A “coordenação institucional” do Supremo Tribunal Federal como mecanismo de substituição do Poder Legislativo: a ADPF 983 e o Regime de Responsabilidade Fiscal do Estado de Minas Gerais

11/01/2024

O Supremo Tribunal Federal julgou de forma unânime, no plenário virtual, a ADPF 983 pela qual o Governador do Estado de Minas Gerais apontava a omissão da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais em apreciar o Projeto de Lei 1.202/2019, que buscava autorizar a adesão do ente federativo ao Regime de Recuperação Fiscal. Na análise da medida cautelar, o relator,  Min. Nunes Marques, em junho de 2022, deferiu-a reconhecendo que havia, por parte da Assembleia Legislativa, um quadro de “bloqueio institucional” quanto ao tema da adesão do Estado de Minas Gerais ao Regime de Recuperação Fiscal e possibilitou que o Poder Executivo, sem lei formal, prosseguisse na adoção das medidas normativas e administrativas necessárias à submissão do pleito de adesão ao Ministério da Economia.[1] Naquela oportunidade, o Governador do Estado havia apresentado o projeto de lei em regime de urgência e houve o esgotamento do prazo de 45 dias sem aprovação da casa legislativa.

Na decisão de mérito, o próprio relator apontou que, em 21 de novembro de 2022, o Governador solicitou a retirada do PL do regime de urgência, o que foi feito pela Assembleia Legislativa. Tal situação já deveria revelar, para o Supremo Tribunal Federal, um fato superveniente importante que conduziria até mesmo à perda do objeto da demanda. Mas não. O Supremo Tribunal Federal avançou sobre o mérito.

No voto do Min. Nunes Marques, seguido à unanimidade, os poderes do Estado de Minas Gerais são incapazes de superar o quadro de colapso fiscal. Para ele, haveria uma falta de harmonia buscando o bem comum e a concretização dos direitos básicos da coletividade, especialmente por meio daquilo que ele chama de “bloqueios institucionais”.[2]

Diante disso, surge a exigência de promover aquilo que o próprio Min. Nunes Marques denomina de “atuação coordenada e uniforme das instituições públicas”. Em sua concepção, a Constituição optou por um modelo federativo cooperativo e, desse modo, competiria ao Supremo Tribunal Federal realizar uma “coordenação institucional” para promover um “efeito desbloqueador”. Nesse momento de seu voto, a referência é a experiência do Tribunal Constitucional da Colômbia, sobretudo nas penas de Cesár Rodríguez Garavito e Diana Rodríguez Franco, na obra em que analisa a célebre decisão T-25/2004 na questão do deslocamento forçado. A citação, contudo, é equivocada e serve apenas como mecanismo de retórica argumentativa.

Como comparar um déficit fiscal com o deslocamento forçado de cidadãos em seu próprio território que atinge frontalmente a liberdade individual? Sem dúvida alguma, a citação serve apenas para tentar legitimar a visão do Ministro de que o STF serve como “poder mediador” na disputa entre os poderes. Lá, na Colômbia, o “efeito desbloqueador” significou que a Corte Constitucional deveria remover os obstáculos concretos para a efetivação da decisão que garante o direito fundamental à liberdade. Aqui, na fundamentação, o “efeito desbloqueador” seria o mecanismo pelo qual o Supremo Tribunal Federal atua como uma espécie de “moderador” na disputa entre os poderes. Assim, além do problema de tradução da análise dos autores colombianos e da decisão do Tribunal da Colômbia para uma realidade absolutamente distinta, a aplicação parte de supostos completamente diferentes.

Se essa metodologia da fundamentação revela já um problema para a decisão, a interpretação da questão central levada a efeito pelo Supremo Tribunal Federal desborda os limites constitucionalmente determinados para os poderes públicos e demonstra uma ofensa aos pressupostos democrático-institucionais da Constituição de 1988. Em primeiro lugar, como meio para reconhecer a omissão inconstitucional e permitir a atuação do Poder Executivo do Estado de Minas Gerais sem o assentimento da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, o relator sustenta a existência de um “direito fundamental”, jamais previsto na Constituição de 1988 ou em outro ato normativo ainda que internacional, o da sustentabilidade fiscal.

Como se sabe, o cabimento de uma ADPF pressupõe a violação, comissiva ou omissiva, a um preceito fundamental. O conceito de preceito fundamental é construído caso a caso pelo Supremo Tribunal Federal. No entanto, a indeterminação do conceito de preceito fundamental não autoriza o Supremo Tribunal Federal a desconsiderar a normatividade constitucional, aí incluído o respeito ao texto constitucional e aos textos que compõem o bloco de constitucionalidade. Em síntese, o texto é o ponto de partida do processo de interpretação, sob pena de transformar o exercício da interpretação/concretização constitucional em discricionariedade absoluta que atenta contra a própria Constituição.

