Por Rômulo de Andrade Moreira - 12/04/2015
“Quando, seu moço, nasceu meu rebento, não era o momento dele rebentar. Já foi nascendo com cara de fome e eu não tinha nem nome para lhe dar. Como fui levando, não sei lhe explicar, fui assim levando, ele a me levar e na sua meninice ele um dia me disse que chegava lá: olha aí! Ai o meu guri, olha aí! Olha aí! É o meu guri. E ele chega! Chega suado e veloz do batente, traz sempre um presente para me encabular: tanta corrente de ouro seu moço, que haja pescoço para enfiar; me trouxe uma bolsa já com tudo dentro, chave, caderneta. terço e patuá, um lenço e uma penca de documentos para finalmente eu me identificar. Olha aí! Ai o meu guri, olha aí! É o meu guri e ele chega! Chega no morro com carregamento, pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador. Rezo até ele chegar cá no alto essa onda de assaltos está um horror. Eu consolo ele, ele me consola, boto ele no colo para ele me ninar, de repente acordo, olho para o lado e o danado já foi trabalhar! Olha aí! É o meu guri e ele chega! Chega estampado manchete, retrato, com venda nos olhos, legenda e as iniciais. Eu não entendo essa gente seu moço, fazendo alvoroço demais! O guri no mato, acho que tá rindo, acho que tá lindo, de papo para o ar; desde o começo eu não disse seu moço, ele disse que chegava lá! Olha aí! Ai o meu guri, olha aí. É o meu guri!” (Chico Buarque – “O Meu Guri “– adaptei para a prosa esta linda canção-poesia).
Segundo o jornal o Estado de São Paulo, a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos de idade foi aprovada no último dia 31 de março, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. Por 42 votos a favor e 17 contrários, a Proposta de Emenda à Constituição 171/1993 passou pela etapa mais difícil da Casa. Agora, o texto será apreciado em uma comissão especial e depois será enviado para duas votações em plenário.
A proposta patrocinada pela Frente Parlamentar de Segurança Pública, conhecida como a “bancada da bala”, recebeu o apoio de PSDB, DEM, Solidariedade e da maior parte dos parlamentares do PMDB. Contra a redução se posicionaram PT, PCdoB e PROS, da base governista, e PSB e PPS, da oposição.
As sessões da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados sobre a Proposta de Emenda à Constituição foram marcadas por tumultos e tentativas de obstrução do governo, do PT e também de parlamentares oposicionistas contrários à alteração.
Os parlamentares contrários à proposta tentaram impedir a inversão da pauta. Depois, pediram a retirada da Proposta de Emenda à Constituição da discussão. A última cartada foi a apresentação de um parecer do deputado Luis Couto (PT-PB), segundo o qual a redução da maioridade penal era inadmissível e inconstitucional. O relatório foi rejeitado por 43 votos a 21.
Em seguida, os deputados pediram o arquivamento e, por fim, exigiram a votação nominal da Proposta de Emenda à Constituição. Nenhuma das estratégias funcionou, e o texto foi encaminhado para votação.
Dois grupos de manifestantes se dividiram no plenário, com cartazes e faixas contrárias e favoráveis à proposta. A União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes) levou 15 adolescentes à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. Aos gritos de “não, não, não à redução” e “fascistas”, eles protestaram contra o avanço da proposta.
“Essa Proposta de Emenda à Constituição é um grande equívoco. Será muito ruim para a juventude brasileira”, disse a presidente da União Brasileira de Estudantes Secundaristas, Bárbara Melo, que responsabilizou o conservadorismo da Casa pela aprovação do texto.
Retirada da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados por seu partido, que é contrário à Proposta de Emenda à Constituição, a Deputada Keiko Ota (PSB-SP) se mostrou aliviada. “Tenho certeza de que o Congresso vai aprovar a Proposta de Emenda à Constituição porque 83% da população apoia”, disse ela que, entre os manifestantes pró-redução, vestia uma camiseta com a foto do filho Ives Ota, que foi assassinado.
O presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), prometeu celeridade na Proposta de Emenda à Constituição. Apenas três horas depois da votação, ele leu em plenário o ato de criação da comissão especial que vai analisar o mérito do texto.
A comissão realizará 40 sessões, previstas para serem concluídas em três meses. O texto poderá ser alterado e deverá ser votado duas vezes em plenário. Para ser aprovado, terá de receber o voto favorável de pelo menos 308 dos 513 deputados (3/5 dos parlamentares) em cada um dos turnos. Caso aprovada, a Proposta de Emenda à Constituição passará para o Senado, onde seguirá o mesmo rito. Fonte: http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,ccj-aprova-pec-que-reduz-maioridade-penal-de-18-para-16-anos,1661469
Tudo balela, fantasia, para aplacar o clamor público! É óbvio que o art. 228 da Constituição Federal constitui-se, de forma induvidosa, em cláusula pétrea e, portanto, não sujeito, sequer, à modificação por emenda à Constituição. Somente uma nova Assembleia Nacional Constituinte poderia tornar penalmente inimputáveis os menores de dezesseis anos.
Aprende-se nos primeiros da faculdade de Direito que os direitos e garantias fundamentais não estão apenas inscritos no art. 5º., da nossa Constituição, muito pelo contrário: estão contidos em outros dispositivos (cfr., verbi gratia o art. 7º.).
Também no início do estudo do Direito Constitucional, ensina-se que cláusula pétrea não pode ser modificada por norma constitucional derivada, mas, apenas, oriunda do Poder Constituinte Originário.
O que o Congresso faz é demagogia com o povo brasileiro, mesmo porque a diminuição da maioridade penal em nada, absolutamente em nada, resolveria o problema da criminalidade. Qual a vantagem de se colocar um adolescente de dezesseis anos em uma penitenciária, uma verdadeira universidade do crime?
