A COLABORAÇÃO PREMIADA E A UTILIZAÇÃO DAS INFORMAÇÕES NA AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

22/10/2020

Mesmo antes da edição da lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, a melhor doutrina e jurisprudência vinha posicionado favoravelmente à adoção do instituto da colaboração premiada na ação de improbidade administrativa, ao argumento de que a antiga vedação contida 17, § 1º, da Lei nº 8.429/92 havia sido revogada tacitamente por outras normas do ordenamento jurídico, especialmente a Lei nº 12.850, de 02 de agosto de 2013, que permitia a colaboração premiada no âmbito criminal.

Com as devidas venias, tal entendimento não merecia prosperar, tendo em vista que o dispositivo em questão encontra-se revogado tacitamente por outras normas do ordenamento jurídico que autorizam a “colaboração premiada”.

De mais a mais, a adoção da colaboração premiada na ação de improbidade administrativa tem como objetivo o ressarcimento e eventuais valores desviados dos cofres públicos, portanto, a celebração da colaboração premiada na ação de improbidade visa atender aos interesses da coletividade, no que tange à recuperação dos valores desviados.

Como será visto ao longo deste texto, a aplicação da colaboração premiada na ação de improbidade administrativa é louvável e salutar. Feitas essas considerações, passa-se ao estudo do tema proposto.

 

1. A AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

A Ação de improbidade está disciplinada na Lei nº 8.429/1992, tendo como objetivo penalizar o agente público e os terceiros em colaboração.

A improbidade administrativa pode ser definida como um ato do agente público, ou do particular em colaboração, contrário aos interesses da Administração Pública, ou seja, para a configuração do ato improbo é necessária a comprovação de conduta desonesta, de má-fé, em busca de proveito pessoal ou de outrem, podendo também ser configurada através de conduta culposa grave.

Na ausência destes elementos, não há que se falar em ato de improbidade, pois não foi intenção do legislador pátrio penalizar todo e qualquer ato irregular mas sim àqueles atos praticados de forma desonesta, de má-fé ou os atos praticados com erros grosseiros que lesionam o Estado.

A norma em questão não objetiva penalizar as meras irregularidades praticadas sem a ausência de dolo ou erro grosseiro, tendo em vista que, para a configuração do ato de “improbidade administrativa, é necessária a perquirição do elemento volitivo do agente público e de terceiros, não sendo suficiente, para tanto, a irregularidade ou a ilegalidade do ato administrativo.

Com este posicionamento, não se busca encobrir ou justificar os danos causados ao erário. A nossa defesa é no sentido de que seja respeitado o devido processo legal no curso da ação de improbidade e que o acusado somente venha a ser condenado se existir elemento probatório suficiente que comprove o ato lesivo praticado.

Cabe registrar que a Ação de Improbidade, apesar de tratar de uma ação cível, tem um rito diferenciado das ações cíveis em geral, com previsão no artigo 17, §§ 7º e seguintes, da Lei nº 8.429/1992, onde o acusado primeiramente é notificado para oferecer manifestação por escrito.

Após a manifestação, o juiz, no prazo de trinta dias, em decisão fundamentada, rejeitará a ação, se convencido da inexistência do ato de improbidade, da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita.

Infelizmente, na prática, é feita uma análise superficial da manifestação apresentada, onde a ação de improbidade é recebida mesmo inexistindo elementos suficientes quando da prática de ato de improbidade administrativa, o que é inconcebível, pois muitas vezes as ações infundadas tramitam por vários anos e então resultam em improcedência, o que é prejudicial ao judiciário em razão da movimentação da máquina estatal de forma desnecessária, além de causar danos irreparáveis à imagem do acusado.

Uma vez recebida a ação de improbidade administrativa, o acusado será citado para apresentar contestação, conforme está estabelecido no artigo 17, § 9º, da Lei nº 8.429/1992. A partir do recebimento da ação de improbidade, aplicar-se-á o rito processual estabelecido no Código de Processo Civil de 2015.

 

2. A COLABORAÇÃO PREMIADA NA AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

A colaboração premiada é um negócio jurídico celebrado entre as partes da relação processual, que após a homologação judicial confere ao colaborador o direito de ter suas penas reduzidas em troca de fornecimento de provas quanto ao envolvimento de terceiros em ação criminosa, permitindo assim alcançar todos os responsáveis pelos atos fraudulentos, sendo que, em razão da sofisticação dos meios de corrupção, o Estado não conseguiria punir todos os envolvidos nos atos de corrupção sem a colaboração premiada.

