A CRISE DE FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS NO DIREITO PROCESSUAL BRASILEIRO: ALGO PRECISA MUDAR

17/07/2018

Coluna Atualidades Trabalhistas / Coordenador Ricardo Calcini

O Brasil é um país tão complexo que, dentre outras questões problemáticas relevantes, pode se entristecer de não viver apenas uma crise, mas sim crises, com um amplo e infindável plura

A economia está em crise; os Poderes da República estão crise; a política partidária, especificamente, está em crise, assim como o Poder Judiciário; há, ainda, crise de liderança, crise no emprego, na saúde, na educação etc. O cenário é nebuloso. Não é possível ver terra à vista.

Na verdade, digo que o país está em crise, no presente, mas não sei se estou correto, pois ouço vozes mais vividas que me garantem que tudo isso sempre foi assim, só que agora, com meios de comunicação cada vez mais ágeis e modernos, parece que tudo ganha ares de proporção e expressão. Pouco importa, antes ou agora, há uma crise generalizada no Brasil.

Se você assim, como eu, tiver a curiosidade de ler no dicionário o que significa crise, perceberá o quanto essa minúscula palavra é complexa e polissêmica[1]. Apesar disso, dentro dos limites do presente artigo, acredito que possamos tratar a crise como um colapso ou conjuntura desfavorável, anormal e grave que nos assola de forma sistêmica.

O direito processual brasileiro (civil, do trabalho, penal etc.) não foge de sua crise.

No caso do processo civil, por exemplo, tanto as coisas não iam bem que foi editado um novo código, em 2015, sendo certo que ninguém mudaria algo estivesse caminhando adequadamente. O mesmo pode ser dito em relação ao caso do processo do trabalho, profundamente alterado pela reforma trabalhista de 2017.

Por outro lado, culpar apenas o conjunto de normas jurídicas é algo simplista. Dizer que há na lei previsão de muitos recursos, por exemplo, e que por isso o processo brasileiro no geral é lento, é bem mais fácil do que aparelhar seriamente o Poder Judiciário para um prestação jurisdicional célere.

Pois bem, de volta à crise que nos importa, assunto de direito processual que atormenta o cotidiano daqueles atuam em processos judiciais é a questão da (des)fundamentação das decisões judiciais.

O art. 93, inciso IX, da CRFB, impõe, desde 1988, que todas as decisões judiciais sejam devidamente fundamentadas. Mas não é só. A Lei Maior, de forma atípica, traz em seu bojo ainda sanção de nulidade caso a decisão não seja motivada. Ou seja, dada a envergadura desse direito fundamental dos litigantes, o constituinte fez questão de deixar expresso, no texto constitucional, a sanção na hipótese de inobservância da norma, e isso é algo muito expressivo.

Fundamentar, em resumo, significa expor as razões de fato e de direito que levaram o juiz a tomar determinada decisão. Por exemplo: se as partes produzem provas orais e o juiz entende que a testemunha do réu lhe pareceu mais precisa quanto à determinado fato, ele precisa expor porque alcançou essa conclusão (de precisão), bem como expor, por outro lado, porque a testemunha do autor não mereceu a devida credibilidade.

Vale dizer, à luz do exemplo acima, tecnicamente compete ao juiz expor, de maneira específica, porque aceita ou porque rejeita determinada prova, o que nem sempre ocorre nos processos judiciais.

Com efeito, em que pese o teor da norma constitucional, não raras vezes os juízes insistem em descumpri-la.

Ora, tenho certeza que o leitor já se parou com decisões do tipo: “presentes os requisitos legais deferido a tutela”; “fixo o valor da indenização com base nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade”; “indefiro o requerimento, ante as provas dos autos”, etc. Todas essas decisões corriqueiras são exemplos de decisões nulas, por ausência absoluta de fundamentação.

O descumprimento do mandamento constitucional de maneira frontal pode ser ainda exemplificado ante a tese dominante em todos os Tribunais do país, ao menos até o CPC de 2015, de que o juiz não seria obrigado a analisar todos os fundamentos trazidos pelas partes, o que fazia com que os litigantes muitas vezes deduzissem teses que sequer eram apreciadas pelos juízes.