O modelo clássico de Justiça Penal, fundado na crença de que a pena privativa de liberdade seria suficiente para, por si só, resolver a questão da violência, vem cedendo espaço para um novo modelo penal, este baseado na idéia da prisão como extrema ratio e que só se justificaria para casos de efetiva gravidade. Passa-se gradativamente de uma política paleorrepressiva ou de hard control, de cunho eminentemente simbólico (consubstanciada em uma série de leis incriminadoras, muitas das quais eivadas com vícios de inconstitucionalidade, aumentando desmesurada e desproporcionalmente a duração das penas, inviabilizando direitos e garantias fundamentais do homem, tipificando desnecessariamente novas condutas, etc.) para uma tendência despenalizadora, traduzida em leis como a que ora nos referimos ou como a que criou os Juizados Especiais Criminais (Lei n.º 9.099/95).[2]
Hoje, portanto, ainda que o nosso sistema penal privilegie induvidosamente o encarceramento (acreditando, ainda, na função dissuasória da prisão), o certo é que a tendência mundial de alternativizar este modelo clássico vem penetrando no Brasil e tomando força entre os nossos melhores doutrinadores. Penalistas pátrios consagrados como Luiz Flávio Gomes, Cezar Roberto Bitencourt, Damásio de Jesus, Miguel Reale Júnior, René Ariel Dotti, e tantos outros, já se debruçaram sobre a matéria. Este último, aliás, lembrando Ferri, afirma que “a luta contra os excessos do poder punitivo não é recente. Ela é apenas reafirmada em atenção às novas perspectivas de causas antigas.”[3]
É indiscutível que a pena de prisão em todo o mundo passa por uma crise sem precedentes. A ideia disseminada a partir do século XIX segundo a qual a prisão seria a principal resposta penológica na prevenção e repressão ao crime perdeu fôlego, predominando atualmente “uma atitude pessimista, que já não tem muitas esperanças sobre os resultados que se possa conseguir com a prisão tradicional”[4], como pensa Cezar Roberto Bitencourt.
É induvidoso que o cárcere deve ser concebido como última via para a problemática da violência, pois não é, nunca foi e jamais será solução possível para a segurança pública de um povo.
É de Hulsman a seguinte afirmação: “Em inúmeros casos, a experiência do processo e do encarceramento produz nos condenados um estigma que pode se tornar profundo. Há estudos científicos, sérios e reiterados, mostrando que as definições legais e a rejeição social por elas produzida podem determinar a percepção do eu como realmente ‘desviante’ e, assim, levar algumas pessoas a viver conforme esta imagem, marginalmente. Vemo-nos de novo diante da constatação de que o sistema penal cria o delinquente, mas, agora, num nível muito mais inquietante e grave: o nível da interiorização pela pessoa atingida do etiquetamento legal e social.”[5]
O próprio sistema carcerário brasileiro revela o quadro social reinante neste País, pois nele estão “guardados” os excluídos de toda ordem, basicamente aqueles indivíduos banidos pelo injusto e selvagem sistema econômico no qual vivemos; o nosso sistema carcerário está repleto de pobres e isto não é, evidentemente, uma “mera coincidência”. Ao contrário: o sistema penal, repressivo por sua própria natureza, atinge tão-somente a classe pobre da sociedade. Sua eficácia se restringe, infelizmente, a ela. As exceções que conhecemos apenas confirmam a regra.
E isto ocorre porque, via de regra, a falta de condições mínimas de vida (como, por exemplo, a falta de comida), leva o homem ao desespero e ao caminho do crime, como também o levam a doença, a fome e a ausência de educação na infância. Assim, aquele que foi privado durante toda a sua vida (principalmente no seu início) dessas mínimas condições estaria mais propenso ao cometimento do delito, pelo simples fato de não haver para ele qualquer outra opção; há exceções, é verdade, porém estas, de tão poucas, apenas confirmam a regra.
Aliás, a esse respeito, há uma opinião bastante interessante de Maria Lúcia Karam, segundo a qual “hoje, como há duzentos anos, mantém-se pertinente a indagação de por que razão os indivíduos despojados de seus direitos básicos, como ocorre com a maioria da população de nosso país, estariam obrigados a respeitar as leis.”[6]
De forma que esse quadro socioeconômico existente no Brasil, revelador de inúmeras injustiças sociais, leva a muitos outros questionamentos, como por exemplo: para que serve o nosso sistema penal? A quem são dirigidos os sistemas repressivo e punitivo brasileiros? E o sistema penitenciário é administrado para quem? E, por fim, a segurança pública é, efetivamente, apenas um caso de polícia?
Ao longo dos anos a ineficiência da pena de prisão na tutela da segurança pública se mostrou de tal forma clara que chega a ser difícil qualquer contestação a respeito. Em nosso País, por exemplo, muitas leis penais puramente repressivas estão a todo o momento sendo sancionadas, como as leis de crimes hediondos, a prisão temporária, a criminalização do porte de arma, a lei de combate ao crime organizado, etc, sempre para satisfazer a opinião pública (previamente manipulada pelos meios de comunicação), sem que se atente para a boa técnica legislativa e, o que é pior, para a sua constitucionalidade. E, mais: o encarceramento como base para a repressão.
Assim, por exemplo, ao comentar a lei dos crimes hediondos, Alberto Silva Franco afirma que ela, “na linha dos pressupostos ideológicos e dos valores consagrados pelo Movimento da Lei e da Ordem, deu suporte à idéia de que leis de extrema severidade e penas privativas de alto calibre são suficientes para pôr cobro à criminalidade violenta. Nada mais ilusório.”[7]
Querer, portanto, que a aplicação da pena de privação da liberdade de adolescentes de dezesseis anos resolva a questão da segurança pública é desconhecer as raízes da criminalidade, pois de nada adiantam leis severas, criminalização excessiva de condutas, penas mais duradouras ou mais cruéis... Vale a pena citar o grande advogado Evandro Lins e Silva, que diz:
“Muitos acham que a severidade do sistema intimida e acovarda os criminosos, mas eu não tenho conhecimento de nenhum que tenha feito uma consulta ao Código Penal antes de infringi-lo.”[8] O mesmo jurista, Ministro aposentado do STF, em outra oportunidade afirmou: “precisamos despenalizar alguns crimes e criar punições alternativas, que serão mais eficientes no combate à impunidade e na recuperação do infrator (...). Já está provado que a cadeia é a universidade às avessas, porque fabrica criminosos, ao invés de recuperá-los.”