Vale registrar que a colaboração premiada ingressou no ordenamento jurídico brasileiro com a Lei 8072, de 25 de julho de 1990, prevendo que “o participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços”.

Já a Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, definiu a natureza jurídica da colaboração premiada como um meio processual negocial para fins de obtenção de prova (art. 3º, inciso I, da Lei 12.850/2013), onde o investigado negocia com a Autoridade Policial ou com o Ministério Público o recebimento de benefícios (perdão judicial ou redução das penalidades) em troca de fornecimento de provas quanto à participação de outros envolvidos em atos criminosos.

Em 24 de dezembro de 2019 foi sancionada a Lei nº 13.964, que tratou de aperfeiçoar a “colaboração premiada”, prevendo que “o acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos”, para que a homologação seja aceita. Dessa forma, sempre que presentes a utilidade e o interesse da coletividade deve ser deferida a colaboração premiada.

Nas palavras do processualista Gustavo Henrique Badaró,

a colaboração premiada seria, então, tanto um meio de prova, no que diz respeito às declarações do colaborador e, portanto, diretamente valoráveis pelo juiz, quanto um meio de obtenção de prova, a partir da necessidade de que sejam descobertos e levados ao processo outros elementos de corroboração da declaração hétero-incriminatória.[1]

Destarte, pode-se dizer que a colaboração premiada é meio de obtenção de provas quanto à participação de indivíduos em eventos criminosos, o que pelas vias normais não seria possível em razão da sofisticação dos crimes praticados.

A Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, pôs fim a discussão sobre a possibilidade de celebrar a colaboração premiada na ação de improbidade administrativa, tendo em vista que o § 1º do artigo 17 da Lei nº 8.429/1992 passou a prever que “As ações de que trata este artigo admitem a celebração de acordo de não persecução cível”.

Por força da alteração introduzida pela Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, o artigo 17 da Lei nº 8.429/1992 passou a contar com o § 10-A, que estabelece que “Havendo a possibilidade de solução consensual, poderão as partes requerer ao juiz a interrupção do prazo para a contestação, por prazo não superior a 90 (noventa) dias”, ou seja, a colaboração premiada na ação de improbidade administrativa passou a ser prevista expressamente.

Este autor já sustenta ser possível a celebração de colaboração premiada no âmbito da ação de improbidade administrativa, ao argumento que a antiga vedação contida no § 1º do artigo 17 da Lei nº 8.429/92 encontrava-se revogada tacitamente por outras normas do ordenamento jurídico, especialmente pela Lei nº 12.850, de 02 de agosto de 2013 e Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que permitem a colaboração premiada no âmbito criminal.

Outrossim, a Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015, admite a autocomposição de conflitos no âmbito da Administração Pública, portanto, a antiga vedação contida no § 1º do artigo 17 da Lei nº 8.429/1992 encontra-se revogada tacitamente, tendo em vista a existência de norma posterior que dispõe sobre a possibilidade de transação em matérias envolvendo o Estado.

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em decisão proferida no AG nº 50016898320164040000, tendo como relator o Desembargador Federal Luís Alberto D'Azevedo Aurvalle, firmou o entendimento de que os acordos celebrados em colaboração premiada podem ser utilizados na ação de improbidade administrativa. Eis os argumentos apresentados pelo Desembargador Federal:

O artigo 17, § 1º, da Lei 8.429/92 veda a "transação, acordo ou conciliação" nas ações de improbidade administrativa. Se em 1992, época da publicação da Lei, essa vedação até se justificava tendo em vista que estávamos engatinhando na matéria de combate aos atos ímprobos, hoje, em 2015, tal dispositivo deve ser interpretado de maneira temperada.

Isso porque, se o sistema jurídico permite acordos com colaboradores no campo penal, possibilitando a diminuição da pena ou até mesmo o perdão judicial em alguns casos, não haveria motivos pelos quais proibir que o titular da ação de improbidade administrativo, no caso, o MPF pleiteie a aplicação de recurso semelhante na esfera cível. Cabe lembrar que o artigo 12, parágrafo único, da Lei 8.249/92 admite uma espécie de dosimetria da pena para fins de improbidade administrativa, sobretudo levando em conta as questões patrimoniais.

