A criminalização da falta de recolhimento do ICMS – Por Velocino Pacheco Filho

15/02/2017

A conduta delituosa prevista no inciso II do art. 2º da Lei 8.137/1990 não é apenas deixar de recolher tributo no prazo legal, mas deixar de recolher tributo descontado ou cobrado. Incorre nesse crime o responsável tributário, conforme definido no inciso II do parágrafo único do art. 121 do CTN, ou seja aquele a quem a lei atribui o dever de recolher o tributo no lugar do contribuinte. O exemplo perfeito é a retenção de Imposto de Renda pela fonte pagadora.

O substituto tributário teria, então, a natureza jurídica de depositário infiel das importâncias retidas de terceiros e que não as recolheu, no prazo legal, aos cofres públicos (PAULINO, 1999, p. 68). É a lei formal que transformou as empresas em fontes arrecadadoras de tributos devidos por terceiros.

Mas, incorreria também nesse crime o contribuinte do ICMS que deixasse de recolher o ICMS declarado, relativo a operações próprias? Em outras palavras, o contribuinte de direito seria um mero agente arrecadador, descontando ou cobrando o ICMS devido na operação do comprador da mercadoria – o contribuinte de fato?

A falta de recolhimento do ICMS declarado, nos termos da legislação vigente, caracteriza evidentemente infração tributária. Portanto, o débito deve ser inscrito em dívida ativa e levado à execução, acrescido da multa respectiva. Mas, além disso, constituiria também crime, punível com pena privativa de liberdade – detenção de seis meses a dois anos?

A descrição da conduta delitiva deve ser exata:. O princípio enunciado por Beccaria – nullum crimen, nulla poena sine praevia lege – foi consagrado no inciso XXXIX do art. 5º da Constituição da República – portanto, entre os direitos fundamentais: “não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

Em outros termos, somente lei em sentido estrito pode definir qual conduta deve ser considerada criminosa. Não se admitem lacunas na configuração dos tipos criminais ou nas condutas que os caracterizam. Nem mesmo as chamadas “normas penais em branco” admitem lacunas, pois o conteúdo ausente deve ser preenchido por outra norma pertencente ao sistema. Se a previsão legal for inexistente ou incompleta, não fica caracterizado o crime e, sem crime, não há punição.

Assim, a elaboração de normas incriminadoras é função exclusiva da lei, isto é, nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada sem que antes da ocorrência desse fato exista uma lei definindo-o como crime e cominando-lhe a sanção correspondente. A lei deve definir com precisão e de forma cristalina a conduta proibida (BITENCOURT, 2008, p.11).

A descrição da conduta proibida não pode ter o seu sentido completado pelo juízo valorativo do magistrado, o que representaria grave violação à segurança jurídica e ao princípio da reserva legal.

Assim, para a caracterização do crime previsto no inciso II do art. 2º é imprescindível que o ICMS repercuta integralmente sobre o contribuinte de fato o qual arcaria com todo o ônus tributário. Apenas em tal hipótese o contribuinte de direito se caracterizaria como mero agente arrecadador.

Então, a falta de recolhimento do ICMS declarado pelo contribuinte de direito caracteriza o crime capitulado no inciso II do art. 2º da Lei dos crimes contra a ordem tributária?

Decidiu afirmativamente a esta questão a Quinta Turma do STJ, no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus 44465 SC, relator o Min. Leopoldo de Arruda Raposo, publicado no DJe 25-6-2015. Com efeito, entendeu a turma que o não recolhimento do ICMS declarado pelo próprio contribuinte é fato que se amolda, em tese, ao crime previsto no art. 2º, II, da Lei 8.137/1990. O relator, em seu voto, deixa claro que o contribuinte deixou de recolher aos cofres públicos os valores apurados e declarados à Secretaria da Fazenda.

Contudo, em sentido contrário entendeu a Sexta Turma do mesmo Sodalício, no julgamento do REsp. 1.543.485 GO, Sexta Turma do STJ, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura (DJe 15-4-2016) que o não recolhimento de ICMS próprio caracteriza mero inadimplemento da obrigação tributária. O delito do artigo 2º, inciso II da Lei nº 8.137/90 exige que o sujeito passivo desconte ou cobre valores de terceiro e deixe de recolher o tributo aos cofres públicos. O comerciante que vende mercadorias com ICMS embutido no preço e, posteriormente, não  realiza  o  pagamento  do tributo não deixa de repassar  ao  Fisco  valor  cobrado  ou  descontado de terceiro, mas simplesmente torna-se inadimplente de obrigação tributária própria.

Quem tem razão?

Alfredo Augusto Becker distingue entre a repercussão jurídica e a repercussão econômica do tributo. A “incidência jurídica do tributo significa o nascimento do dever jurídico tributário que ocorre após a incidência da regra jurídica sobre sua hipótese de incidência realizada”. O contribuinte de direito é a pessoa que sofre a incidência jurídica do tributo. Enquanto a “pessoa que suporta definitivamente o ônus econômico do tributo (total ou parcial), por não poder repercuti-lo sobre outra pessoa, é o contribuinte ‘de fato’” (BECKER, 2002, p. 533).