A miséria econômica e cultural em que vivemos é, sem dúvida, a responsável por este alto índice de violência existente hoje em nossa sociedade; tal fato se mostra mais evidente (e mais chocante) quando se constata o número impressionante de crianças e adolescentes infratores que já convivem, desde cedo e lado a lado, com um sistema de vida diferenciado de qualquer parâmetro de dignidade, iniciando-se logo na marginalidade, na dependência de drogas lícitas e ilícitas, na degenerescência moral, no absoluto desprezo pela vida humana (inclusive pela própria), no ódio e na revolta. Para Vico Mañas, é preciso “despertar a atenção para a relevante questão do adolescente infrator, conscientes de que, enquanto não se estabelecer eficaz e efetiva política pública de enfrentamento dos problemas verificados nessa área, será inútil continuar punindo a população adulta, como também continuará sendo inútil, para os juristas, a construção de seus belos sistemas teóricos”.[9]
Tenho repetido, cotidianamente, que a nossa realidade carcerária é preocupante; os nossos presídios e as nossas penitenciárias, abarrotados, recebem a cada dia um sem número de indiciados, processados ou condenados, sem que se tenha a mínima estrutura para recebê-los; e há, ainda, milhares de mandados de prisão a serem cumpridos; ao invés de lugares de ressocialização do homem, tornam-se, ao contrário, fábricas de criminosos, de revoltados, de desiludidos, de desesperados; por outro lado, a volta para a sociedade (através da liberdade), ao invés de solução, muitas das vezes, torna-se mais uma via crucis, pois são homens fisicamente libertos, porém, de tal forma estigmatizados que tornam-se reféns do seu próprio passado.[10]
Hoje, o homem que cumpre uma pena ou de qualquer outra maneira deixa o cárcere encontra diante de si a triste realidade do desemprego, do descrédito, da desconfiança, do medo e do desprezo, restando-lhe poucas alternativas que não o acolhimento pelos seus antigos companheiros; este homem é, em verdade, um ser destinado ao retorno: retorno à fome, ao crime, ao cárcere (só não volta se morrer). Imagine um adolescente de dezesseis anos?
Bem a propósito é a lição de Antônio Cláudio Mariz de Oliveira: "Ao clamar pelo encarceramento e por nada mais, a sociedade se esquece de que o homem preso voltará ao convívio social, cedo ou tarde. Portanto, prepará-lo para sua reinserção, se não encarado como um dever social e humanitário, deveria ser visto, pelo menos, pela ótica da autopreservação." (Folha de São Paulo, 06/06/2005).
O Professor de Sociologia da Universidade de Oslo, Thomas Mathiesen avalia que “se as pessoas realmente soubessem o quão fragilmente a prisão, assim como as outras partes do sistema de controle criminal, as protegem – de fato, se elas soubessem como a prisão somente cria uma sociedade mais perigosa por produzir pessoas mais perigosas -, um clima para o desmantelamento das prisões deveria, necessariamente, começar já. Porque as pessoas, em contraste com as prisões, são racionais nesse assunto. Mas a informação fria e seca não é suficiente; a falha das prisões deveria ser ‘sentida’ em direção a um nível emocional mais profundo e, assim fazer parte de nossa definição cultural sobre a situação.”[11]
A propósito do tema, veja-se que lição ímpar de Paulo Sérgio Leite Fernandes: "Em suma, reduziu-se a idade em que a criatura, normativamente, apresenta condições adequadas à plenitude da capacidade de entender o caráter criminoso de uma ou outra conduta, determinando-se de acordo com tal entendimento, assemelhadamente à verificação da sanidade mental, em que são usadas preferencialmente tais conotações.O Código de Processo Penal, denotando tal tendência, já foi recentemente modificado no artigo 194, extirpando-se a exigência de curador a menor com idade situada entre 18 e 21 anos. A lei atinente a tal modificação foi sancionada pelo presidente metalúrgico, assinando-a também o ministro Márcio Thomaz Bastos. Paradoxalmente, ou com suma negligência, esqueceu-se o legislador de examinar a lei processual penal como um todo. Aquilo é imitação da vida. Espeta-se um prego no dedão do pé enquanto infante, a mãe deixa de praticar assepsia adequada e o cirurgião precisa extirpar a perna, cinquenta anos depois.Tocante a tais considerações, é bom dizer que o cronista, com todos os títulos que tem no baú, se transformou numa espécie de processualista maldito, porque nenhum doutrinador clássico há de usar tal exemplo num rotundo rodapé (v. Pitigrilli, O experimento de Pott). Mas é assim: o escriba se cansou de falar difícil. Poderia utilizar muitos brocardos latinos, porque estudou em “Colégio de Padre”, lembrando-se ainda das declinações, sem exceção de “Ego, Mei, Mihi, Me, Me”. Não vale a pena. É preciso bem fixar, entretanto, que “caxumba”, linguagem de tia velha, é sinônimo de “parotidite”, termo que os leigos não conhecem. Daí, os comentários ficam brutos, rústicos, básicos, porque o povo precisa conhecer o que está acontecendo, sem rebuscamentos assemelhados às tentativas de se entender, ainda hoje, a receita posta em garranchos pelo médico, depois da consulta.Volte-se à maioridade penal: há país de língua inglesa processando criminalmente menor com dez anos de idade. No Brasil, somos até razoáveis. Na medida em que o Código Civil modificou critérios atinentes à capacidade plena, a legislação criminal o acompanha. Acontece que a lei nova veio manquitola, pois não se atentou para o artigo 564, III, “c”, do Código de Processo Penal, considerando nulidade a não nomeação de curador a menor com idade posta entre 18 e 21 anos, embora até nisso, na origem, o dispositivo esteja mal posto, porque menor de 21 anos, sem especificação outra, pode ser a criatura com seis meses de idade. Parta-se para o Estatuto da Criança e do Adolescente. Tem-se o menor até 18 anos na qualidade citada. Dos 18 aos 21, excepcionalmente, o ECA ainda se aplica (artigo 2º, parágrafo único). Invalida-se somente o artigo 194 já mencionado, deixando ao intérprete a difícil tarefa da extensão. É bem verdade não se usar mais advertência “revogam-se as disposições em contrário”. Melhor seria, entretanto, a limpeza do remanescente. Finalize-se com consideração de caráter científico. António Damásio, um dos maiores neurologistas que o mundo tem, profundo estudioso do cérebro humano, acentua que até os 20 anos o ser humano não exibe seus sistemas plenamente desenvolvidos, sem exceção dos 85 bilhões de neurônios que carregamos dentro da cabeça. Já se percebe, na simples e primária análise da alteração legislativa posta em vigor, o embrulho resultante do açodamento. Será caso, quem sabe, de importação da jurisprudência posta a viger nos Estados Unidos da América do Norte. Aqui, vale o brocardo: “Quem pariu Mateus, que o crie”. (Revista Consultor Jurídico, acesso em 28 de outubro de 2014, 8h33).