Portanto, os acordos firmados entre os réus e o MPF devem ser levados em consideração nesta ação de improbidade administrativa[2].

Na mesma trilha, foi o posicionamento adotado pelo TJPR no Agravo de Instrumento 0027018-48.2018.8.16.0000, eis a ementa do julgado:

Agravo de Instrumento. Ação Civil pública por ato de improbidade administrativa. Desdobramentos cíveis da operação publicano. Receita estadual. Complexo esquema de supostos atos de improbidade administrativa, crimes contra a administração pública, tributários e lavagem de ativos, que geraram, a um só tempo, enriquecimento ilícito de agentes públicos e vultuoso prejuízo ao erário do estado, em decorrência da sonegação de tributos estaduais. Extensão dos efeitos da colaboração premiada à ação civil pública por ato de improbidade administrativa. Possibilidade. Pedido expresso do ministério público buscando a declaração de cometimento de ato ímprobo, sem a imposição de sanções. Possibilidade. Acordo de colaboração premiada que prevê pedido de isenção de pena na esfera penal. Extensão do pedido à esfera cível. Decisão por princípio. Lógica sistêmica. Acordo de colaboração que possibilita isenção de pena em âmbito penal, do ordenamento ultima ratio jurídico. Coerência da extensão dos mesmos efeitos ao âmbito cível. Revogação tácita do §1º, art. 17, da lei nº 8.429/92 (vedação à transação, acordo ou conciliação na ação de improbidade) pela lei nº 13.140/2015 (autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública).

  1. A Lei nº 13.140/2015, que regula a autocomposição de conflitos no âmbito da Administração Pública, abandona a ideia de indisponibilidade do direito, marcante na Lei nº 8.429/92, aproximando-se dos princípios da efetividade e da duração razoável do processo, o que possibilita a extensão do acordo de colaboração premiada firmado em âmbito penal à ação de improbidade administrativa.
  2. “(...) não há obrigação no ordenamento jurídico, sobretudo em virtude do

parágrafo único do artigo 4º do CPC, de que em casos de lesão a direitos haja sempre o pedido de reparação. Pode haver apenas o pedido de declaração de violação desses direitos. No caso em concreto pode haver apenas o pedido de declaração que determinados atos foram de improbidade, sem que haja pretensão de reparação judicial de tais atos (mesmo porque já foram alvo de acordo)” (TRF4 – AG nº 5001689-83.2016.404.0000 – Quarta Turma – Relator: Luís Alberto D’Azevedo Aurvalle – DJe: 28/01/2016). RECURSO PROVIDO. (TJPR - 5ª C. Cível - 0027018-48.2018.8.16.0000 - Londrina -  Rel.: Desembargador Nilson Mizuta -  J. 12.02.2019)

Para o Tribunal de Justiça Paranaense, “a Lei nº 13.140/2015, que regula a autocomposição de conflitos no âmbito da Administração Pública abandona a ideia de indisponibilidade do direito, até então prevista na Lei nº 8.429/92, aproximando-se dos princípios da efetividade e da duração razoável do processo, o que possibilita a extensão do acordo de colaboração premiada firmado em âmbito penal à ação de improbidade administrativa”, reforçando a tese de que a vedação prevista na redação original do § 1º do artigo 17 da Lei nº 8.429/1992 encontra-se revogada tacitamente.

Mesmo antes da edição da Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, parte da doutrina sustentava que a vedação de realização de transação, acordos ou conciliação, prevista na antiga redação do § 1º do artigo 17 da Lei de Improbidade Administrativa, deveria ser afastada em detrimento do interesse público na obtenção de informações por meio dos acordos provenientes da delação premiada, até porque um dos objetivos da ação de improbidade é a tutela do patrimônio público pertencente à coletividade, “potencializando a recomposição do dano ao erário”[3].

Na defesa da possibilidade da adoção da colaboração premiada na improbidade administrativa Matheus Carvalho ensina que “a delação premiada seria uma forma de auxiliar o poder público no combate a condutas violadoras da moralidade pública, permitindo a punição dos responsáveis por grandes esquemas de corrupção, permitindo ao Ministério Público atingir o topo da pirâmide, alcançando todos os responsáveis pelos atos danosos[4]”.

