A CONSEQUÊNCIA DO CRESCENTE NEGACIONISMO CIENTÍFICO NO PODER JUDICIÁRIO

21/08/2023

Resumo

Os perigos e consequências do negacionismo científico estão por toda parte e não é diferente nas decisões judiciais. 

ARTIGO 

O negacionismo científico vem crescendo em todo o mundo. 

Trata-se da rejeição de evidência cientifica, seja por motivos ideológicos, políticos ou religiosos, trazendo consequências preocupantes e desastrosas para a sociedade. 

A história de Galileu Galilei (século XVII) é um bom exemplo de que a negação cientifica é calamitosa e vem ocorrendo a vários anos. 

Galileu Galilei defendia, através de teorias e estudos científicos sobre astronomia, que o Sol era o centro do Universo. Por outro lado, a Igreja Católica, à época, continuava defendendo, de acordo com a interpretação de textos bíblicos que o homem era a figura central da criação divina e estando o homem na Terra, ele teria que estar, portanto, no centro do Universo. 

Este embate com a Igreja Católica, mesmo havendo evidências científicas robustas de que o Sol é o centro do Universo, levou a condenação de Galileu Galilei à prisão domiciliar (1633), onde permaneceu até a sua morte (1642)[1]

Mesmo em pleno século XXI, é possível perceber que ainda há muito negacionismo científico no mundo. 

O desenvolvimento de vacinas, por exemplo, é um dos maiores avanços científicos na área da saúde pública. Sendo certo, que ao longo da história, têm prevenido e controlado doenças infecciosas, salvando milhões de vidas em todo o mundo. E ainda assim há quem questione sua eficácia, indo contra todos os dados e fatos. 

No caso da pandemia da COVID-19, por exemplo, a eficácia e segurança da vacina para combater a propagação e reduzir os impactos causados pelo coronavírus (SARS-CoV-2), foram comprovadas através de inúmeros estudos científicos realizados em todo mundo, disponíveis para consulta[2], contudo, o negacionismo científico, impulsionado por informações falsas e desinformação alimenta a hesitação e resistência à imunização de diversas pessoas no mundo inteiro, comprometendo os esforços de controle dos impactos acarretados pelo vírus. 

Essa percepção do negacionismo científico no Poder Judiciário, infelizmente, não é diferente, pois, constantemente, se ignora a pesquisa científica ao prolatar a decisão judicial. 

Portanto, é essencial promover a educação científica, de modo a fazer com que a ciência seja valorizada e utilizada como base para políticas públicas e decisões judiciais, a fim de proteger a saúde e o bem-estar da população. 

Sem a pretensão de esgotar as hipóteses do negacionismo no Poder Judiciário, ele, muitas vezes, ignora as Diretrizes de Utilização existentes nos protocolos para determinado procedimento; ignora a bula do medicamento (medicamentos off label); ignora as pesquisas científicas e os pareceres dos órgãos técnicos, como o NATJUS; considera pesquisas científicas de baixa qualidade; ou considera, apenas, a opinião de um único médico para obrigar o custeio de novas tecnologias em saúde pela União, Estados, Municípios ou Planos de Saúde. 

Para justificar esse negacionismo científico, um dos fundamentos utilizados pelo Poder Judiciário é que a pesquisa cientifica não analisou, avaliou ou examinou o paciente, devendo ser custeado/coberto o tratamento indicado pelo médico assistente.  Vejamos: 

De outro ângulo, cabe acrescentar que, de acordo com o CNJ, são “os Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário – NATJUS (criado pela Resolução 238/2016) destinados a subsidiar os magistrados com informações técnicas”, a partir da “criação de um banco de dados nacional para abrigar pareceres técnico-científicos e notas técnicas elaboradas com base em evidências científicas na área da saúde, emitidos pelos Núcleos de Apoio Técnico ao Judiciário (NATJUS) e pelos Núcleos de Avaliação de Tecnologias em Saúde (NATS)” (https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/forum-da-saude-3/e-natjus/). Logo, os Nat-Jus, assim como a ANS, não examinam, diagnosticam, prescrevem ou acompanham o paciente, como o faz o seu médico assistente. Os Nat-Jus, assim como a ANS, não se responsabilizam perante o paciente pelo mau uso de determinado procedimento ou pela má indicação de certo tratamento. Logo, a prescrição feita por quem, ao fim e ao cabo, irá se responsabilizar, perante o beneficiário, pelo tratamento realizado, ganha especial importância na valoração das provas, embora não se possa negar que as manifestações dos Nat-Jus, como as da ANS, são válidas para orientar o juízo e municiá-lo de informações técnicas que podem ser consideradas na formação de sua livre convicção.( SJT – voto da Ministra Nancy Andrighi no EResp 1.886.929 - SP (2020/0191677-6) – Julgamento: 08/06/22) 

Oportuno registrar, no particular, que os pareceres expedidos pelos centros de apoio - tal como, exemplificativamente, o NAT-JUS -, justamente por terem sido confeccionados de forma apriorística, sem a análise das particularidades do quadro clínico apresentado pelo menor, não pode ser erigido como elemento probatório absoluto para análise do pedido de concessão de tutela provisória de urgência. 