Vale a pena citar, mais uma vez, Lins e Silva, pela autoridade de quem, ao longo de mais de 60 anos de profissão, sempre dignificou a advocacia criminal brasileira e a magistratura nacional; diz ele:
“A prisão avilta, degrada e nada mais é do que uma jaula reprodutora de criminosos”, informando que no último congresso mundial de direito criminal, que reuniu mais de 1.000 criminalistas de todo o mundo, “nem meia dúzia eram favoráveis à prisão.”[12]
Ademais, as condições atuais do cárcere, especialmente na América Latina, fazem com que, a partir da ociosidade em que vivem os detentos, estabeleça-se o que se convencionou chamar de “subcultura carcerária”, um sistema de regras próprias no qual não se respeita a vida, nem a integridade física dos companheiros, valendo intra muros a “lei do mais forte”, insusceptível, inclusive, de intervenção oficial de qualquer ordem.
Já no século XVIII, Beccaria, autor italiano, em obra clássica, já afirmava: “Entre as penalidades e no modo de aplicá-las proporcionalmente aos crimes, é necessário, portanto, escolher os meios que devem provocar no espírito público a impressão mais eficiente e mais perdurável e, igualmente, menos cruel no organismo do culpado.”[13]
No Boletim nº. 259, junho de 2014, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Maíra Cardoso Zapater, Doutora em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, escreveu: "A cada ocorrência pontual de crimes violentos supostamente praticados por adolescentes ressurgem os defensores da redução da idade penal, arguindo-se a brutalidade das condutas para justificar o “tratamento diferenciado” para estes casos “excepcionais”. Um dos argumentos centrais sobre o qual se apoiam os defensores do rebaixamento da idade penal pode ser sintetizado na seguinte assertiva: “As crianças e adolescentes do mundo de hoje têm muito mais acesso a muito mais informação, e por isso sabem o que fazem. Quando praticam um crime, sabem que estão fazendo algo errado. Portanto, devem responder como adultos”. Este argumento central pode ser dividido em duas ideias:(i) Que crianças e adolescentes de hoje disporiam de um repertório pessoal amplo o suficiente para discernir condutas “certas” e “erradas”, “boas” e “más”. Como fatores de formação deste repertório pessoal, apontam-se comumente os dados disponibilizados pelas tecnologias de informação (internet, redes sociais, televisão etc.) e a chamada “liberalização dos costumes”, sobretudo no que diz respeito à moral sexual. Abundam argumentos no sentido de afirmar uma suposta “frouxidão de valores”, ou ainda uma “confusão entre liberdade e libertinagem”, que, imagina-se, traria aos jovens da atualidade mais elementos para decidir por esta ou aquela conduta, tornando mais reprovável a opção pela conduta criminosa. (ii) Por consequência, se esses jovens dispõem de tantas informações para livremente decidir, e ainda abusam de sua liberdade individual violando direitos de outrem, suas escolhas em praticar ou não um crime devem ser equiparadas àquelas feitas pelos adultos, e se tais escolhas lesionarem um bem jurídico de extremo valor (que, em tese, são os bens jurídicos objetos de tutela penal), devem responder como um adulto que fez o mesmo tipo de escolha. A este argumento, costuma-se acrescentar que os adolescentes, por não responderem “por nada”, são frequentemente utilizados para encobrir crimes praticados por adultos.Indaga-se: está correta esta dedução acerca do grau de maturidade desses jovens? E, sendo correta a dedução, é lógica a conclusão de ser justo e útil fazer com que respondam como adultos por seus crimes?“O jovem de ontem” e “o jovem de hoje”: um mito sem lógica. A ideia segundo a qual “o jovem de hoje sabe o que faz” procura se justificar, em grande medida, pela disseminação de novos meios de comunicação, tal como a expansão do acesso à televisão aberta e paga, e a internet com suas redes sociais e seu conteúdo quase infinito. É fácil verificar, porém, que “informação” não é equivalente a “formação”. E mesmo “formação” não necessariamente acarreta maturidade de quem a tem. Coloca-se aqui a seguinte provocação: seria o jovem de hoje realmente mais “maduro” e menos “inocente” que esse mítico “jovem do passado”? Não são poucas as estatísticas que mostram que a idade dos casamentos(1) e da entrada no mercado de trabalho,(2) tradicionais indicadores de autonomia individual, vem ocorrendo em idade posterior ao limite etário legal para a adolescência. “Maturidade” e “discernimento” costumam ser predicados de indivíduos que vivem de forma autônoma e independente. Por outro lado, reforçar que a “liberação dos costumes sexuais” justificaria um “melhor saber” da infância e da juventude atuais é o mesmo argumento que serve aos interesses de quem defende a redução do limite etário para se considerar uma criança vulnerável para fins de caracterizar crimes sexuais.Não se pretende defender a elevação da idade para imputabilidade penal, e menos ainda redução da idade para configuração dos crimes sexuais praticados contra vulneráveis, mas sim demonstrar a fragilidade do argumento que vincula de forma simplista e imediata a aquisição de maturidade e discernimento à existência de sítios eletrônicos de busca ao alcance dos dedos de quem tem acesso a um computador com internet.Justamente para se evitar um debate raso (e por isso mesmo perigoso) sobre a maturidade e capacidade de argumentação dos jovens, é prudente deixar seu aprofundamento aos estudiosos do tema nas áreas da psicologia, pedagogia e sociologia, sem deixar, contudo, de fornecer aqui alguns elementos para a reflexão. Mas, para os fins deste trabalho, é mais produtivo adentrar a questão da segunda ideia que compõe o argumento anterior, segundo o qual se os jovens “sabem o que estão fazendo”, portanto “devem ser punidos como adultos”.A constatação de o adolescente “saber o que faz” parece justificar de per si que sua punição seja igual à do adulto. Vale arriscar aqui uma análise a tal respeito, propondo-se duas possibilidades para justificar a assertiva: a primeira seria a vingança, ou a simples retribuição do mal pelo mal. Já que a punição do adulto seria – ao menos, em tese – mais severa, então que se aplique à criança ou ao adolescente a retribuição na medida da severidade