A conexão constitutiva entre Direito e Política na constituição do Estado Democrático de Direito: um diálogo com Arendt e com Habermas – Por Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

30/04/2016

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“Podemos, então, interpretar a ideia do Estado de Direito, genericamente, como a exigência de que o sistema administrativo, que é regido pelo código do poder, se vincule ao poder comunicativo de formação do Direito e se mantenha livre das interferências diretas do poder social, ou seja, da força factual que têm os interesses privilegiados de se imporem”. (HABERMAS, Facticidade e Validade)

Para Habermas, na primeira parte do capítulo IV, de Facticidade e Validade, intitulada “A conexão constitutiva entre Direito e Política” (HABERMAS, 1998, p. 200-218), o Direito se apresenta como um sistema de direitos, se o observamos do ponto de vista da sua função de estabilizar expectativas generalizadas de comportamento (HABERMAS, 1998, p. 200). Entretanto, esses direitos só podem ser garantidos por organizações que sejam capazes de tomar decisões coletivamente vinculantes. Por sua vez, tais decisões devem seu caráter coletivamente vinculante à forma jurídica de que se revestem.

Todavia, Habermas adverte (1998, p. 201) que o poder político organizado não é somente um complemento funcionalmente necessário do sistema de direitos; o poder político estatal não assume a sua posição junto ao Direito a partir do exterior, mas, ao contrário, é pressuposto pelo Direito e se estabelece na forma jurídica. O poder político, assim, somente pode se desenvolver através de um código jurídico institucionalizado na forma de direitos fundamentais (HABERMAS, 1998, p. 201).

Isso permitiu, por exemplo, ao constitucionalismo alemão do século XIX conceber o Estado de Direito a partir de uma conexão direta, em “curto-circuito”, entre direitos individuais e poder estatal, de tal modo que a própria idéia do Estado de Direito pressuporia, assim, a garantia da autonomia privada e a igualdade dos cidadãos. Todavia, para Habermas (1998, p. 202), do ponto de vista da Teoria do Discurso, como veremos a seguir, não é a forma jurídica como tal ou um conteúdo moral dado a priori que garante legitimidade a uma forma de dominação política.[2]

A ideia do Estado de Direito exige, ao contrário, que as decisões coletivamente vinculantes do poder estatal organizado, a que o Direito deve recorrer para o cumprimento de suas próprias funções, não apenas se revistam da forma jurídica, mas, por sua vez, se legitimem com base em leis legitimamente promulgadas. Num nível pós-convencional de justificação, somente podem ser legítimas aquelas leis passíveis de serem racionalmente aceitas por todos os membros da comunidade jurídica, em um processo democrático de formação discursiva da opinião e da vontade comuns (HABERMAS, 1998, p. 202). O que também significa que essa aceitabilidade racional tem o efeito reverso de o exercício da autonomia política ser incorporado ao Estado, que a atividade legislativa se constitua, portanto, como um poder no Estado (HABERMAS, 1998, p. 202).

Assim, com a passagem à forma de associação vertical que representa o Estado, a práxis de autodeterminação dos cidadãos é institucionalizada, quer seja como construção informal da opinião na esfera pública política, como participação política dentro e fora dos partidos ou como participação nos processos eleitorais, na deliberação e na tomada de decisão nas casas parlamentares, etc.

A soberania popular, assim, se entrelaça, mais uma vez, com o poder político organizado no Estado e o princípio segundo o qual o poder emana do povo se realiza mediante pressupostos e condições de comunicação e de procedimentos institucionalmente diferenciados de formação da opinião e da vontade comuns.

A soberania popular, nesses termos, não se deixa encarnar apenas em uma assembleia de cidadãos autônomos; ela se remete novamente às formas de comunicação desprovidas de sujeito que circulam através dos fóruns e organismos deliberativos. Somente nessa forma anônima, segundo Habermas (1998, p. 203), um poder comunicativo pode vincular o poder administrativo do aparato estatal à vontade dos cidadãos.

