A criação do Instituto Brasileiro de Pesquisas e Estudos em Direito, Democracia e Ministério Público

26/08/2019

Coluna Empório Descolonial / Coordenador Márcio Berclaz

 

Nos últimos dias 15 a 17 de agosto de 2019, na Faculdade de Direito da USP, em Ribeirão Preto-SP, com a participação de diversos professores e membros do Ministério Público, realizou-se evento científico e assembleia de criação do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estudos em Direito, Democracia e Ministério Público.

Entre os temas da discussão estiveram o processo de democratização do Brasil em contexto político adverso, o acesso à justiça no Estado Democrático de Direito, o futuro do Ministério Público e as experiências inovadoras no Ministério Público.

Foram expositores do referido evento Juarez Rocha Guimarães, Marco Antonio Mondaini de Souza, Milton Lahuerta, Antônio Alberto Machado, Camilo Zufelato, Gregório Assagra de Almeida, Susana Henriques da Costa, João Luiz Carvalho Botega, Lenna Luciana Nunes Daher e este subscritor.

A propósito do momento brasileiro, as discussões salientaram a importância da teoria da dependência, construída desde a periferia e não a partir do centro, a relevância do método histórico-estrutural para pensar o capitalismo como sistema, a necessidade de se construir um projeto de país que opte pela civilização e não pela barbárie destrutiva disseminada.

Problematizou-se a questão da justiça de transição e o fato de nós, brasileiros, não termos sido capazes de construir uma cultura integralmente democrática, inclusive porque, a partir da ideia de uma insegurança geradora de um estado de exceção permanente, perdeu-se a “batalha da comunicação” para o ultraneoliberalismo, não havendo outra alternativa a não ser a ação, que precisa abranger a democratização do poder, o enfrentamento da financeirização (e predação) da economia brasileira (e do próprio risco de venda do patrimônio nacional), sem descuidar do enfrentamento da desigualdade e da corrupção, pois tratam-se de fenômenos associados, já que a corrupção mina os fundamentos da República e a destruição do público é muito prejudicial a quem efetivamente mais precisa do Estado.

No painel de acesso à justiça questionou-se o cenário de aproximadamente pelo menos 80 milhões de processos, dos quais quase 40% são execuções fiscais, nos quais o INSS é um dos maiores litigantes, razão pela qual é preciso repensar o poder público e o Estado em Juízo como litigantes repetitivos, até mesmo porque acesso ao Judiciário não implica em acesso à justiça.  inda, mencionou-se a importância de o Ministério Público como agente da sociedade atuar em perspectiva mais horizontal e sem a pretensão de tutelar a sociedade.

Na sequência, questionou-se a mistificação jurídico-formal que, por decorrer de alta taxa de inefetividade dos direitos fundamentais, por vezes pode ser atribuída em relação ao acesso à justiça e ao Estado Democrático de Direito, aspecto último que exige uma perspectiva utópico transformadora que respeite o primado da lei e permita o atingimento dos conteúdos sociais de mudança, o que precisa ser feito para fora do próprio Judiciário que, especialmente por sua cultura liberal, é um poder para solucionar conflito, normalmente no plano interindividual, não propriamente para distribuir direitos.

Ainda, no mesmo assunto, apontou-se a ausência de superação de dois dilemas éticos: 1) colonização exploratória baseada na lei da vantagem e na desconfiança; 2) no problema da alienação em relação à ilegalidade ou abuso de poder. Salientou-se que para além da mera previsão de direitos são necessários mecanismos de proteção para lutar por um acesso efetivo à justiça, que precisa não ser uma mera técnica de exercício de poder, mas espaço de inclusão social e de concretização de direitos fundamentais para mudança social, com especial atenção para o modelo de solução extrajurisdicional de caráter resolutivo e não adjudicatório. Questionou-se o fato de que um ano de pagamento a investidores da dívida pública representara o gasto de mais de uma década e meia de bolsa-família, razão pela qual somente deveríamos admitir a invasão na esfera de direitos fundamentais quando o governo tiver demonstrado planificação e ação concreta para reduzir outros gastos, o que não tem ocorrido nas situações de crise. Isso porque o modelo adotado pela Constituição não foi o de um mínimo existencial, mas sim a opção pela transformação social, como mostra o artigo 3o da Constituição da República.

É nesse contexto que o Ministério Público, mais uma vez sob ataque, precisa ser compreendido como uma garantia de acesso à justiça, não só jurisdicional, mas, sobretudo, extrajudisdicional, com especial atenção para os direitos coletivos, na luta de defesa da Constituição com ênfase para o controle de constitucionalidade, com esforço para ampliar a participação da sociedade no planejamento estratégico da instituição e na sua própria atuação cotidiana, até mesmo porque o Ministério Público é uma instituição na qual o cidadão comparece e exerce a sua cidadania, razão pela qual também precisa mudar seu paradigma de atuação, a fim de que a instituição trabalhe na perspectiva de projetos sociais que dialoguem e interfiram positivamente na sociedade.

