A construção de novas linguagens é imprescindível para a realização da mediação transformadora

17/10/2015

Por Patrícia Cordeiro e Luciana Chemin - 17/10/2015

“o seu olhar melhora o meu”

Arnaldo Antunes

Um estudo realizado pelo Conselho Nacional de Justiça durante o ano de 2014, revelou que o Brasil possui 99,7 milhões de processos em tramitação. Considerando que a população brasileira é de 200 milhões de habitantes aproximadamente, esse número é gritante. É preciso levar em conta também o gasto público que esses processos demandam. De acordo com o CNJ, foi gasto com o judiciário 68,4 bilhões de reais em 2014, que equivale a 1,2% do PIB referente à totalidade de gastos públicos no Brasil. À parte dos dados técnicos, esses números revelam a crise de sentido e a incompreensão crescente na sociedade, que atribui à Justiça a expectativa de vingança.

Conflitos sempre existiram e sempre existirão, fazem parte das complexidades da vida, mas a questão é a forma de lidar com esses conflitos. Uma sentença não coloca fim a um problema, por vezes cria outros. Por isso, é necessário discutir formas alternativas de resolver conflitos, como a mediação, por exemplo. Entretanto, não se trata de qualquer mediação, realizada por qualquer sujeito, trata-se da mediação transformadora proposta por Luís Alberto Warat, onde os sujeitos envolvidos percorram seus próprios territórios afetivos (des)conhecidos e reencontrem a subjetividade adormecida. Nesse prisma o mediador deve ser um possibilitador. Warat afirma:

A mediação não se preocupa com o litígio, ou seja, com a verdade formal contida nos autos. Tampouco, tem como única finalidade a obtenção de um acordo. Mas, visa, principalmente, ajudar os interessados a redimensionar o conflito, aqui entendido como conjunto de condições psicológicas, culturais e sociais que determinaram um choque de atitudes e interesses no relacionamento das pessoas envolvidas (2001, p.80-81).

A mediação transformadora se preocupa com as complexidades humanas, e com as percepções dos envolvidos. Não há ganhador ou perdedor, mas há pessoas que juntas buscam a melhor alternativa para o conflito. Cabe ao mediador fazer com que os envolvidos possam crescer e aprender com o conflito e reconstruir suas relações. Para tanto, é preciso construir linguagens.

Embora cada palavra traga um significado histórico-social, esse significado é constantemente alterado e manipulado a depender do contexto e situação, por isso incide em erro buscar o “verdadeiro” significado das palavras. Logo, as palavras são mutáveis e imutáveis. Imutáveis por carregarem consigo significado histórico-social e mutáveis por serem passíveis de alterações no decorrer do tempo, sem entretanto, anular completamente a carga significativa que a compõe historicamente. No direito busca-se incansavelmente interpretar a “vontade” das leis, atribuindo apenas o caráter imutável dos significados, que constitui mais um recurso de manipulação através das palavras e como expõe Warat:

Os juristas, é preciso ressaltar, admitem parcialmente esta propriedade dos signos jurídicos, sobretudo como um recurso ideológico, para negar às partes envolvidas no processo a possibilidade de alterar as presumidas certezas significativas dos textos legais (WARAT, 1995, p.28).

A propriedade que Warat (1995) se refere é a característica de imutabilidade-mutabilidade. Também por isso as leis são tão alheias aos conflitos. Grande parte dos processos judicias demoram anos para serem julgados, de modo que quando a sentença sempre chegará tarde. Os sujeitos não são os mesmos, não teriam como ser, embora como os signos carreguem a carga histórico-social. Mas o que quer se dizer é que decide-se com base no que já não existe, ignora-se a mutabilidade dos signos.

A realidade adquire um valor que não admite nenhuma suspeita e, portanto, rejeita no plano do saber as necessidades de mudança. Desta maneira, o discurso científico das ciências sociais e jurídicas perde a possibilidade de converter-se em um discurso de denúncia, de diagnóstico das desigualdades e dos mecanismos de dominação. Este tipo de discurso científico, obviamente, é uma linguagem adormecedora (WARAT, 1995, p. 48). 

A linguagem jurídica trata os significados como “óbvios”, desconsiderando o contexto que influenciará os modos de significar. De modo que afirma Warat (1995) possuir o termo dois níveis de significação, um de base e o outro contextual. Como dito anteriormente, embora um termo carregue significado histórico, há de se considerar as mudanças que decorrem do ato comunicacional. Por isso, não é possível que um termo seja completo e se encerre em si mesmo. Não é estático e imutável. Dentre as variáveis que alteram o modo de significar estão o sujeito e o contexto. O termo é campo de sentido em aberto, esperando tradução.

