Por Ezilda Melo - 31/03/2015
Falar em ciência é falar no complexo, é falar no fim das certezas de Prigogine, pois assistimos ao surgimento de uma ciência que não mais se limita a situações simplificadas, idealizadas, mas nos põe diante da complexidade do mundo real; não mais se limita, de acordo com Morin, na inteligência compartimentada, mecanicista, disjuntiva e reducionista que rompe com o complexo do mundo em fragmentos soltos, e que fraciona os problemas, separa o que está ligado, unidimensionaliza o multidimensional.
Noções como a de caos, desenvolvida por Gleick, invadiram todos os campos da ciência, seja da física quântica, por exemplo, com Prigogine que se utilizou do conceito, passando pela economia, administração e demais campos do saber, ao Direito Brasileiro, com Aronne. A certeza e a exatidão não são mais paradigmas das ciências, muito menos das Ciências Sociais, cujo relativismo ganhou muita força, e se estendeu para o Direito, que é eminentemente interpretativo e, portanto, sofre as inúmeras possibilidades de interpretação e quebra com o principio da certeza racional e pragmática na resolução dos casos concretos.
Compactua-se com o pensamento de Morin que leciona a necessidade de restaurar a racionalidade contra a racionalização, pois é preciso considerar racionalmente o mito, o afeto, o amor, a mágoa; a verdadeira racionalidade está aberta e dialoga com o real que lhe resiste; ela não é apenas crítica, mas autocrítica.
Nas relações que ligam o discurso à complexidade, à transdisciplinaridade e ao caos, pergunta-se: o que é o caos? Hesiodo, na Teogonia, explica que no princípio de tudo, o que existia era o caos e que este se refere à esfera do não ser. Antes mesmo de alguma coisa existir, o que existia era o caos. Neste trabalho o termo “caos” é utilizado, na esteira do que preceitua Gleick, como a ciência do imprevisível, e da incerteza compactuada por Morin. A teoria do caos é descrita como sensibilidade extrema às condições iniciais.
O caos questiona a possibilidade de fazermos previsões de longo prazo de qualquer sistema, e neste sentido dentro do Direito, pois diferenças mínimas das condições iniciais levam o sistema a gerar resultados diversos. Isso nos leva à ideia do Efeito Borboleta: uma cadeia de eventos aparentemente sem importância que muda os acontecimentos através do tempo e leva a resultados imprevisíveis e mostra que toda experiência é única e aleatória. Nesta linha de raciocínio, e tomando a teoria do caos como fundamentação, tratar de previsões jurídicas de longo alcance é uma possibilidade fadada ao fracasso, porque tudo muda o tempo todo como uma onda no mar.
Na teoria do caos, a infinidade de eventos impede de dizer que uma mãe que teve depressão pós-parto, rejeitando o filho, o efeito que terá sua atitude no futuro na criança é ela se tornar uma pessoa agressiva ou assassino em série, por exemplo. Pela teoria do caos, esse passado não tem um efeito linear, pois se relaciona com um número infinito e complexo dentro do sistema.
Certezas, exatidão, determinismo. Desde quando se acostumou com esses conceitos? Desde quando na História da humanidade estas expressões são importantes? Desde a época pré-socrática de acordo com Nietzsche, a questão do determinismo está no centro do pensamento ocidental, e a ciência jurídica se constituiu como uma ciência baseada na racionalidade, na certeza e na exatidão.
Em que o caos se relaciona com o Direito, portanto, se durante tantos séculos o que prevaleceu foi encarar a ciência jurídica por este viés? A prevalência de explicar-se os fenômenos jurídicos pelo modo da racionalidade deu-se por causa da necessidade da segurança jurídica. Porém, de acordo com Prigogine, situa-se hoje no ponto de partida de uma nova racionalidade, que não mais identifica ciência e certeza, probabilidade e ignorância.
