A COMPETÊNCIA DO JÚRI E A PERPETUATIO JURISDICTIONIS

18/09/2024

A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgando o Recurso Especial nº. 2.131.258-RJ, à unanimidade, decidiu não aplicar a perpetuatio jurisdictionis no caso de morte do corréu que respondia pelo crime contra a vida, fixando que, “ocorrendo a extinção da punibilidade pela morte do corréu a quem fora imputada a prática de crime doloso contra a vida ainda na primeira etapa do procedimento (juízo de acusação), é adequada a remessa dos autos ao Juízo singular para o julgamento do crime conexo, não havendo que se falar em prorrogação da competência do Tribunal do Júri para o julgamento do delito comum”, partindo-se, portanto, da premissa que o rol previsto no artigo 81, parágrafo único, do Código de Processo Penal não é taxativo.

Assim ficou redigida a ementa: “Recurso especial. Júri. Crime contra a vida conexo com crime comum (denunciação caluniosa). Falecimento do corréu, acusado do crime de tentativa de homicídio, ainda na primeira fase do procedimento. Remessa do delito comum ao juízo ordinário. Inexistência de ilegalidade. Hipótese que se assemelha àquelas previstas no artigo 81, parágrafo único, do Código de Processo Penal. Exceção ao princípio da perpetuatio jurisdictionis.

Do inteiro teor do respectivo acórdão consta que “as hipóteses previstas no parágrafo único do art. 81 do CPP - impronúncia, absolvição sumária e desclassificação - são circunstâncias que afastam a competência do Tribunal do Júri na primeira fase do julgamento (juízo de acusação), consubstanciando clara exceção ao princípio da perpetuatio jurisdictionis, de modo que, verificada quaisquer delas ainda na primeira fase do procedimento, tem-se por afastada a competência do Tribunal do Júri para o julgamento do crime conexo (comum).

Segundo o voto do relator, pelo improvimento do recurso especial e proclamado à unanimidade, “esse rol não pode ser tido como taxativo, pois se o corréu, a quem foi imputado a prática de crime doloso contra a vida, falece ainda na primeira fase do procedimento - como verificado no caso dos autos -, não há justificativa razoável para submeter o crime conexo comum (denunciação caluniosa) ao julgamento perante o Tribunal popular, sendo certo que essa hipótese se assemelha àquelas previstas no dispositivo em comento, na medida em que afasta a competência do Tribunal do Júri ainda na fase do juízo de acusação.

A decisão da Corte Superior está correta (nada obstante uma questão dogmática que será referida ao final do texto), pois foi dada uma interpretação extensiva ao parágrafo único do artigo 81 do mesmo código, como permite o artigo 3º., do Código de Processo Penal: a declaração da extinção da punibilidade pelo morte do corréu afasta a competência do Tribunal do Júri para julgar o delito conexo (não doloso contra a vida), praticado pelo coautor.

Assim, proferida uma decisão terminativa de mérito (reconhecendo a extinção da punibilidade pela morte de um dos agentes ou por qualquer outra causa, como a prescrição), nada impede, muito pelo contrário – tudo exige – que o juiz do processo (do Júri) remeta os autos para o Juízo Comum (vara singular), não sendo o caso da perpetuatio jurisdictionis, estabelecida no caput do mesmo art. 81, onde se estabelece uma (raríssima) hipótese de perpetuatio jurisdictionis no processo penal (tão comum no processo civil em razão do disposto no art. 43 do Código de Processo Civil); afinal, conforme já afirmava Frederico Marques, “não influi sobre a competência prorrogada a sentença absolutória proferida em relação ao delito que atraiu as demais infrações para o forum connexitatis (artigo 81).”[1]

Assim, a competência determinada em razão da conexão ou continência não se prorroga, subsistindo, ainda que desapareça por um motivo qualquer (como a declaração da extinção da punibilidade) a causa que atraíra a competência para determinado órgão jurisdicional.[2]

O que há de peculiar neste caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça é que não se tratou exatamente de uma sentença absolutória sumária ou de impronúncia ou de uma decisão desclassificatória (de natureza interlocutória), mas de uma decisão (meramente declaratória) terminativa de mérito, reconhecendo a morte do corréu como causa extintiva da punibilidade (art. 107, I, do Código Penal), relativamente ao crime doloso contra a vida, exatamente o delito que, em razão da conexão com o outro crime comum (denunciação caluniosa), levara todo o caso para a vara especializada do Tribunal do Júri, por força do artigo 78, I do Código de Processo Penal.

