A convalidação dos benefícios fiscais e o impacto na guerra fiscal do ICMS - Por Deonísio Koch

15/11/2017

Conforme se sabe, o ICMS tem a sua origem inspirada no IVA europeu, imposto este próprio para ser exigido no ambiente político de Estado unitário.

Sem pretender adentrar na evolução histórica do tributo, no Brasil, a ideia do imposto federal, com distribuição de receita aos Estados e Distrito Federal, não vingou. Os entes federados  defendiam a sua autonomia financeira através da preservação da competência tributária, que consiste no poder legiferante, tanto para instituir, conceder benefícios fiscais e estabelecer todo o regramento de sua exigência,1 surgindo assim, o imposto estadual, hoje conhecido como ICMS. Agiram bem os Estados, pois não poderiam eles depender de repasses de verbas da União, com prejuízos na autonomia política. Por outro lado, esta descentralização da competência tributária deu origem ao primeiro requisito para o estabelecimento da guerra fiscal, da forma que hoje conhecemos.

Antevendo o conflito de interesses que adviria do estabelecimento unilateral de benefícios fiscais entre os Estados, criou-se a Lei Complementar nº 24/75 para disciplinar a sua concessão, através de convênio autorizativo a ser celebrado entre os Estados representados em reunião do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), lei esta que foi recepcionada pela atual Constituição Federal 2. Entre outros regramentos desta lei complementar, um ponto merece destaque: a decisão unânime dos Estados representados para anuir na concessão do benefício fiscal por um determinado Estado (§ 2º, do art. 2º).

Como o quorum unânime é quase impossível de ser atingido, os governos estaduais passaram a conceder benefícios fiscais à revelia da anuência dos demais Estados, violando, portanto, a própria Constituição Federal. Surge aí o incremento final para a consolidação da guerra fiscal no âmbito do ICMS, que consiste numa competitividade autofágica entre os Estados em fazer a melhor oferta de incentivos para atrair investimentos ou mesmo para isentar do pagamento do tributo determinados setores econômicos ou empresas, motivado nem sempre pelo nobre interesse público e sem a observância das regras disciplinadoras para a concessão dos benefícios previstas nos artigos 175 a 182, do CTN.    

Evidentemente, este estado permanente na ilegalidade dos entes federados, com o acirramento da guerra fiscal, criou uma relação de desconfiança, gerando um desconforto geral. Em alguns casos havia demandas judiciais pelo Estado prejudicado contra o benefício fiscal concedido irregularmente. Já havia jurisprudência consolidada no Supremo Tribunal Federal pela decretação de inconstitucionalidade da concessão dos incentivos fiscais à revelia do procedimento legal prescrito. Chega-se ao ponto de o STF acenar para a possibilidade de editar uma súmula vinculante3, considerando inconstitucionais todos os benefícios fiscais concedidos sem a prévia aprovação em convênio no âmbito do Conselho Nacional da Política Fazendária (CONFAZ).

Ocorre que esta decretação de inconstitucionalidade de normas outorgantes de benefício fiscal operaria com efeito ex tunc, resultando na obrigatoriedade do recolhimento de todo o tributo objeto de renúncia fiscal irregularmente concedida, dentro do prazo decadencial, o que geraria um passivo tributário insustentável dos contribuintes incentivados. O cenário acenaria para um caos tributário.

Certamente, este aceno do STF de editar a mencionada súmula foi a principal motivação para que o Congresso Nacional, pressionado pelos Estados interessados, aprovasse a Lei Complementar nº 160/2017, apelidada como lei de convalidação dos benefícios fiscais, para neutralizar a finalidade da súmula, dando uma trégua com relação às preocupações decorrentes das possíveis suspensões dos efeitos dos benefícios fiscais concedidos irregularmente.

A mencionada Lei Complementar não é norma de conduta direta, mas de estrutura, na medida em que permite que os Estados e o Distrito Federal celebrem convênio autorizativo, atendendo alguns requisitos estabelecidos, para que estes deliberem sobre questões relacionadas aos incentivos fiscais concedidos irregularmente, à revelia do disposto na LC nº 24/75, e, portanto, inconstitucionais.