Nessa medida, não há nenhuma possibilidade de extrair do texto constitucional qualquer referência a um suposto “direito fundamental de sustentabilidade fiscal” e nem mesmo o chamado “equilíbrio fiscal”, embora importante para a atividade financeira estatal. Aliás, o artigo 163, inc. VIII da CF/88 indica que a chamada sustentabilidade da dívida é matéria de lei complementar. Ou seja, cabe ao Poder Legislativo definir os contornos, os limites, os métodos e as medidas de ajuste da dívida pública.

Em sua concepção, no entanto, o relator argumenta que a gestão de uma dívida pública insustentável seria um grave risco para toda a sociedade com a possibilidade de prejudicar a prestação dos serviços públicos, sem nem mesmo especificar concretamente como e qual seriam os serviços públicos afetados. Mais uma vez, o relator se vale de uma retórica argumentativa para extrair um suposto direito fundamental que se traduziria, ao final, em um preceito fundamental, apto a possibilitar o conhecimento da ação de controle concentrado. Assim, há uma fundamentação insuficiente no voto do relator. Dessa forma, a decisão não cumpre  o ônus argumentativo decorrente do discurso de aplicação próprio das atividades judicantes de concretizar e demonstrar qual o preceito fundamental violado no caso concreto. 

No caso do Estado de Minas Gerais, o relator menciona que a rede de notícias oficial do ente federativo mostrou que a dívida pública seria da ordem de R$ 50 bilhões de reais, sendo que o último superávit nas contas públicas estaduais ocorreu em 2012. Diante desse quadro fiscal-orçamentário do Estado de Minas Gerais, o voto passa a tecer algumas considerações acerca dos requisitos para a adesão ao Regime de Recuperação Fiscal instituído pela Lei Complementar 159/2017.

Assim, o relator diz que, nos termos do art. 2º da Lei Complementar 159/2017, o Plano de Recuperação Fiscal é formado por uma série de medidas legais e administrativas, que visam à chamada “austeridade fiscal”, dentre as quais, a privatização das empresas controladas pelo ente estatal; adoção das regras do Regime Geral de Previdência Social para o Regime Próprio; redução dos incentivos fiscais que impliquem em renúncia de receitas; revisão do regime jurídico dos servidores públicos do ente; instituição do regime de previdência complementar; regras que limitem o crescimento anual das despesas primárias à variação do IPCA e a realização de leilões de pagamento com o critério de julgamento de maior desconto (art. 2º, §1º da LC 159/2017). A adesão ao Regime de Recuperação Fiscal exige, ainda, o diagnóstico da situação de desequilíbrio financeiro e detalhamento das medidas de ajuste, com os impactos e o prazo de duração na qual as partes assinam um pré-acordo (art. 3º da LC 159/2017).

Nessa fase de pré-adesão, o art. 3º, inc. V do Decreto 10.681, que regulamenta a Lei Complementar 159/2017, exige lei autorizadora para a adesão ao Regime de Recuperação Fiscal. Essa exigência de lei, em sentido formal e material, tem o condão de satisfazer o princípio republicano na gestão pública. É a ausência dela, então, que o voto considera uma omissão inconstitucional. Em sua consideração, a atuação do Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer a omissão legislativa, deve incentivar o prosseguimento dos demais procedimentos para a recuperação da saúde fiscal do Estado, ou seja, o Supremo Tribunal Federal apenas realizaria um “desbloqueio institucional e o movimento das engrenagens políticas, pacificando conflitos, mediante incentivos para que os atores políticos adiram dialogicamente às suas competências constitucionais outrora negligenciadas”.[3]

No entanto, ao pressuposto de que o Supremo Tribunal Federal promove o diálogo no reconhecimento de uma pretensa omissão legislativa inconstitucional, a decisão em verdade agride frontalmente a competência constitucionalmente delimitada do Poder Legislativo estadual.