Vale registrar que a colaboração premiada na ação de improbidade é um instrumento de autodefesa do acusado por ato de improbidade administrativa, que em razão do acordo celebrado com o Ministério Público consegue a redução das penalidades estabelecidas no artigo 12 da Lei de Improbidade Administrativa, sendo, portanto, vantajosa para o acusado.

Nessa trilha, posicionou-se o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, no julgamento do AI - 1589460-7, 5ª Câmara Cível, aduzindo que: “Aquele que colabora de maneira importante com a investigação deve ter a pena diminuída, atenuada, ou até mesmo ser aplicado o perdão judicial, de acordo com a participação no ato de improbidade administrativa”[5]. Portanto, não há dúvida de que a colaboração premiada é um meio de autodefesa do acusado por ato de improbidade administrativa ou por ilícito penal.

Outrossim, a adoção da colaboração de premiada no âmbito da ação de improbidade é benéfica para o acusado pela prática do ato improbo, sendo também vantajosa para a Administração Pública, vez que é um instrumento eficaz para potencializar a recomposição do dano causado ao erário, portanto, não assiste razão aos que posicionam contrário à adoção da colaboração premiada na ação de impossibilidade administrativa, até porque o instituto em questão é vantajoso tanto para o acusado quanto para a Administração lesada pelo ato de improbidade.

Destarte, a colaboração premiada é de grande valia na persecução de crimes praticados contra a Administração Pública, pois, em razão da sofisticação dos crimes, muitas vezes não é possível desvendá-los pelas vias normais, necessitando, para isso, da colaboração de envolvidos nos ilícitos para desmantelar organizações criminosas que corroem o Patrimônio Público.

No entanto, para o deferimento da homologação da delação premiada, seja na ação penal ou na ação de improbidade, é imprescindível o fornecimento pelo colaborador de provas concretas acerca da participação de terceiros no ato criminoso, não podendo ser homologada a delação com base exclusivamente no depoimento. Todas as informações prestadas deverão ser corroboradas por provas, pois do contrário poderia o colaborador apenas acusar um terceiro para se livrar de eventual condenação, o que é temerário e inadmissível, até porque o artigo 373 do Código de Processo Civil aduz que compete ao autor comprovar os fatos alegados.

Insta salientar que a Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, não definiu o alcance da colaboração premiada na Ação de Improbidade Administrativa, ou seja, não disciplinou o que poderá ser objeto de acordo entre a Administração e o colaborador. Entendo ser possível a celebração do acordo no que tange as penalidades, como a perda do cargo ou função pública, suspensão dos direitos políticos, proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios e pagamento de multa civil. Entretanto, no que se refere ao "ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio”, entendo não ser possível a celebração de acordo, por se tratar de valores desviados da Administração, sendo, portanto, indisponíveis.

 

2.1 A utilização as informações da colaboração premiada na ação de improbidade administrativa

Apesar de posicionamentos em contrário, a melhor doutrina e jurisprudência entendem que é perfeitamente possível a utilização das informações provenientes da delação premiada na ação de improbidade administrativa, desde que se trate de prova robusta quanto à prática do ato improbo, não sendo admitido o ajuizamento de ação de improbidade tão somente com base nas declarações prestadas pelo colaborador.

As provas obtidas na colaboração premiada são hábeis para instruir qualquer tipo de ação, seja penal ou cível. O que não pode ser admitido é a propositura de ação com base em declarações prestadas pelo colaborador desacompanhada de outras provas robustas.

O Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, no julgamento do AI - 1589460-7, 5ª Câmara Cível[6], tendo como Relator o Desembargador Nilson Mizuta, reafirmou seu posicionamento pela possibilidade de utilização das informações obtidas na delação premiada na ação de improbidade administrativa, o que é digno de aplausos.

O Supremo Tribunal Federal no ARE 1175650/PR[7], tendo como Relator o Ministro Alexandre de Moraes, reconheceu a repercussão geral em Agravo que discute se é possível utilizar informações de delação premiada em ação de improbidade administrativa. Para o Relator do ARE, a discussão trata da potencial ofensa ao princípio da legalidade, por se admitir a colaboração premiada na ação de improbidade sem expressa autorização legal.