Se de um ponto de vista funcional, o poder, ao desempenhar a função própria de realizar fins coletivos, institucionaliza o Direito no Estado, e o Direito, ao estabilizar expectativas de comportamento, atua como meio de organização da dominação política (HABERMAS, 1998, p. 211), considera Habermas, entretanto, que uma análise funcionalmente restrita das relações entre os códigos do Direito e do poder poderia sugerir um quadro enganoso de intercâmbio equilibrado e autossuficiente entre Direito e poder político (HABERMAS, 1998, p. 212).

Todavia, a secularização do início da modernidade logo deixou claro que a forma jurídica como tal não é suficiente, como já afirmado, para legitimar o exercício da dominação política. Se por um lado o poder político somente garante a sua autoridade normativa ao se fundir ao Direito, por outro a força legitimadora do Direito só se mantém se ele operar como fonte de justiça:

“Precisamente como o poder político conserva os instrumentos de coerção aquartelados na reserva como uma fonte de poder-violência, o Direito também deve permanecer presente como uma fonte de justiça. Mas tal fonte seca rapidamente se o Direito torna-se disponível tão só para qualquer razão de Estado.” (HABERMAS, 1998, p. 212) 

Na Europa dos séculos XVII e XVIII, quando o processo de positivação jurídica já se encontrava em curso, os teóricos do Direito Natural Racional se viram confrontados com aquele tipo de dominação descrita por Max Weber como “dominação legal” (WEBER, 1997, p. 173-180). A ideia do Estado de Direito, nesse contexto, tinha o sentido crítico, para esses teóricos, de revelar uma contradição no interior das próprias ordens jurídicas, pois as formas de dominação legal poderiam ocultar prerrogativas normativamente injustificadas (HABERMAS, 1998, p. 212). Nesse caso, o Direito Natural Racional denunciava a contradição entre o Direito como forma de organização da dominação estatal que poderia se afirmar de fato e o Direito como condição de legitimidade de uma ordem de dominação que pudesse recorrer à autoridade de leis justificadas (HABERMAS, 1998, p. 213).

Como sabemos, nas sociedades pré-modernas, estabelecia-se uma conexão entre um Direito de fato estabelecido e um Direito de base religiosa e tradicional, pretensamente legítimo, que veio a se romper, justamente, com o processo de modernização social e cultural. Com a perda dessa base de legitimação tradicional e religiosa, o Direito Natural Racional assumirá, num primeiro momento, a tarefa de preencher esse vazio de legitimidade na “circulação entre poder instrumentalmente entendido e direito instrumentalizado” (HABERMAS, 1998, p. 213), advindos desse processo de modernização. Nas palavras de Habermas:

“Após o colapso do revestimento do Direito sagrado, deixando como ruínas as duas colunas do Direito politicamente editado e do poder instrumentalmente empregado, a razão, por si só, deveria prover um substituto para o Direito sagrado, que se autoriza a si mesmo – um substituto que devolveria autoridade ao legislador político figurado como o detentor ou titular do poder.” (HABERMAS, 1998, p. 214)

Todavia, o Direito Natural Racional, fundado tão-somente na razão, também se apresenta como um Direito suprapositivo e, assim, não é capaz de superar, segundo Habermas (1998, p. 214), a ideia de um antagonismo original entre Direito e poder.

Outra perspectiva se abre, entretanto, com o conceito de autonomia política, reconstruído no marco da Teoria do Discurso, a qual pode explicar porque para a geração de Direito legítimo devem ser mobilizadas as liberdades comunicativas dos cidadãos (CF. HABERMAS, 1998, p. 214; GÜNTHER IN ROSENFELD e ARATO, 1998, p. 234-254). Essa explicação pressupõe, segundo Habermas (1998, p. 214),[3] que a produção legislativa depende da geração de outro tipo de poder, o poder comunicativo que, como afirma Hannah Arendt (1958, p. 200; 1999, p. 93-156), ninguém é efetivamente capaz de “possuir”, pois “o poder surge entre os homens quando atuam em comum e desaparece tão logo se dispersam.” (ARENDT, 1958, p. 200) De acordo com esse modelo, Direito e poder comunicativo surgem de modo co-originário da “opinião com a qual muitos tenham publicamente acordado.” (ARENDT, 1965, p. 71) A leitura teorético-discursiva que se faz da autonomia política torna necessária, portanto, uma diferenciação no conceito de poder político. Segundo Habermas:

“Se não se devem secar as fontes de justiça de onde o próprio Direito retira a sua legitimidade, o poder administrativo estatal, constituído em termos jurídicos, deve, então, assentar-se em um poder comunicativo de elaboração legislativa.” (HABERMAS, 1998, p. 214)

Mas esse poder comunicativo, que para Habermas (1998, p. 214) é introduzido dogmaticamente por Arendt, necessita de maiores esclarecimentos.

Nesse sentido, para além de um exame que considere o uso público das liberdades comunicativas em termos cognitivos, como uso possibilitador da formação da opinião e da vontade racionais, em que o livre processar de temas e de contribuições, de razões e de informações relevantes, deve justificar a presunção de racionalidade para os resultados alcançados mediante um devido procedimento, é necessário, agora, considerar que as convicções discursivamente produzidas e intersubjetivamente compartilhadas possuem uma força motivadora (HABERMAS, 1998, p. 214). E ainda que permaneça limitado à força tênue e suavemente motivadora das boas razões, o uso público das liberdades comunicativas revela-se, nesse aspecto, como um gerador de “potenciais de poder” (Arendt). Segundo Habermas (1998, p.214), o modelo que representa os posicionamentos com um “sim” ou com um “não” frente às mais simples ofertas de atos de linguagem muito bem o ilustra:

“O reconhecimento intersubjetivo de uma pretensão de validade levantada em um ato de linguagem produz, ou pelo menos reforça, uma crença comum compartilhada por falante e ouvinte, e essa crença importa na aceitação tácita de obrigações relevantes para a ação; nessa medida, ele cria um novo fato social. Pois bem, mediante a mobilização das liberdades comunicativas dos cidadãos para a geração de Direito legítimo, as obrigações ilocucionárias desse tipo expandem-se e adensam-se em um potencial com que aqueles que ocupam posições de poder administrativo devem contar.” (HABERMAS, 1998, p.215)

Como bem chama a atenção Habermas (1998, p. 215), o problema fundamental do poder (Macht, Power) não é para Hannah Arendt,[4] como é para Max Weber, “a possibilidade de impor, numa relação social, a própria vontade contra vontades opostas” (WEBER, 1997, p. 43; p. 696), mas sim o potencial de uma vontade (ação) comum formada em uma comunicação isenta de coerção. Arendt (1999, p. 123-124) contrapõe poder (Macht, Power) à violência (Gewalt, Violence), quer dizer, o poder gerador de consenso de uma comunicação voltada para se alcançar o entendimento em contraposição à capacidade de se instrumentalizar a vontade dos outros em função dos próprios interesses.

Segundo Arendt, “o poder corresponde à capacidade não somente de agir, mas de agir de comum acordo.” (1999, p. 123). Assim, esse poder comunicativo somente pode se desenvolver em esferas públicas não deformadas, somente pode surgir das estruturas de intersubjetividade não danificadas de uma comunicação não distorcida.

O poder comunicativo somente surge ali onde a formação da vontade e da opinião comuns envolve a força produtiva de uma “maneira de pensar alargada” (KANT, 1993, § 40, B 158, p. 140-141), dada pela liberdade comunicativa irrestrita que cada um tem “para fazer um uso público da sua razão em todos os elementos” (KANT, 1995, A 484, p. 13).

E essa abertura ou alargamento do pensar é, pois, alcançada pelo “fato de que a gente atém seu juízo a juízos não tanto efetivos quanto, antes, meramente possíveis de outros e transpõe-se ao lugar de qualquer outro, na medida em que simplesmente abstrai das limitações que acidentalmente aderem ao nosso próprio ajuizamento” (KANT, 1993, § 40, B 157, p. 140) ou quando uma pessoa “não se importa com as condições privadas subjetivas do juízo, dentro das quais tantos outros estão como que postos entre parênteses, e reflete sobre o seu juízo desde um ponto de vista universal (que ele somente pode determinar enquanto se imagina no ponto de vista dos outros)” (KANT, 1993, § 40, B 159, p.141) [5].