A expressão “o juiz não é obrigado a dialogar com as partes”; o “juiz não é obrigado a rebater teses sucessivas” dentre outras, demonstram certo desprezo, por importar na diminuição de um postulado absurdamente importante que é a motivação das decisões judiciais, princípio que deriva diretamente do devido processo legal.

Ainda hoje vivemos uma verdadeira epidemia de decisões judiciais sem motivação. Linhas, parágrafos e folhas que, se reunidos, nada dizem. As decisões de embargos declaratórios, por exemplo, foram resumidas a um “copia e cola” inadmissível.

Por esse motivo, o CPC de 2015 tentou revolucionar o tema.

Ora, não há advogado que não tenha recebido o art. 489 do NCPC com alegria e esperança, justamente porque, conforme já exposto, parcela da jurisprudência – a partir de regras meramente práticas, sempre com a escusa do volume de trabalho e outras teses absolutamente menores – culminou por simplesmente esvaziar o disposto no art. 93, IX, da CRFB, e a própria grandeza do ato decisório praticado pelo juiz.

A decisão judicial, notadamente a sentença, é o momento em que o juiz demonstra toda a sua grandiosidade, mostra para a sociedade que a toga está sob seus ombros e que a ela ele faz jus, não por ser uma autoridade, mas por ser juiz.

Naquelas laudas onde vidas são decididas ele precisa mostrar para as partes que leu todas as folhas, analisou todas as provas e concluiu por esse ou aquele caminho, ainda que seja trabalhoso, cansativo, exaustivo, pois, repita-se, ele é juiz.

E como ele o faz? Através dos fundamentos da decisão judicial.

Ali, naquelas folhas, ele precisa transmitir confiança as partes. A confiança de que certo ou errado, com base em todos os elementos dos autos, ele concluiu pelo melhor caminho possível. Isso é fazer justiça.

Contudo, mesmo após anos de vigência do CPC de 2015, não é o que vemos nos dias atuais. Pouco ou quase nada mudou em termos de fundamentação das decisões judiciais, o que é muito grave.

A comunidade jurídica esperava que algumas distorções práticas fossem ser corrigidas, o que infelizmente, a meu sentir, não ocorreu.

A mera citação de ato normativo (lei, por exemplo), dissociado de fundamentos que o liguem ao caso concreto, de forma prática, é imprestável; a mera menção a conceitos jurídicos indeterminados (vício formal “grave”), que justamente por sua indeterminabilidade são vagos e imprecisos, continuam sendo normais no cotidiano forense.

Aquelas velhas práticas de simplesmente dizer que “não há obscuridade, contradição e omissão e, por isso, rejeita-se os embargos declaratórios” ou “ausentes os pressupostos legais indefiro a liminar”, deveriam ter sido marcadas de morte à luz inciso III, do parágrafo 1º, do art. 489 do CPC, mas não foi o que se deu.

A sensação que tenho, sinceramente, é de que nada mudou. Tudo continua como antes. Há um silêncio ensurdecedor que precisa ser quebrado.

Decisões judiciais desfundamentadas, além de viciadas, tendem a refletir um desprezo do juiz com o caso sob julgamento, pois o juiz quando julga, sem atentar para a boa técnica da fundamentação, costuma a fazê-lo de forma imprecisa e equivocada. Via de regra, decisões assim não conseguem captar os detalhes do caso, aquilo que o transforma em algo singular.

A fundamentação adequada das decisões judiciais é algo que enobrece a atividade judicial, faz com que o juiz deixe um réu, devedor, por exemplo, em situação constrangedora, onde eventual recurso se torna mero ritual de passagem, sem qualquer possibilidade de alterar o contéudo decisório. Uma decisão sem fundamentação, por outro lado, faz o litigio perdurar e abre oportunidade para recursos diversos.

O respeito à Constituição Federal e ao art. 489 do CPC não pode mais tardar, seja no processo civil, do trabalho e em qualquer outro.

 Os direitos dos litigantes, em qualquer seara, não podem ser aviltados.

Algo precisar mudar.

 

Notas e Referências

[1]  O dicionário que consultei aponta não menos do que 12 conceitos de crise -  http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=crise – acessado em 12.07.2018 às 11:56.

 

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