do ato por ele praticado. A segunda seria a prevenção, ou seja, a crença no poder dissuasivo exercido pelo temor da gravidade da sanção imposta. Todavia, diante dessas duas explicações possíveis para o argumento que defende a punição de crianças e adolescentes como adultos, deve-se questionar: com que finalidade se pretende aplicar uma sanção que cause um sofrimento maior ao autor de um delito? Viver em uma sociedade que sofre menos crimes? Ou que castiga mais os criminosos? Quais são as evidências empíricas a demonstrar que a possibilidade de envio de uma pessoa para o cárcere – cujas condições de extremo sofrimento são mais que conhecidas – torna os “potenciais criminosos” menos propensos a delinquir, ou fortalece o sentimento de segurança dos “cidadãos de bem”? Afirmar que “se o adolescente sabe o que faz, deve ser punido com severidade” é retórica vazia e que não se sustenta por si só.Redução da idade penal: medida antijurídica, inútil e socialmente injusta.Mas não é só: além de ser vazia em argumentos, a proposta de redução da idade penal é antijurídica, é inútil e é socialmente injusta.É uma proposta antijurídica: a vedação à redução da idade penal decorre da inafastável interpretação do art. 228 da CF – em que se prevê o limite etário de 18 anos para início da responsabilização criminal – como um desdobramento do direito à igualdade, conferindo-lhe natureza de cláusula pétrea. O frágil argumento de que a posição topográfica do art. 228 da CF impediria de considerá-lo como direito fundamental não resiste a uma singela interpretação sistemática do texto constitucional: a criança e o adolescente são seres em fase de formação e desenvolvimento, e, por isso, diferentes dos adultos. A ampliação do acesso a informações e a meios de comunicação não acarreta de maneira causal uma maturidade e uma capacidade de discernimento equiparada à de adultos, principalmente para fins penais: crianças e adolescentes têm a informação objetiva de quais condutas são certas ou erradas, mas ainda não concluíram sua formação subjetiva de forma amadurecida que os torne capaz de avaliar, de fato, a extensão das consequências de seus atos. Por outro lado, o fato de serem indivíduos em processo de formação os torna mais aptos a processos pedagógicos ressocializadores. O princípio da isonomia, que informa o direito à igualdade, não se satisfaz com a mera igualdade formal perante a lei, mas exige que se dê tratamento desigual aos desiguais. E, vale lembrar, o Brasil é signatário da Convenção dos Direitos da Criança, que, sendo pacto internacional sobre Direitos Humanos, deve ser interpretado como norma de hierarquia constitucional. Alterar a norma contida no art. 228 da CF configuraria, dessa forma, flagrante inconstitucionalidade.É uma proposta inútil: a função preventiva da pena jamais mostrou qualquer resultado em relação aos acusados adultos. Quanto ao argumento de que os adolescentes são instrumentalizados por adultos, que os utilizam para a prática de delitos por acreditarem na impunidade das pessoas com menos de 18 anos, é importante ressaltar a existência de problemas notoriamente graves nas investigações policiais, que recorrentemente se satisfazem com uma confissão – seja da verdade ou não. Além disso, tanto a situação de um adolescente praticar um crime ou assumir falsamente a autoria de um crime praticado por um adulto são situações que já encontram previsão de punição criminal no ordenamento jurídico e não há por que pensar que punir o adolescente da mesma forma que o adulto iria evitar o fato já não evitado pela punição atual. Ademais, deve-se frisar que nada impediria que adultos continuassem a aliciar adolescentes e crianças mais novas para que respondessem por seus crimes, a enfraquecer ainda mais o argumento.É uma proposta socialmente injusta: punir adolescentes como se pune (mal) os adultos somente fará estender a essa parcela da população a seletividade social e econômica característica do sistema penal. Em pesquisa a respeito de adolescentes em cumprimento de medida de internação, Vania Fernandes e Silva traça uma aprofundada análise acerca do tema à luz da criminologia crítica e observa que “não representa nenhuma heresia dizer que a delimitação do que é considerado delito é feita pela classe que detém o poder de definir o que é crime, e consequentemente, quem é o criminoso”.(3) A criminologia contribui para o debate ao propor reflexões que demonstram que conceitos como “crime” e “criminoso” flutuam no tempo, na história e na cultura. Nas palavras da autora: “[...] a criminologia crítica contribui para o entendimento, porém não aceitação, da rotulação e, consequente estigmatização do jovem das classes populares como ‘delinquentes’, ‘desviados’, ‘anormais’, ‘perigosos’, uma vez que é sabido que não são todos os jovens, principalmente aqueles que pertencem às classes economicamente privilegiadas, que cumprem uma medida socioeducativa de internação”.(4) Assim, alargar as fronteiras do “público elegível” para a punição penal corresponderá a incluir mais pessoas na exclusão extrema do sistema de encarceramento, o que é também inconstitucional em face dos fundamentos da cidadania e da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, II e III, da CF) e dos objetivos propostos nos incs. I e III do art. 3.º da CF, quais sejam, de “construir uma sociedade livre, justa e solidária” e de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Reduzir a idade penal não irá solucionar o problema da violência urbana e criará outros, tais como o aumento da população carcerária e a submissão de adolescentes já estigmatizados ao convívio com criminosos. Aponta-se uma “solução” ilícita, inútil e injusta para um problema que sequer se sabe ao certo qual é, pois não há consenso sobre os múltiplos fatores que levam o jovem a delinquir, ou a representatividade dos atos infracionais no universo de crimes praticados, e menos ainda se explorou toda a potencialidade da doutrina da proteção integral que informa o ECA. Ainda que propostas extremamente punitivas encontrem amplo apoio popular deve-se fortalecer a consciência de que o objetivo comum a todos – mesmo que muitos não tenham se dado conta – não é o de viver em uma sociedade mais punitiva, mas sim menos violenta e mais justa."
