O Ministro[1] Luís Roberto Barroso concedeu liminares em ações diretas de inconstitucionalidade, suspendendo dispositivos das Constituições estaduais do Pará (ADI 6501), de Pernambuco (ADI 6502), de Rondônia (ADI 6508) e do Amazonas (ADI 6515), que atribuem aos respectivos tribunais de Justiça foro por prerrogativa de função para diversas autoridades, ainda que não indicadas na Constituição Federal, sob o (correto) argumento de que normas sobre prerrogativa de foro “são excepcionais e, por isso, devem ser interpretadas restritivamente.”
Valendo-se de precedente, a liminar consigna “que a regra geral é que todos devem ser processados pelos mesmos órgãos jurisdicionais, em atenção aos princípios republicano (art. 1º.), do juiz natural (art. 5º., LIII) e da igualdade (art. 5º, caput), previstos na Constituição Federal e, apenas excepcionalmente, a fim de assegurar a independência e o livre exercício de alguns cargos, admite-se a fixação do foro privilegiado”[2] (sic).
Na decisão monocrática, também ficou expressamente dito “que a prerrogativa de foro constitui uma exceção a direitos e princípios fundamentais, que são normas que se sobrepõem às demais regras constitucionais, sendo limitada, portanto, a margem de discricionariedade para a definição de normas de competência dos tribunais de justiça.”
Esta matéria, conforme lembrado na decisão liminar, já havia sido analisada na Suprema Corte, quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 2553, cujo objeto foi exatamente um dispositivo da Constituição do Maranhão que atribuía foro criminal originário ao Tribunal de Justiça para determinadas autoridades públicas não constantes do rol contido na Constituição Federal. Neste primeiro julgamento, o Plenário decidiu que a Constituição estadual não pode, de forma discricionária, estender o foro por prerrogativa de função a autoridades não apontadas pelo constituinte federal, prevalecendo o entendimento segundo o qual “a prerrogativa de foro é uma excepcionalidade e que a Constituição Federal já excepcionou, também nos estados, as autoridades dos três Poderes com direito a essa prerrogativa.”[3]
Pois bem.
A liminar concedida está correta, primeiro porque segue o precedente da própria Suprema Corte, assegurando-se, assim, o princípio da segurança jurídica, “ideal normativo de primeira grandeza em qualquer ordenamento jurídico, especialmente no ordenamento pátrio”, conforme Ávila[4]; segundo porque o art. 125, § 1º. da Constituição Federal não autorizou o constituinte estadual a estabelecer hipóteses de competência por prerrogativa de função em inteira dissonância com os casos “equivalentes” ou “paralelos”, previstos na Constituição Federal, extrapolando-se os limites impostos pela simetria ou paralelismo inerentes à ordem e à normatividade jurídicas do país.[5]
A propósito, De Pretto assinalam que a observância da simetria, em muitos casos, tende “a garantir, quanto aos aspectos reputados substanciais, homogeneidade na disciplina normativa da separação, independência e harmonia dos poderes, nos três planos federativos”[6], cuidando-se apenas para que não seja um “produto de uma decisão arbitrária ou imotivada do intérprete.”[7]
Como notam estes mesmos dois autores, “a orientação do Supremo Tribunal Federal sobre o princípio da simetria foi provavelmente assumida por prudência: a Corte parece ter pretendido evitar que arranjos institucionais desprovidos de razoabilidade fossem praticados em estados e municípios. No fundo, vislumbra-se o medo do abuso, e a imposição aos entes locais de escrupulosa observância dos modelos federais foi o instrumento usado pela Corte para se evitar esse risco.” Assim, “o foco do princípio da simetria é a necessidade de reprodução de modelos estabelecidos para a União, no âmbito da Constituição Federal, também para as outras entidades federadas.”[8]