Mencionou-se a importância de se pensar o que é acesso à direito no Brasil, o que inclui o debate sobre relevância da política para o direito, para a democracia e para o próprio sistema de Justiça, o que exige que seja repensado o formato dos concursos públicos de seleção de membros do sistema de justiça e as capacitações daí decorrentes. Até mesmo porque o fortalecimento do Ministério Público (e da própria Defensoria Pública como instituição com a qual o diálogo é necessário) não pode desestimular o desenvolvimento da própria sociedade civil. Temas como o encarceramento em massa, a falta de respeito ao direito fundamental de habitação ou mesmo de saúde e educação colocam em discussão como tem sido o controle jurisdicional de políticas públicas pelo próprio Ministério Público, o que precisa ser feito com reflexão crítica e respeito a uma perspectiva contramajoritária.

Especificamente em relação ao futuro do Ministério Público, diversas foram as propostas. A necessidade de um adequado diagnóstico da instituição do Ministério Público, que é uma instituição em contradição, o que exige repensar o ingresso na carreira, a formação, a importância da disseminação do conhecimento, a mudança de critérios de avaliação, o repensar da função em segundo grau, a necessidade de atuação regional e a transcendência da perspectiva individual para coletiva.

Salientou-se que o futuro do Ministério Público não se afasta dos direitos fundamentais como centralidade, o que coloca a instituição como quem deve cobrar do Estado a efetivação desses direitos, para o que é fundamental o estímulo à autocomposição, à atuação resolutiva e o compromisso com a mudança como bem expresso pela Carta de Brasília e por algumas normativas do próprio Conselho Nacional do Ministério Público. Destacou-se a necessidade da instituição repensar o combate à corrupção e realizar autocrítica sobre os resultados até aqui obtidos, com foco na busca da boa governança e de uma atuação estratégica voltada a projetos e a eixos de detecção, repressão e, sobretudo, prevenção, bem exemplificada pelo necessário fortalecimento do controle interno nas pessoas jurídicas de direito público e no próprio estímulo do controle social.

Destacou-se a necessidade de o Ministério Público ter como desafio pensar no seu devido lugar na construção de um projeto de país a partir de uma perspectiva soberana e não dependente diante de uma democracia fragilizada e ainda despotencializada, o que precisa ser feito não pela lente da modernidade ou pós-modernidade, mas da transmodernidade, para além, portanto, da colonialidade do saber e do poder.   Sustentou-se que o futuro do Ministério Público passa pela redefinição da relação de sujeito e objeto sem desatenção à perspectiva da linguagem. Destacou-se a relevância da instituição focar em medidas estruturantes e dar conta de problemas que alcançam rotinas cotidianas e muitas vezes equivocadas dos entes públicos sob fiscalização. Destacou-se que, ao invés de se desidratar a Constituição, é preciso fortalecer a sua efetivação, o que precisa iniciar a partir de um adequado diagnóstico que permita melhor prognóstico de estratégias para atuação do Ministério Público, destacando-se a importância da racionalização da intervenção, da regionalização e da adequada estruturação de órgãos auxiliares como premissa. Salientou-se a necessidade de o Ministério Público planejar suas ações não apenas a partir da forma e da matéria, a mas desde o que será factível, o que impõe fortalecimento de relações com a universidade e com os movimentos sociais, até mesmo como forma de ressignificar e melhor legitimar a atuação da instituição. Argumentou-se que há uma necessidade de se romper o espelho do Judiciário como paridade para apostar na necessária equalização das atribuições extrajudiciais e judiciais, da atuação criminal e não criminal do Ministério Público como campos distintos que precisam conviver a partir do múltiplo e com cortes transversais entre esses diferentes campos. Falou-se ainda do desafio de se implementar a unidade do Ministério Público, o que não dispensa o fortalecimento da democracia da instituição, que precisa ser exemplar e de diversas dimensões. Pensar o futuro do Ministério é pensar o seu próprio limite do que se pretende, alcance que precisa ser obediencial aos comandos da Constituição como gramática de uma linguagem pública que sobredetermina e dirige o agir institucional.

Por fim, foram expostas experiências de atuação do Ministério Público na promoção da igualdade racial no mercado de trabalho, na defesa do patrimônio público, no âmbito do sistema carcerário, na promoção da defesa do patrimônio cultural, da saúde e da educação.

Enquanto se pretende maior e melhor discussão da comunidade científica e da sociedade sobre o sistema de justiça, acredita-se que o recém criado Instituto tem muito a contribuir para a potencialização desse debate.

 

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