A crise do ensino jurídico e a simplificação do direito: o dito e o não dito do imaginário da sala de aula – Por Denarcy Souza e Silva Júnior

20/06/2016

A crise do ensino jurídico é, primordialmente, uma crise de paradigmas, assentada em uma dupla face: uma crise de modelo e uma crise de caráter epistemológico.[1] Há nas faculdades de Direito, e minha experiência me permite essa afirmação, uma cultura manualesca, que simplifica o ensino jurídico, criando sensos comuns e standards que são, acriticamente, repetidos em sala de aula.

O positivismo exegético ainda é a regra, a despeito de se afirmar que estamos numa era pós-positivista. Na tentativa de se superar esse estado de coisas, no mais da vez, o senso comum se utiliza de correntes voluntaristas, notadamente das normas-principiológicas, construindo-se novos princípios diuturnamente, gerando o que Streck vem denominando de “Panprincipiologismo”.[2]

É de se ver, que a dogmática trabalhada nas salas de aula, até pela sua inspiração em manuais e compêndios, não considera o direito mais que uma racionalidade instrumental. A regra é a simplificação do Direito, com predomínio do dedutivismo. Por sua vez, a hermenêutica que vem sendo ensinada está muito distante do giro linguístico[3], limitando-se aos métodos tradicionais de interpretação (teleológico, gramatical, literal, etc.).[4]

A doutrina que mais cresce nas faculdades de Direito, nessa ode de simplificação, resume-se a um conjunto de comentários de ementários de jurisprudências, muitas vezes fora do contexto. Nessa cultura dos manuais, a doutrina cada vez mais perde espaço para as decisões dos tribunais, notadamente os superiores, o que tende a se agravar ainda mais com a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil e a ampliação da teoria dos precedentes obrigatórios.

Em vez de se debruçarem em livros de fôlego, os alunos preferem ler informativos de jurisprudência e apostilas neles baseadas, adestrando-se para os quiz shows da prova para ingresso no quadro da Ordem dos Advogados do Brasil e da grande maioria dos concursos públicos. É a crise de caráter espistemológico.

Ainda não se superou o positivismo jurídico exegético, com predomínio do dedutivismo, reproduzindo-se inconscientemente a relação sujeito-objeto. A doutrina cada vez mais vem sendo doutrinada pelos tribunais superiores, num realismo jurídico à brasileira. Correntes voluntaristas, ativismos judiciais, discricionariedades, relativismos de toda ordem, vêm sendo aceitos pela comunidade jurídica como a expressão do pós-positivismo, quando, na verdade, tudo isso não supera o positivismo normativista e sua aceitação da discricionariedade judicial.[5]

Descobrir hoje que o direito não é igual à lei e dar a isso um grau de invenção crítica é subestimar e ignorar o fundamento do positivismo normativista. Por certo Kelsen acharia uma tolice alguém sustentar que texto é igual à norma ou que a lei é a única e plenipotente fonte do direito. A toda evidência, Kelsen riria se lesse o que dele dizem nas salas de aula das Faculdades de Direito no Brasil e nos cursinhos de preparação para concursos públicos e exame da OAB.[6]

Percebe-se que as críticas dirigidas à Kelsen desconsideram que ele já havia superado o positivismo exegético (sintático), e erram em acreditar que a superação do primitivo positivismo estaria nos valores “escondidos” por debaixo dos textos legais. Com isso não superam Kelsen e sua aposta na discricionariedade judicial. As críticas dirigidas ao juspositivismo têm como alvo o positivismo exegético, o que permite uma aceitação, sem maiores reflexões, de outro modelo de positivismo, o semântico.

Eis a crise de paradigmas. De um lado, a crise de modelo, pois ainda não se conseguiu superar o positivismo primevo. Quando muito, acriticamente, aceita-se o positivismo normativista como se estivéssemos diante de um modelo pós-positivista, mas apostando, ainda e sobretudo, na discricionariedade judicial, na ponderação de valores à brasileira (onde o juiz escolhe um dos princípios a ser aplicado), no realismo jurídico (positivismo fático), etc.; de outro, a crise de cariz epistemológico, galgada na simplificação do direito, nos resumos, resumões, manuais de pegadinhas[7], mapas mentais, retroalimentando a outra face da crise.

Dito de outro modo, a crise é circular. Não conseguimos ainda superar o modelo do juspositivismo primitivo, o que desemboca em discussões pequenognosiológicas, que quando muito se limitam a ser caudatárias da Jurisprudência dos Valores, alicerçadas em axiologismos e ponderações à brasileira. Até mesmo a teoria da argumentação jurídica de Alexy[8] vem sendo usada para legitimar decisionismos e solipsismos judiciais, o que vem sendo denominado de Teoria da Katchanga.[9]

Como ainda não conseguimos ir além de Kelsen, as salas de aula, os exames para ingresso nos quadros da OAB e os concursos públicos também refletem esse apego ao juspositivismo primitivo. As faculdades de Direito no Brasil, - não todas, é bom que se diga - se mostram inseridas nessa crise paradigmática, preparando os alunos para as provas de concurso e da OAB, descuidando, sobremodo, da preparação do aluno para enfrentar a realidade existente além dos muros da instituição de ensino superior.

Isso é tão verdade, que ainda predomina no Brasil, o que posso afirmar pela minha experiência pessoal, mas talvez me faltem dados empíricos, o modelo de aulas expositivas. Se por um lado esse modelo permite abarcar, num curto espaço de tempo, vários conceitos e definições, por outro não vai além da análise de textos normativos. Nada além de uma análise sintática é exigida dos alunos, as aulas não têm qualquer profundidade, os professores se contentam com conceitos deslocados das coisas, o que permite dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa.

Pior! Essa crise de modelo permite cursos online e telepresenciais, onde a relação aluno professor é substituída pela tela do computador ou pela projeção da aula. Milhares de alunos estão sendo doutrinados por cursos dessa natureza, sem a faticidade necessária à fusão de horizontes. Não conseguiremos nenhuma mudança no modelo de direito que se ensina no Brasil, se não ultrapassarmos a crença de que o direito pode ser estudado sem o mundo prático, sem o mundo da vida.

Lamentavelmente, posturas relativistas e utilitaristas estão aí a todo momento, permeando o imaginário dos operadores do direito, o que somente será superado com uma drástica mudança de modelo. Temos que sair da relação sujeito-objeto, para a relação sujeito-sujeito em todos os âmbitos do direito, inclusive nos concursos públicos e na prova da OAB.


Notas e Referências:

[1] STRECK, Lenio. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 97.

[2] STRECK, Lenio. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 517-541.

[3] Sobre o giro ontológico-linguístico: GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica; tradução de Flávio Paulo Meurer; revisão de tradução de Enio Paulo Giachini. 14ª ed. Petrópoles: Vozes. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014; e WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Tradução José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultura, 1999.

[4] STRECK, Lenio. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 97.

[5] Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, em especial, o capítulo oitavo.

[6] STRECK, Lenio. Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 31.

[7] Disponível em: www.editoraferreira.com.br/publique/media/manual_pegadinhas.pdf

[8] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014; e ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

[9] http://direitosfundamentais.net/2008/09/18/alexy-a-brasileira-ou-a-teoria-da-katchanga/


 

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