Com as devidas venias, não merece prosperar a alegação de que a utilização das informações obtidas na ação de improbidade administrativa afronta o princípio da legalidade (art. 5º, inciso II, da CRB/88), tendo em vista que deve prevalecer o interesse da coletividade na busca do ressarcimento dos valores desviados dos cofres públicos.

O conflito em questão (princípio da legalidade x interesse da coletividade) deve ser resolvido pela técnica da ponderação na aplicação dos princípios, desenvolvida pelo alemão Robert Alexy[8], tendo a melhor doutrina nacional, bem como a jurisprudência dominante, acampado sua tese. Tal método de interpretação principiológica visa adequar os princípios a cada caso concreto, objetivando impedir a supremacia de determinado princípio.

Em determinadas situações, a proteção de um determinado direito fundamental resultará em violação a outro bem jurídico tutelado pela norma constitucional, em razão disto o intérprete deve lançar mão da técnica de ponderação para solucionar o conflito. Nesse sentido, são os ensinamentos do professor Virgílio Afonso da Silva:

“é possível que, em casos concretos específicos, após a aplicação da proporcionalidade e de sua terceira sub-regra, a proporcionalidade em sentido estrito (sopesamento/ponderação), nada reste de um determinado direito. Por mais que isso soe estranho e posse passar uma certa sensação de desproteção, isso apenas reflete o que ocorre em vários casos envolvendo direitos fundamentais. Quando alguém, por exemplo, tem seu sigilo telefônico devassado e suas conversas interceptadas, nada sobra desse direito fundamental. Quando se proíbe a exibição de determinado programa de televisão ou a publicação de determinada matéria jornalística, também sobra pouco ou nada da liberdade de imprensa naquele caso concreto. Quando alguém é condenado a pena de reclusão, sua liberdade de ir e vir é aniquilada. Ou, por fim – e talvez de forma ainda mais clara -, quando alguém de um terreno que é desapropriado, o seu direito, nesse caso concreto, desaparece por completo. Em diversos casos semelhantes, por ser impossível graduar a realização de um determinado direito, qualquer restrição a ela é uma restrição total ou quase total”.[9]

Nas palavras de Daniel Sarmento, a técnica de ponderação de interesses é fundamental na aplicação das normas. Eis os comentários do autor:

“longe de se limitar à normatização esquemática das relações entre cidadão e Estado, a Constituição de 1988 espraiou-se por uma miríade de assuntos, que vão da família à energia nuclear. Assim, é difícil que qualquer controvérsia relevante no direito brasileiro não envolva, direta ou indiretamente, o manejo de algum princípio ou valor constitucional. A ponderação de interesses assume, neste contexto, relevo fundamental, não apenas nos quadrantes do Direito Constitucional, como também em todas as demais disciplinas jurídicas”.[10]

Segundo a melhor doutrina, no processo de ponderação o intérprete deve levar em conta o princípio da proporcionalidade:

“O juízo de ponderação a ser exercido liga-se ao princípio da proporcionalidade, que exige que o sacrifício de um direito seja útil para a solução do problema, que não haja outro meio menos danoso para atingir o resultado desejado e que seja proporcional em sentido estrito, isto é, que o ônus imposto ao sacrificado não sobreleve o benefício que se pretende obter com a solução. Devem-se comprimir no menor grau possível os direitos em causa, preservando-se a sua essência, o seu núcleo essencial (modos primários típicos de exercício do direito). Põe-se em ação o princípio da concordância prática, que se liga ao postulado da unidade da Constituição, incompatível com situações de colisão irredutível de dois direitos por ela consagrado”.[11]

Vale dizer que o hermeneuta somente deverá adotar a técnica de ponderação de interesses caso não seja possível harmonizar os interesses colidentes, para que nenhum direito fundamental seja afetado de forma negativa, não sendo possível, aí sim o hermeneuta poderá lançar mão da técnica de ponderação para averiguar qual dos direitos colidentes deve prevalecer.

Segundo o constitucionalista George Marmelstein, a necessidade de sopesamento passa necessariamente pela aceitação da existência de hierarquia axiológica entre os valores constitucionais[12]. No caso em estudo, há uma hierarquia axiológica entre o princípio do interesse da coletividade em busca do ressarcimento dos valores desviados (art. 37, §§ 4º e 5º da CRB/88) e o princípio constitucional legalidade (art. 5º, II, da CRB), este visa resguardar os interesses do investigado, enquanto aquele busca o ressarcimento dos valores desviados em prol da coletividade, devendo o interesse da coletividade sobrepor sobre o interesse do investigado.