Por sua vez, Marat, em obra editada em Paris no ano de 1790, já advertia que “es un error creer que se detiene el malo por el rigor de los suplicios, su imagen se desvanece bien pronto. Pero las necesidades que sin cesar atormentan a un desgraciado le persiguen por todas partes. Encuentra ocasión favorable? Pues no escucha más que esa voz importuna y sucumbe a la tentación.”[14]
A propósito, em 2012 a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que era inconstitucional a lei que impunha sentença automática de prisão perpétua para crianças e adolescentes, uma vez considerados culpados de um crime. Mas a decisão foi incompleta. A corte não definiu se a decisão era retroativa ou não. Por isso, dia 12 de dezembro de 2014 aceitou julgar um caso em que deverá tomar uma decisão definitiva sobre isso. Depois da decisão (Miller versus Alabama), tribunais em treze estados examinaram casos de condenações de menores, mas tomaram decisões contrárias. Em nove estados, as cortes decidiram que a decisão da Suprema Corte era retroativa, enquanto que em quatro estados (Louisiana, Pensilvânia, Michigan e Minnesota) decidiram que não é, segundo o New York Times, Washington Post e outras publicações. Se a Suprema Corte decidir que a decisão de 2012 é retroativa, mais de dois mil prisioneiros, que foram condenados quando tinham menos de 18 anos, serão beneficiados. Isso não significa que irão automaticamente para as ruas. Em vez disso, seus casos voltarão a ser julgados por tribunais inferiores. A antiga lei foi considerada inconstitucional porque a aplicação automática da sentença de prisão perpétua violava uma emenda constitucional que proíbe “punição cruel e incomum”. Uma razão disso é que a lei não permitia ao tribunal do júri levar em conta, no caso de crianças e adolescentes, quaisquer atenuantes ou circunstâncias que pudessem resultar em redução de pena — benefício que é normalmente examinado em julgamentos de adultos.Na decisão, que foi tomada por 5 a 4 votos, a ministra Elena Kagan escreveu, em nome da maioria, que as crianças e adolescentes são “constitucionalmente diferentes” dos adultos. Por isso, devem ser tratados diferentemente para se beneficiarem, não para serem prejudicados.Ela citou características peculiares da infância e da juventude, como “imaturidade, impetuosidade, e dificuldade de avaliar riscos e consequências”. Segundo o voto vencedor, os tribunais até podem considerar penas de prisão perpétua, mas somente depois de considerar as circunstâncias e os atenuantes do caso. “De qualquer forma, uma pena de prisão perpétua para um menor não deixa de ser cruel e incomum”, diz o voto.Talvez esse seja o caso que a Suprema Corte vai examinar agora, no processo Toca versus Lousiana. O americano George Toca, que já passou trinta anos na cadeia, foi preso quando seu melhor amigo foi atingido por um tiro disparado acidentalmente e morreu. Os dois e mais um amigo realizavam um assalto armado, quando a arma disparou acidentalmente. No julgamento, o outro amigo testemunhou que a arma disparada era de Toca, que negou, mas não convenceu os jurados. O caso aconteceu em Louisiana, um dos estados que não aceitam a retroatividade da decisão da Suprema Corte e Toca permaneceu preso.Na prisão, ele se tornou bacharel em Direito, está pronto para fazer o exame de ordem e seu pedido de novo julgamento, se a decisão da Suprema Corte for favorável, terá um apoio pouco comum: o da família da vítima, que não acredita em sua culpa.Se tiver um novo julgamento, o tribunal de júri terá de levar em conta outra recomendação da Suprema Corte na decisão de 2012: o tribunal do júri deve considerar “a família e o ambiente que circunda o adolescente, dos quais ele não pode se livrar, por mais que sejam brutais ou disfuncionais”.A tendência é que a Suprema Corte considere sua decisão de 2012 retroativa, porque já manteve decisões nesse sentido de tribunais de Nebraska e Illinois. Mas é provável que a corte só irá fazer a primeira audiência para discutir o caso em março de 2015 e tomar uma decisão em junho. Fonte: Revista Consultor Jurídico, 15 de dezembro de 2014, 10h20 (http://www.conjur.com.br/2014-dez-15/eua-rever-decisao-prisao-perpetua-menores).
Para concluir, vejamos, a propósito, a lição de Érica Babini do Machado (Doutora em Direito Penal pela Universidade Federal de Pernambuco e Professora de Direito Penal e Criminologia da Universidade Católica de Pernambuco e da Universidade de Pernambuco) e Marília Montenegro de Mello (Doutora em Direito Penal e Criminologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Professora de Direito Penal e Criminologia da Universidade Católica de Pernambuco e da Universidade Federal de Pernambuco), em artigo intitulado “Nas ruas, o eco à redução da violência estatal perpassa necessariamente o apoio à não redução da idade penal”:
“Resta claro que os direitos fundamentais não necessitam do consentimento da maioria da população, devendo ser garantidos sempre. Não valendo, portanto, o argumento de que a maioria da população é a favor do rebaixamento da menoridade penal. “Ninguna mayoría, se ha dicho, puede decidir la supresión de un inocente o la privación de los derechos fundamentales de un individuo o un grupo minoritario; y tampoco puede dejar de decidir las medidas necesarias para que a un ciudadano le sea asegurada la subsistencia y la supervivencia. En suma, el principio de la democracia política, relativo al quién decide, se encuentra subordinado a los principios de la democracia social relativos a qué no es lícito decidir y a qué es lícito dejar de decidir” (Ferrajoli, 1997, p. 865).A relação entre a democracia e os direitos humanos não pode restringir-se apenas aos direitos políticos, mas deve atingir também os direitos econômicos, sociais e culturais, razão pela qual não pode reduzir-se à realização de eleições: “A construção de uma democracia real e o fortalecimento do Estado de Direito hão de dar-se à luz da interrelação ou indivisibilidade de todos os direitos humanos” (Cançado Trindade, 1993, p. 211). Então, para que haja uma exigência dos direitos humanos é necessária a existência de um Estado Democrático de Direito, em que “derechos fundamentales y democracia, a pesar de todas las tensiones, entren en una inseparable