Assim, a decisão da Corte Superior equiparou, para os efeitos do parágrafo único do artigo 81, a sentença absolutória, de impronúncia e a decisão desclassificatória, com a sentença terminativa de mérito declaratória da extinção da punibilidade, nos termos do artigo 3º. do Código de Processo Penal, que admite a interpretação extensiva no processo penal, desde que, evidentemente, tal possibilidade não seja contrária aos direitos e garantias inerentes à condição de acusado.

Aqui, necessário ressaltar que não se deve confundir a analogia (ou aplicação analógica) – como método de autointegração da norma – com interpretação extensiva, pois, no primeiro caso, há uma lacuna a ser suprida, enquanto que, no segundo caso, trata-se de uma norma já existente, permitindo-se uma ampliação do seu alcance, para contemplar situações não previstas expressamente pelo legislador, tenha sido tal omissão feita de maneira voluntária ou involuntária.

Ferrara, explicando bem esta diferença, afirma que a analogia “aplica-se quando um caso não é contemplado por uma disposição de lei, enquanto a interpretação extensiva pressupõe que o caso já está compreendido na regulamentação jurídica, entrando num sentido duma disposição, se bem que fuja à sua letra.

Assim, segundo o mesmo autor, “enquanto a interpretação extensiva não faz mais do que reconstruir a vontade legislativa já existente – revelando o sentido daquilo que o legislador realmente queria e pensava -, a analogia, pelo contrário, está em presença duma lacuna, em um caso não previsto, para o qual não existe uma vontade legislativa, e procura tirá-la de casos afins correspondentes, relacionando-se com casos em que o legislador não pensou, e vai descobrir uma nova norma inspirando-se na regulamentação de casos análogos.[3]

Feita esta distinção necessária, especialmente em razão do nosso Código de Processo Penal a ela fazer referência expressa no referido artigo 3º., é preciso atentar para a natureza da respectiva norma, conforme lição de Florian, de tal maneira que “se se trata da liberdade pessoal, as limitações à mesma devem ser interpretadas em sentido estrito, em virtude do conhecido princípio in dubio pro reo, proclamado secularmente pelos penalistas, e admitido em todos os povos cultos.

Florian, então, estabelece o seguinte critério geral e metodológico: “onde a lei não dita mandatos ou proibições, pode-se permitir uma margem de liberdade ao juiz e às partes, ainda que sempre conforme aos fins do processo e aos princípios fundamentais que o regem.[4]

Também Aragoneses já advertia, fazendo um paralelo entre as leis penais e as leis processuais penais, para o fato que quando a lei possa “produzir um determinado efeito prejudicial para o acusado, a interpretação deve ser restritiva”, citando como exemplo normas que afetam “a liberdade pessoal e a propriedade dos cidadãos (medidas cautelares), as que, por sua similitude com as penas, exigem esse tratamento de aproximação com os critérios interpretativos das normas penais materiais.”[5]

Neste mesmo sentido, Barreiros, após admitir que “este método pode ser amplamente utilizado no Direito Processual Penal”, ressalva “as normas restritivas de direitos subjetivos, ou que tenham natureza excepcional.[6]

Como afirmado no início do texto, a única objeção que se poderia fazer à decisão da Turma do Superior Tribunal de Justiça – objeção importante!, seria a não observância do princípio da identidade física do juiz, previsto expressamente no artigo 399, § 2º., Código de Processo Penal, impondo-se que o juiz que presidiu a instrução criminal julgue também o processo.[7]

Como se sabe, em razão do referido princípio, o juiz que presidir a instrução criminal deve julgar o processo, de maneira que possa “apreciar melhor a credibilidade dos depoimentos; e a decisão deve ser dada enquanto essas impressões ainda estão vivas no espírito do julgador”, ressalvando-se, evidentemente, as hipóteses em que o magistrado estiver afastado por qualquer motivo.[8]

Como afirmava René Ariel Dotti, é correta a adoção deste princípio, pois “a ausência, no processo penal, do aludido e generoso princípio permite que o julgador condene, com lamentável frequência, seres humanos que desconhece”.[9]

Ainda a propósito, Gustavo Badaró explica que “a identidade física do juiz deve atuar integradamente com o sistema da oralidade, que tem como outras características a concentração e a imediação. Assim, nos procedimentos especiais que adotem estrutura concentrada, desenvolvendo-se mediante audiência una de instrução, debates e julgamento, terá incidência a regra da identidade física do juiz, por aplicação subsidiária das disposições do procedimento comum ordinário, nos termos do § 5º. do art. 394 do CPP, como, por exemplo: no procedimento especial da Lei nº. 11.343/06 (art. 57, caput) e no procedimento sumaríssimo da Lei nº. 9.099/1995 (art. 81, caput). Já nos procedimentos em que há previsão de mais de uma audiência, como no caso do procedimento para os crimes eleitorais, não será possível a apli­cação da identidade física do juiz.