Para Warat (1995) o significado base deve ser visto como uma etapa de interpretação, pois nela nunca se esgota. O sentido percorre o dito e o calado. Alerta que o significado base e a significação gramatical das palavras, podem servir para encobrir a busca de sentidos, esgotar imaginários, ignorar o sentido latente. Neste sentido, a linguagem como forma de análise do exposto e do encoberto, para chegar-se no latente.

Com isso, manipula desejos, sonhos e realidade, violência significativa, imaginária, como diz Warat (1995). Imaginária no sentido de castrar a criatividade, as possibilidades, a liberdade. A violência significativa pode ser entendida como imposição de significação totalizante, que visa manter suposta coesão e sentido. Com a violência significativa é criada uma linguagem constituída por representações que se afastam da realidade, como as leis e os discursos jurídicos. Afirma Warat que as representações imaginárias limitam os desejos, sentimentos e emoções. O sujeito torna-se passivo à dominação e incapaz de notar contradições. A violência significativa através da modulação do imaginário social, age diretamente nos limites éticos e passa a ditar o que é certo, justo, bom e mau. A diversidade, as diferenças são postas na categoria do invisível, e os significados postos como imutáveis. E por terem sido postas na categoria do invisível, do indizível, tornam-se “inexistentes”. Nas palavras de Warat (1995, p.111): “Um plano de captura, com imenso poder de censura sobre os pensamentos, sentimentos e atos que tendem abalar suas evidências”.

O imaginário social produz e reproduz sujeitos que veem o mundo da forma que foram instruídos a pensar, não há muito espaço para o questionamento dos significados e significantes. A instituição exerce grande relevância na produção alienada da realidade, quando impede que novas ideias se difundam, nasçam, cresça e floresçam.

Os valores utilizados para realizar a interpretação são pontos-chave para Hulsman (2003), e por isso necessitam ser repensados. Na busca por caminhos que visem fornecer respostas às situações-problemas, faz-se necessário reconstruir o evento, entender suas condições, mas também repensar os valores e a validade dos valores usados na reinterpretação; cautela é necessário, tendo em vista o que alerta Huslman (2003, p. 194, 195): “o cardápio não é a refeição, o mapa não é o território”. Um evento que é objeto de um discurso ou de qualquer tipo de processo de tomada de decisão é sempre reconstruído. A reconstrução nunca é idêntica ao evento. Dito de outro modo, não é possível avaliar o que e de que forma ocorreram os fatos, senão ter somente uma visão aproximada. Entretanto, para que chegue-se à reconstrução é preciso considerar as interpretações dos diretamente envolvidos, do contrário se chegará a uma visão ainda mais distante e desconexa do ocorrido, ou seja, a reconstrução só poderá ser considerada válida ou minimamente apta quando levar em conta o que os envolvidos pensam e sentem, quando levar em conta as significações atribuídas por eles. Pode ocorrer de algo ser extremamente repudiado por uma pessoa, e para a outra representar apenas um leve desconforto, ou nem isso. Já a resposta criminal, quando alcança os fatos, é totalizante e ignora tais interpretações e significados atribuídos desenvolvidos pelos diretamente envolvidos.

Para alcançar uma mediação transformadora é necessário mudar a linguagem: “impossível criticar esse mundo empregando precisamente os signos que os constituem. Precisamos repensá-los. Questionar seus limites. Transformar a língua num escorpião que crave o ferrão na própria cabeça. (WARAT, 2004, p. 110).


Notas e Referências:

HULSMAN, Louk. Temas e conceitos numa abordagem abolicionista da justiça criminal. In Verve, São Paulo, Nu-Sol/PEPG-Ciências Sociais PUC/SP, n. 03, 2003, pp. 190-209.

WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2º versão. Sergio Antonio Fabris Editor. 1995.

WARAT, Luis Alberto. O oficio do mediador. Habitus Editora, 2001. 279 p

WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista  pelos  lugares  do  abandono  do sentido  e  da  reconstrução  da  subjetividade.  Florianópolis: Fundação Boietux, 2004.


Patricia Cordeiro

Patrícia Cordeiro é graduanda em Direito e Comunicação Social – Jornalismo.

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Luciana Chemin

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Luciana Chemin é advogada, especialista e mestranda na UNIPAR. Coordenadora Adjunta do Curso de Direito e do Núcleo de Prática Jurídica da UNIVEL - Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel.

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Imagem ilustrativa do post: David Walker, “In/Human”… // Foto de: Marie Aschehoug-Clauteaux // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/marie-aschehoug-clauteaux/5188599328/

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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