Vale dizer, as medidas que estão contempladas na Lei Complementar 159/2017 nada mais são do que a institucionalização da chamada “austeridade fiscal”. A política da austeridade fiscal, basicamente, consiste em um modelo de atuação econômico-financeiro difundido pelo FMI – Fundo Monetário Internacional para o equilíbrio fiscal dos Estados em momentos de crises econômicas. Mais do que uma medida técnica, é um mecanismo ideológico que advém da perspectiva econômica neoliberal na qual a redução dos gastos públicos possibilitaria o debelamento de crises econômicas e financeiras. No entanto, essas medidas escondem um verdadeiro viés ideológico e não apresentaram os resultados esperados nos países em que foram largamente implementadas.[4]

Isso já demonstra que o Supremo Tribunal Federal acaba por naturalizar a ideia de que a austeridade fiscal seria a única receita para o ajuste fiscal e que a não adoção dela já implicaria necessariamente omissão legislativa, a colocar em risco a própria legalidade orçamentária, a eficácia administrativa e mesmo a continuidade dos serviços públicos.

No entanto, se trata de medida polêmica, inclusive criticável quanto à sua própria compatibilidade com os princípios e objetivos fundamentais da Constituição de 1988[5], e cujos resultados são, no mínimo, questionáveis, para os pretensos fins de possibilitar a melhoria dos serviços públicos e a concretização dos direitos fundamentais. E, como se trata de política questionável, há uma intensa disputa sobre ela e, no limite, o risco sempre presente de fraude à Constituição[6].

Nessa medida, o lócus constitucionalmente adequado para a adoção ou não dessa política é também o Poder Legislativo estadual, por meio do devido processo legislativo. Suprimir a atuação da Assembleia Legislativa atenta contra o princípio democrático, a separação de poderes e mesmo contra a autonomia estadual, eis que é a sua competência e a sua institucionalização que também possibilitam a adequada formação da vontade pública em processos deliberativos no âmbito estadual.

É bom ressaltar que, no Estado Democrático de Direito, mesmo as questões técnicas devem ser submetidas ao escrutínio da formação democrática da razão e vontade pública[7]. A gestão pública deve ser republicana e o ciclo orçamentário, em virtude de revelar as prioridades do gasto público, deve contar necessariamente com a deliberação e a aprovação do Poder Legislativo.

A decisão do Supremo Tribunal Federal, todavia, adota uma concepção autoritária de gestão pública na qual o Legislativo acaba sendo tratado como uma instância desnecessária, quando muito legitimadora, para a definição das políticas financeiras públicas pelo Poder Executivo.

O Supremo Tribunal Federal, portanto, sob o argumento do “desbloqueio institucional”, atropela o devido processo legislativo, fere o princípio federativo e suprime a competência da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais. Trata, em verdade, o Poder Legislativo como mera instância legitimadora de ratificação da vontade do Poder Executivo e, sob o pretexto de promover a harmonia entre os poderes, acaba por ofender a separação dos poderes e a função constitucionalmente delimitada a cada um deles, em âmbito estadual, na efetivação das políticas financeiro-orçamentárias.

Vale ressaltar que o Projeto de Lei ainda está em tramitação na Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, sobretudo em suas comissões legislativas, que são órgãos técnica e politicamente competentes para a análise das diretrizes e os efeitos de políticas econômico-financeiras públicas. O tempo para a discussão de projetos técnica e politicamente complexos é distinto e deve ser respeitado pelo Poder Judiciário. O tempo para a deliberação no Poder Legislativo é distinto do tempo do Poder Executivo. A submissão do Poder Legislativo, tratado como mera instância de legitimação, ao tempo e à vontade do Poder Executivo mostra uma concepção autoritária do processo legislativo, típico da ditadura militar e incompatível com a Constituição de 1988 e com o Estado Democrático de Direito[8], e não uma medida para promover um suposto “diálogo institucional”.

 

Notas e referências

[1] Decisão disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF983MINASGERAISDECISaO.pdf, acesso em 10 de janeiro de 2024.

[2] A minuta do voto do relator pode ser consultada em: https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2024/01/5799172.pdf, acesso em 10 de janeiro de 2024.

[3] A minuta do voto do relator pode ser consultada em: https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2024/01/5799172.pdf, acesso em 10 de janeiro de 2024.

[4] BLYTH, Mark. Austeridade: A história de uma ideia perigosa. Tradução Freitas e Silva. Lisboa: Editora Quetzal, 2013.

[5] BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento, 2 ed. São Paulo: Almedina, 2022.

[6] CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Contribuições para uma Teoria Crítica da Constituição, 3 ed. Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2023.

[7] HABERMAS, Jürgen. Facticidade e Validade: Contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democracia. Trad. Felipe Gonçalves Silva e Rúrion Melo. São Paulo: UNESP, 2020.

[8] CARVALHO NETTO, Menelick de. A sanção no procedimento legislativo, 2 ed. Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2022.

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