Coluna Atualidades Trabalhistas / Coordenador Ricardo Calcini
No mês de setembro de 2019, foi noticiado que o Superior Tribunal de Justiça decidiu, em conflito de competência, que cabe à Justiça Comum Estadual julgar demanda entre um motorista de aplicativo e a empresa UBER.
A notícia movimentou as redes sociais de profissionais do direito de diversos matizes, como advogados e magistrados (principalmente daqueles que são professores), e perfis que visam congregar notícias sobre o Direito, no sentido de alerta de que estaria afastada a competência da Justiça do Trabalho para apreciar controvérsias daquela natureza. Mas é preciso ter cuidado com a informação, como se a decisão no “Tribunal da Cidadania” tenha colocado pá de cal na questão.
No conflito de competência 164.544/MG, com natureza negativa, suscitado pela 1ª Vara do Trabalho de Poços de Caldas (MG), decidiu-se pela competência da Justiça Comum para apreciar o caso em que o demandante distribuiu ação perante o Juizado Especial Cível de Poços de Caldas (MG) objetivando a reativação de sua conta no aplicativo UBER, bem como pleiteando indenização por danos materiais e morais, tendo o Juizado declarado, na ocasião, sua incompetência absoluta e remetido os autos para a Justiça do Trabalho que, por sua vez, declarou-se incompetente materialmente e suscitado o conflito na forma do art. 105, I, d da CRFB/88.
Conforme a publicação da decisão da Segunda Seção do STJ, atribuiu-se a competência da Justiça Comum, sob o entendimento de que o pedido de obrigação de fazer combinado com o pleito reparatório formulado pelo autor da demanda originária não ensejava análise de reconhecimento do vínculo de emprego com a empresa UBER.
Há verdadeiro imbróglio, ainda que um tanto represado, sobre de quem é a competência envolvendo demandas entre motoristas de aplicativos que se utilizam de meios de transporte privados e empresas que beneficiam locomoções através de plataformas digitais.
O primeiro indício havido até então de que a controvérsia seguiria, enfim, para o âmbito dos Tribunais Superiores, se deu no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP), uma vez que no processo nº 1000123-89.2017.5.02.0038 envolvendo o mesmo tipo de partes (motorista de aplicativo e plataforma digital de economia compartilhada), embora a decisão de primeira instância tenha sido pela improcedência do pedido de reconhecimento de vínculo de emprego, reformou-a a 15ª Turma daquele Tribunal, em sentido diametralmente oposto. Tendo em vista o não seguimento de Recurso de Revista interposto pelo UBER, houve interposição e recebimento de agravo de instrumento já remetido, em agosto de 2019, para o âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, pelo que se deve aguardar eventual nova decisão sobre a controvérsia que grassa nessa matéria.
De todo modo, e como visto, a discussão chega ao STJ ante a instauração de conflito negativo de competência onde decidiu-se ser competente a Justiça Comum Estadual para apreciar a discussão havida entre justamente um motorista de aplicativo e a já citada sociedade empresarial, que, a propósito, poderia ser qualquer uma análoga.
Se por um lado, se tenha afastado a competência da Justiça Laboral, por outro lado, há que se brevemente refletir sobre o voto condutor da decisão havida. Isso porque o Ministro Relator parte do pressuposto de que o vínculo que liga as partes possui natureza civil e repele haver o preenchimento dos requisitos da relação de emprego nesses tipos de relação de trabalho afirmando que “os motoristas de aplicativo não mantém relação hierárquica com a empresa UBER porque seus serviços são prestados de forma eventual, sem horários pré-estabelecidos e não recebem salário fixo, o que descaracteriza o vínculo empregatício entre as partes”.
Uma vez que o STJ atribuiu a competência para a Justiça Comum Estadual baseado nos pedidos formulados pelo motorista em questão, diante de sua suspensão dos quadros do aplicativo UBER, e que gerou ação de obrigação de fazer combinado com reparação de danos morais e materiais, enfatizando, inclusive, não ter havido pedido de reconhecimento de vínculo, talvez fosse desejável que a atividade judicante privilegiasse uma espécie de autocontenção interpretativa diante do caso posto sob análise.
Com o devido respeito que se deve deferir ao decidido e exarado no acórdão, a passagem citada acima integra um campo de atuação jurisdicional tipicamente trabalhista, assegurado no art. 114 da CRFB/88, que é justamente o do reconhecimento ou não do vínculo de emprego, quando tal pedido é versado.
Quer-se com isso dizer que deveria se evitar generalizar esses formatos de prestação de serviço compartilhado como se sempre houvesse uma relação civil, a afastar perenemente, portanto, a relação empregatícia. Essa é uma fórmula encontrável na atividade legislativa, de que são exemplos o parágrafo único do art. 442 da CLT, que afirma que “qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo de empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela” e o controverso art. 442-B da CLT, ao prever que “a contratação do autônomo, cumpridas por este todas as formalidades legais, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, afasta a qualidade de empregado prevista no art. 3º desta Consolidação”, mas que não deveria ser, de antemão, adotada pelo Poder Judiciário, que se adstringe ao exame de cada caso concreto posto sob sua análise.
É bem verdade que o ordenamento jurídico traça um quadro de atuação jurisdicional, e a Lei 13.640/18, que alterou a Lei 12.587/12, qualificou à espécie de relação estabelecida no transporte remunerado privado individual de passageiros uma vinculação de autonomia, pois o inciso III c/c o parágrafo único do art. 11-A da Lei 12.587/12, prevê que o motorista de aplicativo deve se inscrever como contribuinte individual do INSS, na forma da alínea h do inciso V do art. 11 da Lei 8.213/91.
Contudo, diante de uma máxima que viceja continuamente na vida do Direito, “cada caso é um caso”.
De modo pessoal, o autor desse artigo vem entendendo que, em tese, não há vínculo de emprego entre motoristas de aplicativo e a empresa de economia compartilhada em transporte privado de passageiros, pois um requisito externo ao art. 3º da CLT não resta preenchido nessas hipóteses: o art. 2º da CLT prevê que quem corre os riscos da atividade econômica é e sempre deve ser o empregador. No caso sob exame, e aqui se procede para refletir, o motorista de tais aplicativos gere sua atividade laborativa correndo o risco da atividade que empreende, como sói acontecer com profissionais liberais e autônomos, afinal, cabe a ele tanto custear despesas de celular móvel e do carro utilizado (combustível, eventuais acidentes de trânsito, infrações de trânsito, etc.), quanto pode a qualquer momento encerrar o serviço prestado em modelo de economia compartilhada, sem ter que indenizar a sociedade empresarial proprietária da plataforma tecnológica.
É inescondível que a decisão do STJ é indiciária de uma implicação que pode, um dia, chegar no Supremo Tribunal Federal, e que envolverá, na esteira da EC nº 45/04, os limites da atividade jurisdicional dos órgãos da Justiça do Trabalho para apreciar tal tipo de controvérsia, com talvez não bons resultados.
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