Além disso, tem-se o desenvolvimento das ideias de flecha do tempo, também por Prigogine, que afirma que todo o tempo é irreversível, em razão da própria obviedade do tempo não voltar, seja nos fenômenos químicos, e da natureza, como também nas situações jurídicas, fazem com que se analise a impossibilidade do retorno ao status quo e a aproximação do jurista com o historiador e com o antropólogo, já que há necessidade de reconstituição de um passado que não existe mais.
Ao aproximar a teoria do caos do universo jurídico, percebe-se que não é possível ter certeza de absolutamente nada, nem mesmo das motivações que ocasionaram determinado crime julgado em sede de Tribunal do Júri, nem mesmo qual será o veredicto. A incerteza, e Lopes Jr. também reconhece, está introjetada em todas as dimensões da vida. Incerteza que aparece até mesmo na solução dos casos jurídicos, porque as situações são únicas e novas, sempre, e, o que é determinante na resolução destas situações jurídicas concretas, é a emoção que apossa os personagens e os espectadores da cena viva do teatro mágico do universo jurídico.
Também não é possível, no palco do Direito, uma decisão voltar atrás. Toda decisão jurídica traz efeitos prospectivos, ou seja, efeitos futuros, do momento da decisão em diante, a exemplo de uma concessão de liberdade provisória ou de uma prisão ilegal. Conta-se a partir dali, para trás, o que tinha era o efeito inverso, nesta situação, a prisão do indivíduo. Toda decisão é irreversível e traz consequência que se bricolaa outra e assim sucessivamente, até a criação de telas únicas, multi-coloridas e prismáticas no palco do existir.
Observando-se os personagens que participam de uma ação judicial, ou mesmo de um julgamento em âmbito do Tribunal do Júri, tem-se uma compreensão de que todo fato jurídico analisado é novo e traz suas especificidades, suas novidades e suas características próprias. A reconstituição do que já passou ocorre pelas lentes dos advogados, defensores públicos, promotores e juízes, e não raro de estagiários de Direito, das histórias com personagens reais, que aguardam decisões para suas situações novas e irreversíveis. Personagem, de um enredo não ficcional, que trazem angústia diante da total falta de certeza do que ocorrerá no desenvolver nas fases processuais e nos desfechos jurídicos, malgrado absurdos, surreais e kafkianos, no labirinto inesgotável das possibilidades emocionais dos que da cena participam.
Notas e Referências:
MORIN, Edgar: Introdução ao Pensamento Complexo. Tradução: Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2006. p. 116. “Afinal, de que serviriam todos os saberes parciais senão para formar uma configuração que responda a nossas expectativas, nossos desejos, nossas interrogações cognitivas?”.
PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. Tradução: Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996. p. 14.
MORIN, Edgar; KERN, Anne-Brigitte.Terra-Pátria. 5. ed. Tradução: Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2005. p. 157. “Trata-se de uma inteligência ao mesmo tempo míope, plesbita, daltônica, caolha; na maioria das vezes acaba ficando cega”.
GLEICK, James. Caos: a criação de uma nova ciência. Rio de Janeiro: Campus, 1990. Nesta obra, Gleick demonstra que a ideia central da teoria do caos é que uma pequenina mudança no início de um evento qualquer pode trazer consequências enormes e absolutamente desconhecidas no futuro. Por isso, tais eventos seriam praticamente imprevisíveis – caóticos, portanto.
PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. Tradução: Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996. p. 13. “Tanto na dinâmica clássica quanto na física quântica, as leis fundamentais exprimem agora possibilidades e não mais certezas. Temos não só leis, mas também eventos que não são dedutíveis das leis, mas atualizam as suas possibilidades”.
ARONNE, Ricardo. Direito Civil-Constitucional e Teoria do Caos: Estudos Preliminares. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 15. “Como introduzir o caos? Como introduzir o meio ao sujeito? A água ao peixe? O caos ao Direito? Eu mesmo. A vocês. Para introduzir, devo apresentar-me. No espaço público que se faz em representação. à luz de minha subjetividade. Um olhar. Um recorte. Um corte no baralho do destino. Existe destino? Onde ele se faz determinado? Onde ele se faz provável? Em que padrão? Qual a racionalidade compreensiva? Interrogações? Quem procura certeza nestas paginas, não deve perder seu tempo”.
SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2008. p. 24. “Einstein constitui o primeiro rombo no paradigma da ciência moderna, um rombo, aliás, mais importante do que o que Einstein foi subjectivamente capaz de admitir. Um dos pensamentos mais profundos de Einstein é o da relatividade da simultaneidade. Einstein distingue entre a simultaneidade de acontecimentos presentes no mesmo lugar e a simultaneidade de acontecimentos distantes [...] Esta teoria veio revolucionar as nossas concepções de espaço e tempo. Não havendo simultaneidade universal, o tempo e o espaço absolutos de Newton deixam de existir.”
MORIN, Edgar; KERN, Anne-Brigitte. Terra-Pátria. 5. ed. Tradução: Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2005.p.157-158. “A verdadeira racionalidade está aberta e dialoga com o real que lhe resiste. Ela opera uma ligação incessante entre a lógica e o empírico; ela é o fruto de um debate argumentado de idéias, e não a propriedade de um sistema de idéias. A razão que ignora os seres, a subjetividade, a afetividade, a vida, é irracional. É preciso levar em conta o mito, o afeto, o amor, a mágoa, que devem ser considerados racionalmente. A verdadeira racionalidade conhece os limites da lógica, do determinismo, do mecanismo; sabe que o espírito humano não poderia ser onisciente, que a realidade comporta mistério [...] Ela é não apenas crítica, mas autocrítica. Reconhecemos a verdadeira racionalidade na capacidade de reconhecer suas insuficiências”.
HESIODO. Teogonia: A origem dos Deuses. Estudo e Tradução: JaaTorrano. São Paulo: Iluminuras, 1992. p. 35. Há na Teogonia duas formas de procriação: por união amorosa e por cissiparidade. Os primeiros seres nascem todos por cissiparidade: uma Divindade originária biparte-se, permanecendo ela própria ao mesmo tempo que dela surge por esquizogênese uma outra Divindade. Assim Érebos e Noite nasceram do Kháos. Assim Terra primeiro pariu igual a si mesma o Céu constelado, pariu as altas Montanhas e depois o Mar infértil.Toda a descendência de Kháos nasce por cissiparidade, exceto Éter e Dia, que constituem exceção também por serem dentro desta linhagem os únicos positivos e luminosos. Tudo o que provém de Kháos pertence à esfera do não-ser; todos os seus filhos, netos e bisnetos (exceto Éter e Dia) são potências tenebrosas, são forças de negação da vida e da ordem. Seus filhos são Érebos e Noite. Érebos é uma espécie de antecâmara do Tártaro e do reino do que é morto. Noite, após parir Éter e Dia unida a Érebos em amor, procria por cissiparidade as forças da debilitação, da penúria, da dor, do esquecimento, do enfraquecimento, da aniquilação, da desordem, do tormento, do engano, da desaparição e da morte – em suma, tudo o que tem a marca do Não-Ser. Estas potências negativas, toda a linhagem de Kháos, são geradas por cissiparidade; Éter e Dia, potências positivas, são exceções desta linhagem e geradas por união amorosa”.
GLEICK, James. Caos: a criação de uma nova ciência. Rio de Janeiro: Campus, 1990.p.4. “Hoje, uma década depois, o caos se tornou uma abreviatura para um movimento que cresce rapidamente e que está reformulando a estrutura do sistema científico. [...] Para alguns físicos, o caos é antes uma ciência de processo do que de estado, de vir a ser do que ser. Agora que a ciência está atenta, o caos parece estar por toda parte”.