Obviamente, a simetria não pode se sobrepor à autonomia dos Estados, Municípios e do Distrito Federal exigida pelo princípio federativo. Neste sentido, Gonet Branco, com inteira razão, afirma que o “princípio da simetria não deve ser compreendido como absoluto, pois nem todas as normas que regem o Poder Legislativo da União são de absorção necessária pelos Estados. As normas de observância obrigatória pelos Estados são as que refletem o inter-relacionamento entre os Poderes.”[9]
Porém, restringir o âmbito de atuação legislativa dos Estados quando se trata de estabelecer a competência em razão da prerrogativa de foro compatibiliza-se perfeitamente com o princípio federativo, não havendo, à toda evidência, mácula à autonomia do ente federativo, que decorre da própria concepção de federalismo que, em razão de “sua envergadura histórica e sociológica, é uma tendência natural da organização social, sendo, por isso, mais amplo do que qualquer ordem jurídica ou mesmo política.” Neste modelo, são mais valorizadas “as relações de coordenação do que as relações de subordinação”, afinal “toda centralização tende à subordinação, e, consequentemente, à hierarquia e à disciplina rígidas.” Para ele, neste aspecto específico, o federalismo é um verdadeiro “processo de garantia da liberdade, desde que levada a efeito dentro da ordem jurídica e dentro de um esquema geral intangível.”[10]
Também abordando o mesmo tema, ainda que sob a ótica da ordem jurídico-constitucional inaugurada pela Constituição de 1946, anota Pinto Ferreira que “a verdadeira doutrina a explicar o regime de relações entre a União e os Estados-membros é a teoria da descentralização política, consistente na repartição de competências entre os órgãos centrais e os órgãos locais.”[11]
Também comentando a Constituição de 1946, Pontes de Miranda afirmava que “no Estado federal a união é permanente, ou baseada no que quiseram os Estados-membros, ou no que o povo dele, Estado federal, que antes não o era, quis. E a verdade histórica e doutrinária, a respeito do Brasil, é a última.” Para ele, nada obstante, a federação não ser uma mera medida técnica de descentralização, nela “cada parte tem (ainda imaginariamente) o seu status e perde algo dele em proveito comum”, conferindo-se aos Estados-membros um pouco do que era central.”[12]
Sabe-se, portanto, que num Estado federal “a distribuição de competências entre a Federação e os Länder, é uma ´importante manifestação do princípio federativo... e ao mesmo tempo como elemento de uma divisão funcional adicional dos poderes. Esta manifestação distribui o poder político e estabelece um marco jurídico-constitucional para seu exercício.`”[13]
Nada obstante, permitir que o constituinte estadual estabeleça livremente e sem quaisquer critérios orientadores e limitadores, hipóteses de prerrogativa de foro, muitas vezes em completa desarmonia com os respectivos preceitos da Constituição Federal, extrapola aquela referida autonomia, ainda mais se tratando de normas com caráter claramente processual (competência penal).
Portanto, para concluir, ressalte-se que a observância da simetria (ao menos quando se trata de estabelecer a competência por prerrogativa de foro dos tribunais locais), não representa, de modo algum – muito pelo contrário -, uma quebra do equilíbrio federativo, só admitida, de mais a mais, muito excepcionalmente, no caso de intervenção federal nos Estados e no Distrito Federal, e dos Estados nos Municípios, nas situações expressamente previstas nos arts. 34 a 36 da Constituição.[14]
Notas e Referências
[1] Rômulo de Andrade Moreira, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.