Diante do exposto, espera-se que o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do mérito do ARE 1175650/PR, posicione pela possibilidade de utilização das informações concretas obtidas na delação premiada para instruir a ação de improbidade administrativa, tendo em vista que a utilização é vantajosa para a coletividade, pois propicia o ressarcimento dos valores desviados dos cofres públicos.

Feitas essas considerações, pode-se concluir que as provas obtidas da colaboração premiada podem ser utilizadas na ação de improbidade administrativa, até porque a Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, passou admitir expressamente a celebração de acordo de não persecução cível, portanto, não assemelha razoável deixar de utilizar as provas obtidas da colaboração premiada na ação de improbidade administrativa.

 

2.2 A Interceptação telefônica como prova emprestada na ação de improbidade e na colaboração premiada

Embora a Lei nº 9.296, de 24 de junho de 1996, disponha sobre a interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, como meio de prova em investigação criminal e em instrução processual penal, as interceptações telefônicas colhidas para instrução probatória na ação penal podem ser utilizadas, como meio de prova emprestada, nos autos de ação de improbidade administrativa ou em procedimentos administrativos disciplinares. O Supremo Tribunal Federal, no Inquérito nº 2424 QO-QO/RJ, tendo como relator o Ministro Cézar Peluso, firmou o entendimento no sentido de que os

Dados obtidos em interceptação de comunicações telefônicas e em escutas ambientais, judicialmente autorizadas para produção de prova em investigação criminal ou em instrução processual penal, podem ser usados em procedimento administrativo disciplinar, contra a mesma ou as mesmas pessoas em relação às quais foram colhidos, ou contra outros servidores cujos supostos ilícitos teriam despontado à colheita dessa prova[13].

No mesmo sentido, a Suprema Corte, ao julgar o Agravo em Recurso Extraordinário nº 825878, em 19/11/2014, manteve o mesmo entendimento fixado nos autos do Inquérito nº 2424, reafirmando que a prova produzida em ação penal pode ser emprestada para fins de instrução de inquérito civil público[14].

Vale registrar que a prova emprestada deve ser submetida ao crivo do contraditório, devendo ainda ter autorização judicial do juízo criminal, “e não da ação na qual o resultado da medida probatória figurará como prova emprestada, daí porque inexiste a nulidade por ausência do referido provimento judicial”[15].

O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento no sentido de que “em relação às provas obtidas por interceptação telefônica, não há ilegalidade na utilização desses elementos na ação de improbidade, quando resultarem de provas emprestadas de processos criminais”[16].

Segundo Marcos Paulo Dutra Santos[17] os

Tribunais superiores assentaram que a interceptação telefônica, originariamente, só pode ser efetivada para fins penais, ex vi do artigo 5º, XII, da Constituição; porém, uma vez ultimada, as transcrições das gravações podem ser exploradas enquanto prova emprestada para objetivos não penais, desde que correlatos ao crime que ensejou a interceptação”.

Assim, as provas obtidas por interceptação telefônica podem ser empregadas para amparar a homologação do acordo de delação premiada na ação de improbidade administrativa, desde que ocorra com a autorização do juízo criminal.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos fatos relatados, pode-se concluir que, mesmo antes da vigência da Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, já era possível a celebração de colaboração premiada na ação de improbidade administrativa, tendo em vista que a vedação contida na redação original do § 1º do artigo 17 da Lei de Improbidade Administrativa já estava revogada tacitamente pelas normas jurídicas vigentes, especialmente a Lei nº 12.850, de 02 de agosto de 2013, que permitia a colaboração premiada no âmbito criminal.

A colaboração premiada, devidamente homologada, confere ao colaborador o direito de ter suas penas reduzidas em troca de fornecimento de provas quanto ao envolvimento de terceiros na ação criminosa, permitindo assim alcançar todos os responsáveis pelos atos fraudulentos que, em razão da sofisticação dos meios de corrupção, o Estado não conseguiria punir todos os envolvidos nos atos de corrupção. Portanto, a adoção do instituto da delação premiada na ação de improbidade é digna de aplausos.