E, pergunta, então: “qual a consequência da violação da regra da identidade física do juiz? Predomina o entendimento de que a regra da identidade física do juiz estabelece um caso de competência funcional, cuja violação acarreta a nulidade da sentença. Discorda-se de tal entendimento. A competência trata da legitimidade do exercício da jurisdição entre os diversos órgãos jurisdicionais. É distribuição de competência entre órgãos, e não entre juízes fisicamente considerados. Mesmo no caso de competência interna, em um mesmo juízo, não significa que um juiz especificamente considerado seja definido como competente.”[10]

De toda maneira, entre adotar uma interpretação extensiva a uma norma tipicamente processual penal e privilegiar a identidade física do juiz, prefere-se a adoção da decisão do Superior Tribunal de Justiça, ora comentada.

Portanto, para concluir, no caso de conexão e continência, ainda que relativamente ao caso penal de sua competência própria venha o juiz do Tribunal do Júri a proferir sentença que extinga a punibilidade (pela morte do agente, pela prescrição ou por qualquer outra causa), deverá enviar todo o processo para a vara comum, por força do disposto no parágrafo único do artigo 81 do Código de Processo Penal.

 

Notas e referências:

 

 

[1] MARQUES, José Frederico. Da Competência em Matéria Penal. Campinas: Milennium Editora, 2000, p. 380. No processo penal o que é relativamente comum é a possibilidade de uma modificação da competência, como se dá, por exemplo, na Lei nº. 9.099/95 (arts. 66, parágrafo único e 77, § 2º.), nos casos de desaforamento (art. 427), conexão (art. 76), continência (art. 77), incidente de deslocamento de competência (art. 109, § 5º., CF) e na ação penal de iniciativa privada (art. 73).

[2] KARAM, Maria Lúcia. Competência no Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 70.

[3] FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. Coimbra: Arménio Amado - Editor, 1987, pp. 162 -163.

[4] FLORIAN, Eugenio. Elementos de Derecho Procesal Penal. Barcelona: Bosch – Casa Editorial, 1933, pp. 41 e 42.

[5] ALONSO, Pedro Aragoneses. Instituciones de Derecho Procesal Penal. Madrid: 1976, p. 65.

[6] BARREIROS, José António. Processo Penal - 1. Coimbra: Almedina,1981, p. 202.

[7] Conforme lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: “É preciso ressaltar, ainda, que o princípio da identidade física do juiz não se confunde com o princípio do Juiz Natural. Como se sabe, por este, ninguém poderá ser processado ou sentenciado por juiz incompetente, ou seja, o juiz natural é o juiz competente, aquele que tem sua competência legalmente preestabelecida para julgar determinado caso concreto. Já por aquele (o princípio da identidade física) assegura-se aos jurisdicionados a vinculação da pessoa do juiz ao processo.” Disponível em: https://revistas.ufpr.br/direito/article/view/1892/1587. Acesso em 30 de maio de 2021.

[8] Barbi, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I. Rio de Janeiro: Forense, p. 327. A propósito, no julgamento do Habeas Corpus 121624, o STF decidiu que a aplicação do princípio da identidade física do Juiz não é absoluta, permitindo flexibilização em situações excepcionais, como nas hipóteses de convocação, licença, promoção, aposentadoria ou afastamento do Magistrado por qualquer motivo; neste sentido, citando precedentes das duas Turmas do Supremo Tribunal Federal, o relator do habeas corpus, Ministro Gilmar Mendes, observou que a jurisprudência da Suprema Corte é no sentido de que deva existir correlação entre as provas colhidas durante a instrução e a sentença, ainda que proferida por outro Magistrado. O relator destacou o Recurso Ordinário em Habeas Corpus 116205, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, que assenta a necessidade de moderação na aplicação do princípio da identidade física do Juiz, de forma que a sentença seja anulada apenas “nos casos em que houver um prejuízo flagrante para o réu ou uma incompatibilidade entre aquilo que foi colhido na instrução e o que foi decidido.”

[9] DOTTI, René Ariel. O Interrogatório à Distância. Revista Consulex, nº. 29, p. 23.

[10] BADARÓ, Gustavo Henrique. A Regra da Identidade Física do Juiz na Reforma do Código de Processo Penal. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 200 (julho 2009), p 13.

 

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