Nesse sentido, Arendt recorre, em suas Lições sobre a Filosofia Política de Kant (1993, p. 52-60), à Crítica da Faculdade do Juízo kantiana (§40, B 158) para mostrar como se dá a conexão interna entre poder, liberdade comunicativa, discurso e imparcialidade.

Segundo Habermas:

“Hannah Arendt não concebe o poder político como um potencial para a afirmação dos interesses particulares de alguém ou de realização de finalidades coletivas, nem como o poder administrativo de tomada de decisões coletivamente vinculantes, mas como uma força de autorização que se expressa na criação do Direito legítimo e na fundação das instituições. Ele se manifesta em ordens jurídicas que protegem a liberdade política; na resistência contra as forças de repressão que ameaçam interna e externamente a liberdade política; e, sobretudo, nos atos de fundação da liberdade que ‘criam novas instituições e leis’. Ele emerge em sua forma mais pura naqueles momentos em que os revolucionários assumem o poder deitando-se nas ruas; quando uma população comprometida com a resistência pacífica resiste aos tanques estrangeiros de mãos nuas; quando minorias convencidas de seus direitos questionam a legitimidade das leis vigentes e se engajam na desobediência civil[6]; quando o ‘puro prazer de atuar’ emerge nos movimentos de protesto. Recorrentemente, é o mesmo fenômeno que se revela, a íntima relação de parentesco da ação comunicativa com a geração do Direito legítimo, que Hannah Arendt persegue nos distintos eventos históricos e cujo paradigma ela encontra no poder constituinte de fundação da Revolução Norte-Americana.“ (HABERMAS, 1998, p. 216) 

Assim, diferentemente das construções do Direito Natural Racional, nos mostra Habermas (1998, p. 216)[7] que o contraste conceitual fundamental efetuado por Hannah Arendt entre poder e violência coloca o poder político ao lado do Direito.

Para a tradição do Jusracionalismo, segundo Habermas (1998, p. 216), a transição do estado de natureza para o estado civil se caracterizaria pela renúncia das partes no contrato social de suas liberdades naturais, baseadas na força física de cada indivíduo, para uma autoridade estatal que, assim, reuniria os potenciais de violência dispersos e os utilizaria para disciplinar, mediante leis, as liberdades subjetivas, construção essa que, nas palavras de Habermas, faz com que o Direito que emerge daquela renúncia à violência sirva para “a canalização de uma violência que assim é conceitualmente equiparada ao poder político” (HABERMAS, 1998, p. 216). Diferentemente, a distinção efetuada por Arendt entre poder e violência subverte essa contraposição. Isso porque na concepção arendtiana o Direito se vincula de per si com um poder comunicativo que engendra o Direito legítimo.

Tal vinculação entre Direito e poder comunicativo torna desnecessária a tarefa clássica de encontrar um substituto para as já esgotadas fontes de justiça que representava um Direito Natural que se auto-legitima, um substituto que pudesse suprir a violência meramente factual da autoridade da roupagem do poder legítimo.[8] Segundo Habermas:

“Hannah Arendt, ao invés, deve explicar como cidadãos unidos tornam o Direito legítimo através da formação do poder comunicativo, bem como juridicamente asseguram esta prática, ou seja, o exercício de sua autonomia política. O parentesco conceitual dos processos de elaboração do Direito e de formação do poder político novamente torna claro, em retrospectiva, porque o sistema de direitos em resposta a essa questão deve aparecer imediatamente como Direito positivo, e não pode pretender por si só qualquer validade moral a priori em relação à formação de vontade dos cidadãos ou fundada no Direito Natural.” HABERMAS, 1998, p. 216)

Todavia, Habermas (1998, p. 216-217) adverte que com o conceito de poder comunicativo somente apreendemos o surgimento ou a emergência do poder político e não o uso administrativo do poder já constituído. O conceito de poder comunicativo, também, não explica a disputa por cargos e posições que autorizam o uso do poder administrativo.