asociación” (Alexy, 1995, p. 136). É com base nessas considerações e na tentativa de produzir conhecimento a partir de informações que se pretende munir a população de informações a respeito da PEC 33/2011 que visa reduzir a idade penal para 16 anos e do Projeto de Decreto Legislativo do Senado 539/2012, que tem como objeto a convocação de Plebiscito para consulta dos eleitores no primeiro turno das eleições de 2014 sobre a alteração da maioridade penal.Vejamos:a) O adolescente é um ser em desenvolvimento da sua personalidade. Extremamente informado, cada vez mais cedo depara com uma gama de escolhas e decisões a tomar. No entanto, informação não se confunde com maturidade, ponderação de consequências ante as escolhas. Os adolescentes são impulsivos, subestimam riscos, suscetíveis ao stress, são mais instáveis no sentido de controlar suas emoções. Desse modo, as decisões contam apenas com os efeitos a curto prazo, sem mencionar a necessidade de condutas específicas para integração, num movimento de pertencimento (Mercurio, 2010). Os jovens parecem procurar uma obtenção de prestígio e saliência social, as quais passam a ser alcançadas por condutas de riscos, justificadas como a busca de novas experiências de prazer e emoção. Afirma-se que “sem rebeldia e sem contestações não há adolescência normal” (Osório, 1992). Por isso é viável afirmar que a normalidade da adolescência é contestadora, arredia, desbravadora e ousada, razão pela qual a adolescência é infratora (e isto é um pleonasmo!); no entanto, o que se costuma afirmar é que somente alguns o são. Na verdade, nem toda transgressão é delinquência, razão pela qual este status (delinquente), além de transitório, não está incorporado na estrutura cognitivo-emocional; até porque com o amadurecimento dos adolescentes, pequenas infrações são deixadas de lado, ao passar por uma fase chamada peack-age (Albrecht, 1990), sem necessidade de cerco punitivo.b) A Convenção dos Direitos da Criança de 1989 é um marco de superação do paradigma tutelar, quando “menores” eram objeto e não sujeitos de direito. À CDC somam-se vários outros documentos que se convencionou denominar Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral à Criança, os quais têm por fundamentos os valores em Direitos Humanos. O Brasil é pioneiro na América Latina em aderir à Convenção, por meio do Decreto 99.710/1990, de modo que crianças e adolescentes têm direitos e garantias fundamentais atribuídos a qualquer cidadão brasileiro. Pela primeira vez na história das constituições, o Brasil prevê dois artigos específicos (227 e 228) sobre a temática, neste último estabelece a idade penal aos 18 anos, adequando-se às recomendações internacionais.c) A definição de uma idade penal deriva da condição da personalidade infantojuvenil, que está em processo de desenvolvimento, garantindo esse desenvolvimento sadio e paulatino. Ou seja, inimputabilidade, que não se confunde com irresponsabilidade, torna-se um direito fundamental (Sposato, 2009), razão pela qual é cláusula pétrea e impassível de modificação, tal como define o art. 60, § 4.º, IV, da CF. Aliás, o estabelecimento de uma idade mínima para início da responsabilização atende a instruções das Regras de Beijing (item 4.1).d) Desse modo, não pode haver alteração da idade penal, nem mesmo mediante plebiscito. Somente uma nova Constituinte poderia alterar o direito à inimputabilidade. Outrossim, vigora no Brasil o princípio da proibição do retrocesso (Silva, 2010), segundo o qual a sociedade não pode abandonar conquistas históricas e sociais, especialmente as positivadas na Constituição. Para além, considerando ser o Brasil signatário daqueles documentos internacionais, prévios à EC 45, e sendo fundados em direitos humanos, aqueles têm natureza supralegal, dado o julgamento dos RE 466.343/SP e RE 349.703 do STF. Ou seja, os ditos tratados internacionais situam-se entre as normas constitucionais e a legislação infraconstitucional, de modo que não podem afrontar/revogar os dispositivos da Carta Magna, porém, têm o condão de paralisar os conteúdos normativos expressos nas legislações infraconstitucionais que com eles sejam conflitantes.e) A pretensão social de redução da idade penal decorre de um falso conhecimento da realidade da infância e juventude brasileiras, seja porque a alta criminalidade não é praticada por adolescentes, seja porque os atos infracionais não são graves. Segundo o IBGE de 24.461.666 de adolescentes no Brasil, apenas 0,1425% representa a população dos que se encontram em conflito com a lei, o que em números absolutos significa 34.870; bem diferente do que passa a mídia, no seu contexto de alarme social. Além disso, a maioria dos atos infracionais são roubo, tráfico de entorpecentes, homicídio. Outros delitos com proporções muito menores (CNJ, 2011).f) Há um mito da impunidade. Os adolescentes em conflito com a lei são devidamente responsabilizados por seus atos infracionais, e na maioria das vezes mais do que os adultos. A afirmativa decorre do desconhecimento jurídico e da realidade das medidas socioeducativas, que são muito assemelhadas às penas estabelecidas na legislação penal. As condições de internação são de superlotação. Para registrar, em Pernambuco, existem 12 unidades de internação, com o total de 737 vagas, mas com 13.719 internos, o que significa um déficit de 12.982 vagas. No que tange ao encaminhamento dos processos no Judiciário é comum se perceber internações desprovidas de fundamento legal, como é o caso da prática de tráfico de entorpecente (inclusive o STJ promulgou a Súmula 492 proibindo tal hipótese) em clara violação ao princípio da legalidade, mas eufemisticamente justificado pelo caráter pedagógico da medida. g) A crença popular de que a lei penal é capaz de promover defesa social ampara-se na promessa de prevenção geral, a qual, porém, inexiste. Tal assertiva pode ser percebida no âmbito dos adultos com comparação entre os dados carcerários e a produção legislativa em matéria penal desde a década de 90. Ou seja, o efeito simbólico da lei penal de intimidação não funciona.h) A sociedade desconhece a realidade socioeconômica e o grau de vitimização da população infantojuvenil. Segundo o IBGE em 2005 e 2006, o Brasil tinha 24.461.666 adolescentes