De mais a mais, a colaboração premiada na ação de improbidade é um instrumento de autodefesa do acusado, portanto, a adoção da colaboração premiada é vantajosa tanto para a Administração Pública, como também para os acusados pela prática de ato de improbidade, este no que tange à diminuição da pena, aquela no que se refere ao ressarcimento dos valores desviados.

 

Notas e Referçencias

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.

AVILA, Humberto, Teoria dos Princípios - Do princípio à aplicação dos princípios jurídicos, 18. ed., 2018.

CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 3. ed. Salvador:  Juspodivm, 2016, p. 972.

DIDIER JR. Fredie. Revista Consultor Jurídico, 14 de dezembro de 2017. https://www.conjur.com.br/2017-dez-14/possivel-acordo-delacao-improbidade-advogado. Acesso em 15/08/2018.

MASSON, Cleber; MARÇAL, Vinicius. Crime Organizado. São Paulo: Método, 2015.

MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011.

MARQUES, Cláudia Lima. Comentários ao código de Defesa do Consumidor. 3. ed. Rev., ampl., E atual.- São Paulo: Revista dos Tribunais. 2010.

MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

SILVA, Virgílio Afonso. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. In: Revista de Direito do Estado, n. 4, Rio de Janeiro: FGV Editora, 2006.

TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 2. ed. Ver., atual. E ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012.

[1] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revistas do Tribunais, 2017, p. 136.

[2] TRF-4 - AG: 50016898320164040000 5001689-83.2016.404.0000, Relator: Luís Alberto D'azevedo Aurvalle, Data de Julgamento: 21/01/2016, Quarta Turma, Data de Publicação: D.E. 28/01/2016.

[3] MASSON, Cleber; MARÇAL, Vinicius. Crime Organizado. São Paulo: Método, 2015. p. 152-155.

[4] CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 3. ed. Salvador:  JusPodivm, 2016, p. 972.

[5] TJPR - 5ª Câmara Cível - AI - 1589460-7 - Região Metropolitana de Londrina - Foro Central de Londrina -  Rel.: Desembargador Nilson Mizuta - Unânime -  J. 28.03.2017.

[6] TJPR - 5ª Câmara Cível - AI - 1589460-7 - Região Metropolitana de Londrina - Foro Central de Londrina -  Rel.: Desembargador Nilson Mizuta - Unânime -  J. 28.03.2017.

[7] STF - EMENTA: CONSTITUCIONAL E PROCESSO CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. UTILIZAÇÃO DE COLABORAÇÃO PREMIADA. ANÁLISE DA POSSIBILIDADE E VALIDADE EM ÂMBITO CIVIL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. 1. Revela especial relevância, na forma do art. 102, § 3º, da Constituição, a questão acerca da utilização da colaboração premiada no âmbito civil, em ação civil pública por ato de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público em face do princípio da legalidade (CF, art. 5º, II), da imprescritibilidade do ressarcimento ao erário (CF, art. 37, §§ 4º e 5º) e da legitimidade concorrente para a propositura da ação (CF, art. 129, §1º). 2. Repercussão geral da matéria reconhecida, nos termos do art. 1.035 do CPC. (ARE 1175650 RG, Relator(a): Min. Alexandre De Moraes, julgado em 25/04/2019, Processo Eletrônico DJe-093 DIVULG 06-05-2019 PUBLIC 07-05-2019).

[8] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.

[9] SILVA, Virgílio Afonso. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. In: Revista de Direito do Estado, n. 4, Rio de Janeiro: FGV Editora, 2006, p. 44.

[10] SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 23.

[11] MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 182.

[12] MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 431.

[13] STF - Inquérito 2424 QO-QO, Relator:  Min. Cezar Peluso, Tribunal Pleno, julgado em 20/06/2007, DJe-087 Divulg 23-08-2007 Public 24-08-2007 DJ 24-08-2007.

[14] STF - ARE 825878 AgR, Relator:  Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 30/06/2015, Processo Eletrônico DJe-158 Divulg 12-08-2015 Public 13-08-2015.

[15] STJ – Resp. 1163499/MT, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 21/09/2010, DJe 08/10/2010.

[16] STJ – Resp. 1190244/RJ, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 05/05/2011, DJe 12/05/2011.

[17] SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Colaboração (delação) premiada. Salvador: JusPodivm. 2016. 166.

 

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