Segundo Habermas (1998, p. 217), Arendt chama atenção que o uso do poder político depende da formação e da renovação comunicativas desse poder; contra as teorias sociológicas que se restringem aos fenômenos de repartição e disputa pelo poder, Arendt afirma que nenhuma forma de dominação política detém as fontes de seu poder a seu dispor. O poder comunicativo é escasso e aqueles que o disputam e pretendem manejá-lo não são capazes de produzi-lo. Afinal, para Arendt, é o potencial de poder de um corpo político que o mantém unido. O poder não pode ser armazenado para ser utilizado numa emergência, como é o caso dos instrumentos de violência, pois tal potencial de poder só existe quando se realiza na ação. Nas palavras de Arendt:

“O poder só é atualizado ali onde as palavras e os atos não se dissociaram, onde os dizeres não são vazios e os atos não são brutais, onde os dizeres não são usados para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar ou destruir, mas para estabelecer relações e criar novas realidades. O poder é o que conserva existente a esfera pública, o potencial espaço de aparecimento entre os homens que agem e falam”. (ARENDT, 1958, p. 200)

Entretanto, segundo Habermas (1998, p. 217), por mais que a concordância entre palavras e atos possa ser o critério de avaliação da legitimidade de um regime, isso ainda não explica o outro estado no qual o poder comunicativo deve ser transformado antes de poder assumir, sob a forma de poder administrativo, as funções sancionatórias, organizativas e executivas que o sistema de direitos pressupõe e das quais depende. Pois embora o conceito de poder comunicativo, como vimos, introduza uma distinção necessária no conceito de poder político, a política como um todo não pode coincidir com a práxis daqueles que dialogam entre si no sentido de atuar em concerto de uma maneira politicamente autônoma. Segundo Habermas:

“O exercício da autonomia política significa a formação discursiva de uma vontade comum, não a implementação das leis daí decorrentes. Com toda a razão, pois, o conceito do político também inclui o uso do poder administrativo no sistema político, bem como a competição para o acesso a esse sistema.” (HABERMAS, 1998, p. 217)

A constituição do código do poder significa, em outras palavras, que um sistema administrativo é organizado juridicamente mediante a estruturação de âmbitos de competência que autorizam a tomada de decisões coletivamente vinculantes (HABERMAS, 1998, p. 217). Por isso o Direito é, no entender de Habermas, “o meio através do qual o poder comunicativo se transforma em administrativo” (HABERMAS, 1998, p. 217). Essa transformação ou tradução de poder comunicativo em administrativo tem, justamente, o sentido daquela atribuição legal de competência ou de outorga de poder, no interior do sistema administrativo.

E, por fim, ao considerar nesses termos o papel do Direito como meio de transformação ou tradução do poder comunicativo em administrativo, qual seria, para Habermas, o modo adequado, à Teoria do Discurso, de compreensão da ideia do Estado de Direito? Segundo ele:

“Podemos, então, interpretar a ideia do Estado de Direito, genericamente, como a exigência de que o sistema administrativo, que é regido pelo código do poder, se vincule ao poder comunicativo de formação do Direito e se mantenha livre das interferências diretas do poder social, ou seja, da força factual que têm os interesses privilegiados de se imporem. O poder administrativo não deve reproduzir a si mesmo, mas tão só é a ele permitido se regenerar a partir da transformação do poder comunicativo. Em última análise, essa transferência é o que o Estado de Direito deve regular, todavia mantendo intacto o código do poder e assim a auto-regulação do sistema administrativo. O que em termos sociológicos, pois, significa que a idéia do Estado de Direito não faz senão esclarecer o aspecto político do estabelecimento de um equilíbrio entre as três forças de integração [da sociedade][9]: o dinheiro, o poder administrativo e a solidariedade.” (HABERMAS, 1998, p. 218)


Notas e Referências:

[1] Uma versão deste texto encontra-se na obra ALVES; CATTONI DE OLIVEIRA; GOMES (2013, p. 99-109). Este texto, assim como o livro, é dedicado à Theresa Calvet de Magalhães.