Portanto, tendo sido diagnosticada a doença da qual padece o paciente, o plano de saúde se encontra obrigado, por força contratual, a fornecer o tratamento médico que, diante das particularidades clínicas, se revelou mais adequado e específico ao combate da moléstia.

Isto porque, tendo em vista que o plano de saúde não exclui a doença acometida pelo menor - ou seja, ele presta serviços médico-hospitalares para a recuperação daqueles que padecem de autismo infantil (CID - F84.0) -, se revela abusiva a oposição de qualquer obstáculo quanto à cobertura de algum tipo de tratamento necessário à recuperação de saúde.

Logo, resta demonstrada a necessidade do paciente em se submeter ao tratamento médico prescrito, bem como às terapias descritas por profissional que acompanha o seu caso.” (TJMG -  Agravo de Instrumento-Cv  1.0000.21.025856-2/001, Relator(a): Des.(a) Ana Paula Caixeta , 4ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 01/07/2021, publicação da súmula em 02/07/2021) 

Cumpre registar que as decisões judiciais baseadas em opiniões e crenças pessoais em detrimento das evidências científicas podem resultar em aprovação de tratamentos ineficazes ou até mesmo perigosos, o que, ao invés de auxiliar ou até mesmo curar o paciente, acaba por prejudicar a sua saúde. 

A racionalidade científica[3] deve estar presente tanto no exercício da medicina, quanto, nas decisões proferidas pelo Poder Judiciário, a fim de evitar um catastrófico desvio de resultado baseado no testemunho de cura ou eficácia. 

Vejamos o que nos ensina os estudos sobre a Medicina Baseada em Evidências[4]

Ao profissional da saúde não cabe “curar”, mas “cuidar” – não é a cura que deve ser sua meta final, mas as “condições do cuidar” que permitam a cura, o cuidar no qual ela pode se dar. A cura pode acontecer durante o processo, inclusive de modo espontâneo. A melhora após a administração de um medicamento não prova que é o medicamento que a está promovendo, o testemunho não é uma prova de sua eficácia, pode constituir uma hipótese, uma fonte para a pesquisa, mas deve ser verificada. Uma afecção pode apresentar períodos naturais de melhora, ou melhora espontânea, mas mesmo em afecções crônicas em que a melhora espontânea é improvável, seus períodos de estabilidade podem estar associados a processos psicológicos ou simbólicos não específicos, característicos de um efeito placebo. Estabelecer a diferença entre esses dois eventos se torna determinante para os profissionais de saúde. A racionalidade científica deve se fazer presente para evitar desvios resultantes do testemunho de cura e para consagrar a validação do resultado.

Os estudos científicos realizados de acordo com a Medicina Baseada em Evidência são fundamentais para a identificação de tratamentos eficazes e seguros e, portanto, devem ser levados em consideração nas decisões judiciais, especialmente aquelas decisões relacionadas à saúde. Até porque a opinião de um único profissional ou poucas opiniões sem qualquer embasamento científico, pode ser eivada por ideologias, interesses políticos ou religiosos ao ponto de negar a mais evidente pesquisa cientifica. 

Através de estudos obtidos pela Unimed Federação Minas[5], onde foram analisadas 449 decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, percebe-se que 84% dos desembargadores deste egrégio Tribunal, mesmo após a vigência da lei 14.454/22 que exige a comprovação da eficácia do tratamento à luz das ciências da saúde baseada em evidências cientificas, já proferiram decisões considerando, apenas e exclusivamente, a opinião do médico assistente do paciente para autorizar o tratamento ao enfermo. 

As crenças que negam a ciência e que vem se proliferando no Poder Judiciário podem ter efeito devastador, devendo ser tratadas e observadas com bastante atenção. 

É inquestionável que o crescimento do negacionismo científico no mundo e no Poder Judiciário acarreta graves consequências, inclusive para os próprios pacientes e para a população. Isso ocorre tanto ao expor as pessoas a tratamentos sem qualquer comprovação cientifica, como a criarem jurisprudências, na área da saúde, contrarias aos estudos científicos firmados na Medicina Baseada em Evidência. 

Assim, é importante que todas as decisões sejam baseadas em evidências científicas sólidas para garantir a proteção da saúde e o bem-estar do próprio paciente, tornando o futuro da saúde da população mais sustentável e seguro.

 

Notas e referências

[1] Site: https://pt.wikipedia.org/wiki/Processo_de_Galileu_Galilei - acessado em 31/05/2023

[2] revista New England Journal of Medicine – Site: https://www.jwatch.org/na56045/2023/05/23/effectiveness-and-durability-bivalent-covid-19-mrna - acesso: 31/05/2023 – The Lancet – Site: https://www.thelancet.com/journals/laninf/article/PIIS1473-3099(22)00320-6/fulltext - Acesso em 31/05/23

[3] oposição ao negacionismo científico

[4] Faria, Lina faria, Jose Antonio de Oliveira Lima, Naomar Almeida Filho; MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS: Breve aposte histórico sobre marcos conceituaus e objetivos práticos do cuidado – Acessado: https://doi.org/10.1590/S0104-59702021000100004 em 31/05/23

[5] Sistema de power BI desenvolvido pela Unimed Federação Minas e denominado de Painel Inteligência Judicial - https://bi.unimedmg.coop.br/powerbi/?id=685C212B-C935-40C5-BB0A-A95A34D2072E – acesso: 03/08/2023

 

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