As noções mais elementares do estudo do direito constitucional apontam que o nosso ordenamento jurídico adotou um sistema de democracia representativa, mais especificamente, semidireta. Segundo esse modelo, as decisões políticas são tomadas, regra geral, por agentes escolhidos pela população, e, residualmente, de modo direto, pelos próprios cidadãos, a exemplo do que ocorre nas hipóteses de referendo, plebiscito e ação popular.
Nesse sentido, a previsão constitucional de que somente a lei formal pode criar obrigações e restringir direitos, representa um verdadeiro alicerce da nossa democracia, haja vista que a lei, durante seu procedimento constitucional de criação, passa pela análise e deliberação de agentes escolhidos diretamente pelo povo. Assim, pode-se afirmar que um processo legislativo essencialmente democrático representa a materialização de um elo entre a sociedade e o legislador.
A Constituição Federal de 1988, ao delegar, ainda que indiretamente, ao povo o poder de proibir condutas, fomentar e restringir direitos, constituiu, em uma primeira análise teórica, o cerne do regime democrático do estado de direito, tendo em vista que, direta ou indiretamente, os cidadãos são atores decisivos no processo de criação das normas. Ademais, em uma democracia, a atividade legislativa é um elemento inafastável da normatização do direito, fenômeno que, na visão de Habermas, representa um dos pilares de sua legitimidade. Ainda no entender do autor, as normas que tendem a ter maior eficácia são aquelas na quais o destinatário se considera um “autor racional” do preceito legal, pois, nesse tipo de cenário o sentimento de compreensão do comando normativo potencializa sua aceitabilidade social (HABERMAS, 1997).
A título de arremate, buscando em um dos versos musicais de Raul Seixas e Paulo Coelho substrato lúdico para tratar da questão, podemos ilustrar a ausência de “autoria racional” através da música “Judas”, no trecho: “Mas é que lá em cima, lá na beira da piscina, olhando simples mortais, das alturas fazem escrituras e não me perguntam se é pouco ou demais” (SEIXAS; COELHO, 1978). Dentre outras interpretações admissíveis, a poesia dos músicos expõe, em linha gerais, que o distanciamento vertical entre os legisladores e os destinatários da norma implica em uma contração da participação do cidadão do processo de criação do direito.
DOS LIMITES DO PODER REGULAMENTAR
Empenhada em resguardar sua teleologia, a Constituição, ao estabelecer em seu artigo 84, IV a possibilidade de o Presidente da República, e em obediência ao princípio da simetria, dos demais chefes do executivo, em suas respectivas esferas de atuação, editarem atos normativos, definiu que tais atos seriam destinados, a princípio, a fiel execução da lei. Isto é, o ato normativo de origem executiva, dada sua natureza secundária, teria um campo de atuação delimitado pela própria lei (natureza primária), e por via de consequência, pela vontade do povo, instrumentalizada pelas deliberações do legislador.
Essa delimitação representa, em termos práticos, na impossibilidade que tem o ato normativo executivo de alterar à lei ou de inová-la, apresentando restrições ou proibições alheias à vontade do legislador.
Nesse contexto, a censurabilidade da restrição de direitos e obrigações por meio de atos emanados do poder executivo pode ser justificada, de igual modo, pela simplicidade e ligeireza que um ato normativo de natureza secundária pode ser editado. Na visão de Celso Antônio Bandeira de Mello, a edição do ato normativo executivo apresenta peculiaridades também em seu aspecto volitivo, uma vez que não raramente estes atos são confeccionados em “gabinetes fechados” à participação e ao controle da sociedade, sendo, em concreto, fruto da vontade de poucos, quando não de um único agente (Mello, 1981). Partindo dessa análise, entendemos que a Constituição Federal, ao delimitar o exercício da atividade legiferante pelo poder executivo, tencionou consagrar o governo das leis em detrimento do governo dos homens, ou na autêntica máxima do direito inglês: rule of law, not of men.
Isto posto, uma análise até mesmo superficial da Carta Magna nos leva a crer que normas de natureza infraconstitucional jamais poderão afastar direitos fundamentais, dentre eles, logicamente, o direito à previdência social. Assim, se uma lei em sentido formal não tem o poder de neutralizar a eficácia de um direito fundamental, uma instrução normativa, logicamente, terá menos legitimidade ainda para suprimir qualquer direito com tal envergadura.
A MARGINALIZAÇÃO DO SEGURADO ESPECIAL
As regras de experiência têm mostrado que o art. 42 §4º da IN Nº 77 do INSS, na prática, tem provocado uma verdadeira neutralização a um leque de benefícios previdenciários destinados aos segurados especiais (agricultores e pescadores).
Uma análise rápida do dispositivo em comento não nos revela qualquer vedação direta à previdência social. Contudo, as repercussões jurídicas e sociais da aplicação da norma, evidenciam uma flagrante obstrução do acesso à previdência pelos agricultores e pescadores.
A barreira imposta pelo art. 42 §4º da IN consiste na descaracterização da condição de segurado especial para o detentor de Benefício Assistencial da Lei Orgânica da Assistência Social (BPC LOAS). Dito de outra forma: a Instrução Normativa determina que se o agricultor ou pescador recebe o BPC LOAS, automaticamente perde sua condição de segurado especial, circunstância que o priva, consequentemente, do direito fundamental à previdência social e, por conseguinte, de um rol de benefícios de natureza previdenciária.