[2] A expressão “foro privilegiado”, evidentemente, foi usada equivocadamente, pois remete a “privilégio”, do que não se trata. Com efeito, e na lição de Tourinho Filho, enquanto “o privilégio decorre de benefício à pessoa, a prerrogativa envolve a função. Quando a Constituição proíbe o ‘foro privilegiado’, ela está vedando o privilégio em razão das qualidades pessoais, atributos de nascimento... Não é pelo fato de alguém ser filho ou neto de Barão que deva ser julgado por um juízo especial, como acontece na Espanha, em que se leva em conta, muitas vezes, a posição social do agente.” (Processo Penal, Vol. II. Saraiva: São Paulo, 2002, p. 126). No mesmo passo, Niceto Alcala-Zamora y Castillo e Ricardo Leveve explicam que “cuando esas leyes o esos enjuiciamentos se instauran no en atención a la persona en si, sino al cargo o función que desempene, pueden satisfacer una doble finalidad de justicia: poner a los enjuiciables amparados por el privilegio a cubierto de persecuciones deducidas a la ligera o impulsadas por móviles bastardos, y, a la par, rodear de especiales garantias su juzgamiento, para protegerlo contra las presiones que los supuestos responsables pudiesen ejercer sobre los órganos jurisdiccionales ordinarios. No se trata, pues, de un privilegio odioso, sino de una elemental precaución para amparar a un tiempo al justiciable y la justicia: si en manos de cualquiera estuviese llevar las más altas magistraturas, sin cortapisa alguna, ante los peldaños inferiores de la organización judicial, colocándolas, de momento al menos, en una situación desairada y difícil, bien cabe imaginar el partido que de esa facilidad excesiva sacarían las malas pasiones.” (Derecho Procesal Penal, Tomo I. Buenos Aires: Editorial Guillermo Kraft Ltda., 1945, pp. 222/223).
[3] Tais decisões, sem dúvidas, seguem a tendência da Suprema Corte de adotar “uma compreensão contemporânea e mais restritiva da prerrogativa de foro”, como se deu a partir do julgamento de questão de ordem na Ação Penal nº. 937, na qual a Corte restringiu o foro de deputados federais e senadores, com o entendimento de que a prerrogativa de serem processados e julgados pelo Supremo Tribunal Federal aplica-se apenas a crimes cometidos no exercício do cargo e em razão das funções a ele relacionadas. Nada obstante concordarmos, em tese, com a restrição imposta, houve, neste caso, induvidosamente, uma usurpação da função legislativa do parlamento. Tratou-se de uma mutação constitucional inadmissível, pois, como se sabe, tais mutações devem ser toleradas “com as limitações indispensáveis para sua conformação com a ordem constitucional, sob pena de admitir o triunfo do fato sobre a norma, destruindo-se o próprio conceito jurídico de constituição, pelo aniquilamento de sua força normativa.” (SILVA, José Afonso da. Teoria do Conhecimento Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 309).
[4] Para este jurista, “o essencial é que a Constituição Brasileira, mais do que exigir a promoção do princípio da segurança jurídica, corporifica-o pela preocupação, do início ao fim, com os ideais de cognoscibilidade, de confiabilidade e de calculabilidade normativas, tal é a ênfase que atribui à limitação do poder e à garantia dos direitos fundamentais.” (ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 711).
[5] “Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição. § 1º A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça.”
[6] Disponível em: http://www.tjsp.jus.br/download/EPM/Publicacoes/ObrasJuridicas/13-federalismo.pdf?d=637006247774866622. Acessado em 11 de outubro de 2020.
[7] Neste sentido, veja-se as ações diretas de inconstitucionalidade nºs. 4.298 (relator Ministro Cezar Peluso) e 1.521 (relator Ministro Ricardo Lewandowski).
[8] Disponível em: http://www.tjsp.jus.br/download/EPM/Publicacoes/ObrasJuridicas/13-federalismo.pdf?d=637006247774866622. Acessado em 11 de outubro de 2020.
[9] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet e MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 819.
[10] FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Curso de Direito Constitucional Brasileiro, Volume I. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 156.
[11] PINTO, Ferreira. Princípios Gerais do Direito Constitucional Moderno, Tomo II. São Pulo: Saraiva, 1962, p. 645.
[12] MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1946, Volume I. São Paulo: Max Limonad, 1953, p. 299.
[13] HÄBERLE, Peter. El Estado constitucional. Lima: Fondo Editorial, 2003, pp. 263-264.
[14] Esta medida extrema – que, de toda maneira, fere a autonomia federativa, mas está prevista na própria Constituição -, afastando temporariamente a atuação das entidades federadas, “só há de ocorrer nos casos nela taxativamente estabelecidos e indicados como exceção ao princípio da não intervenção.” (SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 460).
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