades contratuais:

Art. 1º São nulas de pleno direito as estipulações usurárias, assim consideradas as que estabeleçam: I - nos contratos civis de mútuo, taxas de juros superiores às legalmente permitidas, caso em que deverá o juiz, se requerido, ajustá-las à medida legal ou, na hipótese de já terem sido cumpridas, ordenar a restituição, em dobro, da quantia paga em excesso, com juros legais a contar da data do pagamento indevido;

Não obstante, vislumbra-se nos Tribunais a redução de taxas de juros e nulidades de cláusulas quando verificada a prática de agiotagem na esfera cível[11]. Não somente isso, o Juiz, no âmbito de uma ação cível que visa anular um contrato usurário, caso se convença da existência do crime, pode também remeter ao Ministério Público, para que este inicie o processo criminal através da Denúncia. [12]

Outrossim, quando a providência é criminal, o crime de usura não se basta com a exigência de juros com taxa superior à taxa máxima aplicável, embora essa seja a caracterização, segue, muitas vezes, acompanhado de outros crimes de natureza temerosa, onde medidas cautelares de afastamento do agiota são cruciais para preservação da integridade física, moral e psicológica da vítima (art. 282 do Código de Processo Penal)[13].

Dito isso, importante é o combate a essa prática ilícita e a proposta em análise vem coibir ainda mais os crimes contra a economia popular, deixando de ser branda a penalidade, passando a aumentar as penas do delito de usura presente no art. 4º da Lei n. 1.521/51 para “Pena – reclusão, de quatro a oito anos, e multa, de vinte mil a cinquenta mil reais.”

O fato é que, a cada crise enfrentada pelo país, aumentou de forma considerável a oferta dos empréstimos ilegais e impagáveis. Assim, conclui-se importante a aprovação da nova redação, visto que a pena definida na lei vigente não está mais surtindo a finalidade preventiva/educativa, de modo que está cada vez mais disseminada a cultura da agiotagem no Brasil, tornando difícil o combate da prática.

 

Notas e Referências

[1] MATTEI, Lauro: A crise econômica decorrente do Covid-19 e as ações da Equipe Econômica do Governo Atual - Núcleo de Estudos de Economia Catarinense, 2020. 31p. Disponível em: https://noticias.paginas.ufsc.br/files/2020/03/31.03.20-TD-NECAT-035-2020.pdf Acesso 27/10/2020.

[2] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=82F6B12FB2EB6E758933E19E4D6AF49B.proposicoesWebExterno2?codteor=1806142&filename=PL+5032/2019 Acessado 27/10/2020.

[3]Disponível em:https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=82F6B12FB2EB6E758933E19E4D6AF49B.proposicoesWebExterno2?codteor=1806142&filename=PL+5032/2019 Acessado 27/10/2020.

[4] Tramitando na Câmara dos Deputados o PL 5032/2019,  no momento encaminhado para Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2219961 Acessado em 27/10/2020.

[5] TJDFT, 2020. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao-semanal/crime-de-usura Acessado em 27/10/2020.

[6] RODRIGUEZ, Graciela. Sobre o endividamento, as vozes das mulheres. O Sistema financeiro e o endividamento das mulheres / Organizador Instituto Equit Gênero, Economia e Cidadania Global. – Rio de Janeiro: Instituto Eqüit, 2020. 15p.

[7] DOWBOR, Ladislau. A economia desgovernada: novos paradigmas. [S. l.]: Unisinos, out. 2019

[8] MENDRONI, Marcelo Batlouni: Crime organizado: aspectos gerais e mecanismos legais / Marcelo Batlouni Mendroni. – 7. ed. – São Paulo: Atlas, 2020.

[9] STF, RHC 66.045, Passarinho/Pl u., DJ 23/09/1988; STJ, CC 21.358, Gonçalves, 3a S., u., DJ 17/02/1999.

[10]Disponível em:  https://www.probusbrasil.org.br/hd-imagens/noticias/Agiotagem%20_%20cartilha%20definitiva.pdf Acessado em 27/10/2020.

[11] PRÁTICA DE AGIOTAGEM, EM RAZÃO DA COBRANÇA DE JUROS ACIMA DA TAXA LEGAL. PACTUAÇÃO INCONTROVERSA DE JUROS DE 1,8% AO MÊS. PLEITO DE NULIDADE DO CONTRATO AFASTADA. POSSIBILIDADE DE COBRANÇA DOS VALORES APÓS A IMPOSITIVA REDUÇÃO DA TAXA DE JUROS PARA 1% AO MÊS. "Havendo prática de agiotagem, devem ser declaradas nulas apenas as estipulações usurárias, conservando-se o negócio jurídico de empréstimo pessoal entre pessoas físicas mediante redução dos juros aos limites legais" (REsp 1560576/ES, rel.: Ministro João Otávio de Noronha. J. em: 2-8-2016). [...](TJSC, Apelação Cível n. 0310921-80.2016.8.24.0020, de Criciúma, rel. Des. Rogério Mariano do Nascimento, Primeira Câmara de Direito Comercial, j. 16-11-2017).

[12] TJRJ - APL: 00265524520118190023 RJ 0026552-45.2011.8.19.0023, Relator: DES. Marcus Henrique Pinto Basilio, Data de Julgamento: 11/02/2014, Primeira Câmara Criminal, Data de Publicação: 14/03/2014.

[13] Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm Acessado em 27/10/2020

 

 

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