A restrição administrativa carece de respaldo técnico ou legal, seja porque deturpa, à revelia do legislativo, um direito fundamental, o que por si só, já dispensa maiores digressões, seja porque a própria Lei 8213/1991, em seu art. 11, §8º, IV dispõe que a percepção de benefício assistencial não retira a qualidade de segurado do seu favorecido. Portanto, se o ato normativo primário não cria essa restrição, o ato normativo secundário, por via de consequência, não tem legitimidade para fazê-lo.
Há de se ressaltar ainda que o BPC, de natureza assistencial, pode coexistir, materialmente, com o sistema previdenciário, de natureza contributiva. Até porque, como é sabido, o Benefício Assistencial da Lei de Assistência Social não pressupõe, necessariamente, uma incapacidade para o trabalho, e sim um impedimento que seja capaz de ocasionar pelo menos uma barreira para a vida em igualdade de condições com os membros da sociedade. Nesse sentido, é factível que um determinado agente tenha algum tipo de limitação física, mental ou intelectual e a despeito de suas restrições, exerça, ainda que com um esforço redobrado, algum tipo de atividade de natureza agrícola, tipicamente braçal.
Baseando-se nas inovações apresentadas pelo estatuto da pessoa com deficiência, Frederico Amado propõe que a noção de deficiência foi sutilmente alterada, passando a considerar pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais em interação com uma ou mais barreiras, podem obstruir a participação plena e efetiva do agente na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. O autor compreende que, atualmente, a obstrução da participação em sociedade apta a ensejar a concessão do BPC pode ser configurada com a presença de uma única barreira (AMADO, 2017), circunstância que agrega uma tonalidade muito mais inclusiva ao benefício assistencial e torna muito mais factível que no cotidiano das lidas campesinas alguém, a despeito de uma severa limitação física, continue a exercer atividade rural em prol de sua subsistência.
Como é sabido, a filiação à previdência é fato jurídico do trabalho. Assim, ao começar a exercer qualquer atividade economia lícita, o agente, pelo princípio da filiação obrigatória, vincula-se automaticamente à previdência social, devendo, de modo consequente, continuar protegido pelo sistema previdenciário.
É bem verdade que a própria Lei Orgânica da Assistencial Social (art. 21-A) prevê que o beneficiário do BPC, à exceção da atividade de aprendiz, não pode exercer outra atividade econômica. Contudo, é imperioso observar que tal disposição cria apenas uma limitação que faz referência a manutenção do benefício em si, não chegando ao extremo de afastar do sistema previdenciário um determinado trabalhador, bem como desconsiderar toda a sua vida laboral. Diante disso, pergunta-se: É razoável que um trabalhador rural de 50 anos de idade, que exerce atividade braçal desde a adolescência seja posto à margem dos sistema, tendo todo o seu tempo de contribuição (trabalho no campo ou na pesca correspondente ao período de carência) desconsiderado, apenas em razão da concessão de um benefício assistencial? Entendemos que não.
O tema ganha contornos ainda mais censuráveis quando a concessão do BPC LOAS e a sucessiva perda da condição de segurado do beneficiário ocorre devido a uma ineficiência do próprio INSS. O que se quer dizer é que há muitos casos em que o agente, na condição de segurado especial, faz jus a um benefício de natureza previdenciária, e acaba por receber, em seu lugar, um benefício assistencial, que além de ser menos estável e vantajoso, acaba por retirar uma gama de direitos previdenciários decorrentes do exercício da atividade campesina ou da pesca. Sendo a pesca e a atividade rural caracterizadas muitas vezes pelo binômio informalidade somada à baixa escolaridade, é comum que o INSS se depare, por exemplo, com requerentes queixosos de graves limitações físicas, os quais, apesar de serem autênticos trabalhadores rurais (alguns com jornadas muito superiores as convencionadas pela CLT) não dispõem de elementos formais que comprovem o exercício da atividade rural. Nessas ocasiões, a autarquia previdenciária, muitas vezes sem proceder com uma averiguação minimamente razoável da vida laboral do segurado, concede indevidamente o Benefício de Prestação Continuada e, por consequência jurídica, exclui da condição de segurado especial, não raramente, um agente que por muitos anos laborou em contato com agentes nocivos, tais quais, espinhos, sol escaldante, cobras, etc, retirando desse agente a possibilidade de ter acesso aos benefícios do seguro social, dentre eles, o legítimo e fundamental direito de, após uma intensa vida laboral, retirar-se para os seus aposentos, ou no sentido trivial da palavra, aposentar-se.
Notas e Referências
Amado, Frederico. Prática Previdenciária Administrativa. Salvador: Juspodivm, 2017.
Habermas, Jurgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, volume I. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
Mello, Celso Antônio Bandeira de. Ato administrativo e direito dos administrados. São Paulo: RT, 1981.
SEIXAS, Raul; COELHO, Paulo. Judas. In: SEIXAS, Raul. Mata Virgem. Warner Music Group, 1978. Lado A, faixa 1.
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