Ora, leciona o mesmo autor que a repercussão jurídica do tributo, de modo algum, significa a realização da repercussão econômica do mesmo. Esta repercussão econômica pode ocorrer apenas parcialmente ou até não se realizar, embora no plano jurídico tenha se efetivado.

Isto por que “os fatores decisivos da repercussão econômica do tributo são estranhos à natureza do tributo e determinados pela conjuntura econômico-social” (idem, p. 541). Com efeito, embora o tributo seja sempre uma componente do preço, não necessariamente será suportado pelo contribuinte de fato. Ele pode ser suportado, no todo ou em parte pelo contribuinte de direito (via redução do mark up). Quando isso acontece?

Em primeiro lugar, a capacidade de transferir o tributo ao adquirente da mercadoria depende de como o mercado daquele produto se organiza (monopólio, oligopólio, concorrência monopolista ou concorrência pura). Em um mercado oligopolista (poucos vendedores e muitos compradores), quem vende pode impor o preço a quem compra, inclusive repassando integralmente o imposto que onerou a mercadoria. Contudo, no caso dos monopsônios (um só comprador) ou oligopsônios (poucos compradores e muitos vendedores) o poder de monopólio atua contrariamente à repercussão do tributo.

Já em regime de concorrência – muitos compradores e muitos vendedores – o preço é definido pela interação entre vendedores (oferta) e compradores (demanda). A empresa é uma tomadora de preços e consequentemente ela somente transfere o tributo ao adquirente se e na medida em que o mercado o permitir. A repercussão do tributo, nesse caso, depende de características do mercado do produto em questão, tais como a elasticidade-preço da demanda (i. e. como a demanda do produto reage a um aumento de preços).

Ora, em regime de concorrência, a empresa não vende o produto pelo preço que quiser, de modo a transmitir ao consumidor a integralidade do tributo. A empresa é uma tomadora de preços.

Ora, a repercussão econômica do ICMS é reconhecida expressamente pelo art. 166 do CTN que ao tratar da restituição do indébito, para preservar os direitos do contribuinte de jure, condicionou a restituição à prova de que o requerente não repassou o ônus do tributo ao adquirente da mercadoria ou, tendo-o repassado, estar por ele autorizado a pedir restituição. O próprio STF editou, nesse sentido, a Súmula 546: “Cabe restituição de tributo pago indevidamente, quando reconhecido por decisão, que o contribuinte ‘de jure’ não recuperou do contribuinte ‘de facto’ o ‘quantum’ respectivo”.

Ou seja, o contribuinte de direito poderá demonstrar que arcou com o ônus do imposto e não o repassou no preço cobrado. Em outras palavras, o legislador reconhece expressamente que o tributo não necessariamente repercute sobre o contribuinte de fato, caso em que será suportado, ainda que parcialmente pelo contribuinte de direito.

Nesse caso, a criminalização da simples falta de recolhimento decorre de uma ampliação, não pretendida pelo legislador, e da adoção de uma ficção pelo intérprete (qual seja: que o tributo sempre repercute, integralmente, sobre o consumidor). Porém, a repercussão econômica não foi afastada pelo legislador positivo. Pelo contrário, ele a reconhece ao tratar de repetição do indébito.

Então, considerando a repercussão econômica, não podemos afirmar simplistamente que todo o tributo é sempre suportado pelo contribuinte de fato. Por conseguinte, não se pode afirmar que o ICMS declarado e não recolhido caracterizaria necessariamente o crime previsto no inciso II do art. 2º da Lei 8.137/1990.

Becker, com espeque em Earl R. Rolph, critica o entendimento de que o acréscimo do tributo ao preço, por si só, significa repercussão do mesmo. É o caso dos que se julgam tributados quando se lhes apresenta uma fatura em que o vendedor põe o imposto como uma das parcelas. O preço cotizado separadamente do imposto na ausência deste não seria um fato observável (BECKER, 2002, p. 541).

O autor citado refere-se a esta visão esquemática do direito tributário, como “a simplicidade da ignorância”. O direito de reembolso – o direito de recuperar o imposto recolhido do contribuinte de fato – não constitui prova da repercussão. Mediante o direito de reembolso, ocorre no plano jurídico uma repercussão jurídica do tributo que é independente da repercussão econômica do mesmo (op. cit, p. 414).


Notas e Referências:

PAULINO, José Alves. Crimes contra a Ordem Tributária: comentários à Lei 8.137/90, Brasília: Brasília Jurídica, 1999

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Vol. 1: Parte Geral, São Paulo: Saraiva, 2008

BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3ª ed. São Paulo: Lejus, 2002


Artigo anteriormente publicado no Blog Direito Tributário em Debate em 28/11/2016.


 

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