[2] Vale a pena comparar com o modo com que Habermas anteriormente concebia a relação entre Direito, Moral e Política, assim como a ideia do Estado de Direito, em meados dos anos 80, a partir de uma certa subordinação do Direito à Moral, em HABERMAS, Jürgen. Derecho y Moral (Tanner Lectures 1986) In HABERMAS, 1998, p.535-587, especialmente, p.571-587. Em Facticidad y Validez, Direito e Moral são co-originários e complementares, o princípio democrático – um princípio institucional - e o princípio moral – uma “norma de argumentação” - são compreendidos como formas distintas de aplicação do princípio do discurso, não bastando, pois, uma relação de não-contradição entre normas jurídicas e morais para a garantia da legitimidade do Direito. Sobre isso, ver HABERMAS, 1998, p. 169-184.

[3] Vale comparar com o modo com que anteriormente Habermas criticava Arendt em HABERMAS, 1975, p.205-222.

[4] Sobre a distinção entre poder e violência em Arendt, ver também CALVET DE MAGALHÃES, 1985/86, p.188-189; CALVET DE MAGALHÃES, 2006. Disponível em http://www.fafich.ufmg.br/~tcalvet/A%E7%E3o%20Linguagem%20e%20Poder%20-%20Uma%20releitura%20do%20cap%EDtulo%20V%20%5BAction%5D.pdf; ADEODATO, 1989, p. 172-174; e DUARTE, 2000, p.238-247.

[5] Nas suas Lições sobre a Filosofia Política de Kant, 1993, p. 56, Arendt comenta que “o ‘alargamento do espírito’ assume um papel crucial na Crítica do juízo. Ele é alcançado ‘mais por meio da comparação de nosso juízo com os juízos possíveis, do que [da comparação] com os juízos reais dos outros, e colocando-nos no lugar de qualquer outro homem’”.

[6] Sobre a desobediência civil em Habermas e também em Arendt, ver SALCEDO REPOLÊS (2003). Disponível em http://www.academia.edu/7624125/Habermas_e_a_Desobedi%C3%AAncia_Civil_Livro.

[7] Comparar com HABERMAS, 1975, p. 222, em que Habermas afirmava que “Para assegurar o núcleo normativo da originária equivalência entre poder e liberdade Hannah Arendt acaba fiando-se mais na venerável figura do contrato que em seu próprio conceito de práxis comunicativa. Com o que retrocede assim à tradição do direito natural”. Cabe dizer que essa crítica habermasiana não parece mais subsistir, primeiro porque Habermas reconhece expressamente que a proposta de Arendt é diferente da construção do Jusracionalismo, e, segundo, diferente porque a força motivadora das promessas mútuas subjacentes a um uso público da razão passa a ser compreendida como a expressão, por exemplo, do próprio sentido performativo do ato de fundação ou auto-constituição de uma nova sociedade política, bem como de sua renovação permanente (Cf. também HABERMAS, 2001, p. 766-781). Assim, como afirmado abaixo, para Habermas, na concepção arendtiana o Direito se vincula de per si com um poder comunicativo que engendra o Direito legítimo.

[8] Sobre esse ponto, vale conferir a reconstrução genial acerca de uma suposta necessidade de se encontrar um novo absoluto na política, que fosse capaz de legitimar a ruptura com as formas de dominação tradicional e o estabelecimento de uma Novus Ordo Saeclorum, “necessidade” ou “problema de legitimação” que emergiu no curso das Grandes Revoluções do  século XVIII, assim como o fantástico contraponto entre a pseudo-solução francesa do poder constituinte, que equiparava poder e violência, no sentido da tradição do Jusracionalismo, e a práxis de auto-constituição norte-americana, que vincula o poder político e geração legítima do Direito, ver ARENDT, 1990, p.144-171, especialmente, p.145-148; p.157; p.164.

[9] “Integração da sociedade” e não “integração social” é a tradução que me foi atenciosamente sugerida por Marcelo Neves, exatamente porque nesse ponto Habermas faz referência tanto às fontes de integração sistêmica (dinheiro e poder administrativo) quanto à da integração social (solidariedade).

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