entre 12 e 18 anos, entre os quais existem discrepantes diferenças sociais: há maior pobreza nas famílias dos adolescentes não brancos do que nas de brancos. Outrossim, mais de 8.600 crianças e adolescentes foram assassinados no Brasil em 2010, ficando o país na quarta posição entre os 99 países com as maiores taxas de homicídio de crianças e adolescentes de 0 a 19 anos, um índice que cresce vertiginosamente ao longo dos anos (Waiselfisz, 2012, p. 47). Em 2012, mais de 120 mil crianças e adolescentes foram vítimas de maus-tratos e agressões. Desse total de casos, 68% sofreram negligência, 49,20% violência psicológica, 46,70% violência física, 29,20% violência sexual e 8,60% exploração do trabalho infantil, conforme levantamento feito entre janeiro e agosto de 2011 (Abrinq, 2012). Em 34 instituições brasileiras, pelo menos um adolescente foi abusado sexualmente e são eles vítimas de homicídio.Como se percebe há uma extrema violência praticada por adultos contra crianças e adolescentes pobres e negros, de modo que é possível alegar que, se se argumenta que a criminalidade praticada por adolescentes aumenta, esta assertiva é o atestado da incompetência estatal no que tange ao abandono. Porém, no espaço social alarmado e amedrontado, é politicamente mais eleitoreiro falar em soluções simplistas de segurança pública, em vez de cuidar da infância pobre e vitimizada brasileira. Ou seja, a penalização dos problemas sociais é a política de pão e circo do poder público ante a sociedade desinformada e acrítica.i) O reflexo das desigualdades sociais e do desinteresse governamental pela infância e juventude pobre e marginalizada é refletido nos espaços institucionalizados das medidas socioeducativas. Em 2002 (Paiva) já verificava que os adolescentes submetidos às medidas socioeducativas eram 90% do sexo masculino; com idade entre 16 e 18 anos (76%); da raça negra (mais de 60%); não frequentavam a escola (51%), não trabalhavam (49%) e viviam com a família (81%) quando praticaram o delito. Não concluíram o ensino fundamental (quase 50%); eram usuários de drogas (85,6%). Recentemente, verificou-se que esse quadro não sofreu modificações (Ministério da Justiça, 2010). Portanto, o que se verifica é que a desigualdade social entre adolescentes na população brasileira é reproduzida no âmbito dos adolescentes ditos infratores, sendo fácil compreender que os problemas sociais são resolvidos no espaço da institucionalização, de modo que é possível perceber que a proposta de redução da idade penal é uma forma simplista de retardar/desvirtuar a responsabilidade estatal e da sociedade civil organizada de inclusão social e resgate cidadão da infância marginalizada. j) Não obstante todas essas questões, nada adianta a transferência do adolescente para o sistema carcerário com déficit de 84,9% de vagas (Ministério da Justiça, 2012). Sem levar em conta a cultura violenta e criminógena do cárcere, a qual se instalará fortemente nos adolescentes, visto estarem os estes em desenvolvimento da sua personalidade.Enfim, todos esses argumentos são levantados no sentido de alertar a população de que a demanda nas ruas, entre outras, de redução da violência estatal, perpassa necessariamente a diminuição da violência do Estado perante a adolescência marginalizada, e que a defesa da redução da idade penal, contrariamente ao que se reivindica, é uma carta de alforria para o Estado continuar violentando adolescentes pobres, desconhecidos das políticas públicas, mas perseguidos pelos mecanismos de segurança pública.Nesse momento, os sentimentos da população são de emotividade e, associados com o desconhecimento da realidade e de consequências a longo prazo, esta termina por agir muito mais na pauta dos instintos. Isso porém não pode afetar a racionalidade que justifica a existência de poderes públicos para a governança cujo dever é garantir a essência que une e sustenta a democracia a Dignidade da Pessoa Humana.” (grifamos).
Estas palavras tomo-as como a minha conclusão.
Notas e Referências:
[2] A despenalização traduz o princípio da intervenção mínima do Direito Penal, pelo qual “limita-se o poder punitivo do Estado, que com freqüência tende a se expandir, principalmente nas situações de crises político-institucionais e nas comoções de natureza sócio-econômica, quando a repressão procura ser uma barragem contra a revolta e a marginalidade que alimentam a delinqüência patrimonial violenta.” (crf. René Ariel Dotti, in Bases e Alternativas para o Sistema de Penas, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 266).
[3] Idem.
[4] Bitencourt, Cezar Roberto, Novas Penas Alternativas, São Paulo: Saraiva, 1999, p. 1.
[5] Hulsman, Louk e Celis, Jacqueline Bernat de, Penas Perdidas – O Sistema Penal em Questão, Niterói: Luam, 1997, p. 69
[6] Karam, Maria Lúcia, De Crimes, Penas e Fantasias, Rio de Janeiro: Luan, 1991, p. 177.
[7] Franco, Alberto Silva, Crimes Hediondos, São Paulo: Revista dos Tribunais, 4ª. ed., 2000, p. 97.
[8] Ciência Jurídica – Fatos – nº. 20, maio de 1996.
[9] O Judiciário e a Comunidade – Prós e Contras das Medidas Sócio-Educativas em Meio Aberto, Núcleo de Pesquisas do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim, São Paulo, 2000, p. 10.
[10] Em manifesto aprovado pela unanimidade dos presentes ao VIII Encontro Nacional de Secretários de Justiça, realizado nos dias 17 e 18 de junho de 1991, em Brasília, foi dito que havia no Brasil, segundo o Ministério da Justiça, milhares de mandados de prisão aguardando cumprimento, e que as prisões, em todos os estados da federação, estavam superlotadas, o que comprometia o tratamento do apenado e pavimentava o caminho para a reincidência (in Prisão – Crepúsculo de uma Era, Leal, César Barros, Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 55).
[11] Conversações Abolicionistas – Uma Crítica do Sistema Penal e da Sociedade Punitiva, São Paulo: IBCCrim, 1997, p. 275.
[12] idem
[13] Dos Delitos e das Penas, São Paulo: Hemus, 1983, p. 43.
[14] Marat, Jean Paul, Plan de Legislación Criminal, Buenos Aires: Hamurabi, 2000, p. 78 (tradução espanhola do original Plan de Legislation Criminelle, Paris, 1790).
Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.
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