Este convênio deve ser editado pelo CONFAZ dentro de 180 dias contados a partir da publicação desta Lei Complementar (08/08/2017), e deverá ser aprovado por 2/3 (dois terços) das unidades federadas e 1/3 (um terço) das unidades federadas integrantes de uma das 5 (cinco) regiões do País. Como se percebe, não se exige, para este convênio, a unanimidade prevista para a autorização de concessão de incentivos fiscais nos termos do § 2º, art. 2º, LC 24/75. Portanto, está tudo por fazer ainda: tanto o convênio como as leis de cada Estado e Distrito Federal para dispor sobre a matéria. Aguarda-se toda essa produção legislativa.

Bem, quais seriam estas matérias a serem legisladas pelos Estados e Distrito Federal sob a autorização do convênio?  

Uma primeira medida, talvez a mais impactante aos interesses dos contribuintes, é a remissão dos créditos tributários, constituídos ou não, decorrentes dos benefícios fiscais concedidos em desacordo com a legislação por lei estadual publicada até a data de início da vigência desta Lei Complementar. Esta medida permite extinguir todo o passivo tributário que decorra da aplicação de normas de incentivo fiscal editadas sem a autorização do CONFAZ, como por exemplo, a glosa de créditos do ICMS na mesma proporção do crédito presumido outorgado. Esta remissão alcança os créditos tributários constituídos por lançamento de ofício, com repercussão, portanto, nos tribunais administrativos e judiciais, bem como, de forma atípica4, os fatos futuros, desde que decorrentes de lei publicada até a vigência de LC nº 160/2017.

Uma segunda medida a ser autorizada pelo convênio é a reinstituição dos benefícios fiscais concedidos à revelia da legislação (LC nº 24/75), que ainda se encontrem em vigor, observados os prazos estabelecidos que variam de 1 a 15 anos, dependendo do ramo de atividade do contribuinte incentivado.   

Estarão, ainda, os Estados e o Distrito Federal, autorizados a estender a concessão dos benefícios fiscais em vigor e concedidos irregularmente a outros contribuintes estabelecidos em seus territórios, sob as mesmas condições e prazo para a fruição, preservando o princípio da isonomia nos favores fiscais. Da mesma forma, as unidades federadas poderão aderir aos benefícios fiscais concedidos ou prorrogados por outra Unidade da Federação da mesma região.

Visando não comprometer a implementação desta nova ordem relacionada a benefícios fiscais, essa Lei Complementar afasta expressamente as restrições decorrentes da aplicação do art. 14, da LC 101/2000, lei que dispõe sobre a responsabilidade fiscal, e as sanções previstas no polêmico art. 8º, da LC 24/75, este último que tem servido de fundamento legal para a glosa do crédito, pelo Estado de destino, do montante do ICMS correspondente ao crédito presumido outorgado no Estado de origem.

É inevitável a indagação: quais os reflexos desta Lei Complementar sobre a guerra fiscal? Será ela extinta? Continuará ela sob nova roupagem normativa? Ou a guerra fiscal continuará o seu curso para futuros incentivos fiscais?

Bem, cabe lembrar que a motivação principal da guerra fiscal é a exigência de unanimidade dos Estados representados para deliberar sobre a concessão de benefícios fiscais (art. 2º, § 2º, LC 24/75). Contrário do que declaram algumas personalidades políticas nos veículos de imprensa, esse quorum não foi alterado pela presente lei. O quorum de 2/3 das unidades federadas e 1/3 das unidades federadas de cada região, já referido linhas acima, tem aplicação exclusiva para as deliberações previstas nessa lei: a remissão e a reinstituição de benefícios fiscais e as providências decorrentes.

A concessão de benefícios fiscais em geral, não contemplados nesta Lei Complementar, continuará condicionada à anuência unânime pelos Estados representados para a deliberação. Se a intenção do legislador foi abolir esta unanimidade, não o fez no texto da lei. Por conseguinte, é equivocada a ideia de que a guerra fiscal tem o seu ciclo encerrado; ela continuará enquanto não for extinta a sua causa.

 

1 Não confundir a competência tributária com a capacidade ativa tributária, que é o poder de fiscalizar e arrecadar um tributo, que pode ser de competência alheia.

2 Art. 150, § 6º, da Constituição Federal, fazendo menção ao art. 155, § 2º, XII, “g”, da CF, bem como o art. 34, § 8º, dos ADCT, da CF.

3 Súmula nº 69 – “Qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou de base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do Confaz [Conselho Nacional de Política Fazendária], é inconstitucional.”

4 A atipicidade referida decorre do fato de a remissão ser forma de extinção do crédito tributário já existente, não sendo instrumento usualmente aplicado para perdoar créditos de fatos futuros. 

 

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