MORIN, Edgar; KERN, Anne-Brigitte.Terra-Pátria. 5. ed. Tradução: Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2005.p. 160. “Há necessidade de enfrentar problemas que comportam incertezas e imprevisibilidades, interdependências e inter-retro-ações de extensão planetária relativamente rápida com descontinuidades, não-linearidades, desequilíbrios, comportamentos caóticos, bifurcações”.
O termo “Efeito Borboleta” foi criado pelo meteorologista do Instituto Massachusetts de Tecnologia Edward Lorenz para estudar a dinâmica da atmosfera da Terra. Ele criou um modelo simples da dinâmica da Terra: movimento caótico; irregular e imprevisível, como o estado natural dos seres humanos. Estas considerações encontram-se nos extras do filme “Efeito Borboleta”. EFEITO borboleta. Direção: J. MackyeGruber e Eric Bress. EUA, 2004.1 DVD (113 min), widescreen, color.
LULU Santos. Como Uma Onda "Ao Vivo". Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1mSFe5Wz Dec>. Acesso em: 3 abr. 2014.
Uma excelente referência cinematográfica é o filme lançado em 2012, Precisamos falar sobre o Kevin, dirigido por Lynne Ramsay e produzido por Luc Roeg (EUA/Reino Unido). Os psicólogos são levados a acreditar que determinados comportamentos e influências são determinantes no comportamento de cada ser humano. A psicologia também tenta entender as motivações para os crimes. Este filme faz uma reflexão sobre estes dois temas.PRECISAMOS falar sobre o Kevin. Dirigido por Lynne Ramsay.EUA: Paris Filmes, 2012.1 DVD (112 min), widescreen, color.
NIETZCHE, Friedrich. A origem da Tragédia proveniente do espírito da música. Tradução e Notas: Erwin Theodor. São Paulo: Cupolo, 2006. Versão para Ebook. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/tragedia.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2014. p. 18. “Todo o mundo moderno está contido na rede da cultura alexandrina e conhece como ideal o homem teórico, equipado com as mais elevadas forcas do conhecimento, que trabalha no serviço da ciência, e cujo protótipo e tronco de estirpe é representado por Sócrates.
PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. Tradução: Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996. p.14. “A questão do tempo e do determinismo não se limita às ciências, mas está no centro do pensamento ocidental desde a origem do que chamamos de racionalidade”
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8. ed. Tradução: João Baptista Machado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. p. 1. “ A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito Positivo – do Direito Positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial”.
PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. Tradução: Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996.p.14.
PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. Tradução: Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996.p. 11-25. “A flecha do tempo foi relegada ao domínio da fenomenologia [...] A tese de que a flecha do tempo é apenas fenomenológica torna-se absurda. Muito pelo contrario, somos seus filhos [...] Inversamente, no movimento do pêndulo ideal, não podemos distinguir o futuro do passado. [...] Enquanto os processos reversíveis são descritos por equações de evolução invariantes em relação à inversão dos tempos, como a equação de Newton na dinâmica clássica e a de Scrodinger na mecânica quântica, os processos irreversíveis implicam uma quebra da simetria temporal. A natureza apresenta-nos ao mesmo tempo processos irreversíveis e processos reversíveis, mas os primeiros são a regra, e os segundos, a exceção”.
GINZBURG, Carlo. O inquisidor como antropólogo. Tradução: Jônatas Batista Neto. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 11, n. 21, set. 1990/fev. 1991.
ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2002. p.37. “Apenas porque o homem se insere no tempo, e apenas na medida em que defende seu território, o fluxo indiferente do tempo parte-se em passado, presente e futuro”.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 11. Ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 585. “Com o atual nível de evolução da ciência, especialmente da física quântica, operou-se o ‘fim das certezas’, como definiu Prigogine.
Ezilda Melo é Professora Universitária, Mestra em Direito Público pela UFBA. Especialista em Direito Público pelo Curso JusPodivm. Graduada em Direito pela UEPB e em História pela UFCG. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7223307007394926 www.ezildamelo.blogspot.com
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