Confira a análise no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=5IA_9lXmEg4
Alexandre Senra é Mestre em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Obteve o título em 2016, sendo orientado pelo Prof. Rodrigo Reis Mazzei. Do que verifiquei em seu histórico no currículo Lattes[1], A. Senra é um daqueles juristas que comprovam uma teoria que desenvolvi ao longo do tempo: às vezes, vale a pena esperar alguns anos antes de ingressar em programas de pós-graduação stricto sensu[2]. Senra colou grau em direito no ano de 2004: só em 2014 ingressou no Mestrado em Direito Processual Civil da UFES. São dez anos de amadurecimento. A leitura da obra é uma demonstração cabal de que A. Senra se tornou mestre no sentido ontológico da palavra: não porta apenas um papel que lhe certifica o título. Foi além disso: escreveu uma dissertação de fôlego. Ela foi publicada pela Editora JusPodivm (de Salvador), e é o livro que agora resenhamos.
Estrutura da obra: Senra dividiu seu estudo em duas partes. A primeira é curta, mas importante: nela, expõe em três capítulos suas premissas analíticas[3]. A rigor, o primeiro capítulo desta primeira parte me pareceu mais importante: o nosso autor segue a teoria do fato jurídico proposta por Marcos Bernardes de Mello (que, como se sabe, é um adepto de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda).
Abro parêntese para explicar, ainda que brevemente, a teoria do fato jurídico de Pontes de Miranda e a sua repercussão no direito processual. Depois disso, comento a 2.ª parte do estudo de Senra, todo dedicado ao fenômeno deôntico da coisa julgada. Talvez haja alguma divergência entre nossas leituras, mas essa instrução é necessária.
A teoria do fato jurídico propõe uma visão analítica daquilo que Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda chamava de “mundo jurídico”:
Os fatos do mundo ou interessam ao direito, ou não interessam. Se interessam, entram no subconjunto do mundo a que se chama mundo jurídico e se tornam fatos jurídicos, pela incidência de regras jurídicas, que assim o assinalam. Alguns entram duas ou mais vezes, de modo que a um fato do mundo correspondem dois ou mais fatos jurídicos. A razão disso está em que o fato do mundo continua lá, com a sua determinação no espaço e no tempo [...]. Para que os fatos sejam jurídicos, é preciso que regras jurídicas ― isto é, normas abstratas ― incidam sobre ele, desçam e encontrem os fatos, colorindo-os, fazendo-os “jurídicos”[4].
A categoria epistêmica do jurista é, no mais das vezes, a dos fatos jurídicos. Sem que se perceba, o estudo dos ramos do direito é todo engendrado por um conjunto de institutos ou instituições que se entrelaçam harmonicamente segundo fatos jurídicos. Por alguma razão, a vida acadêmica inicial sinalize que esse assunto seria exclusivo dos civilistas. Segundo Marcos Bernardes de Mello, isso se deve “a circunstância de que aquilo que conhecemos como Teoria Geral do Direito” ter nascido “impregnado dos conceitos civilísticos, isso como consequência de ter sido elaborada pelos privatistas alemães, especialmente os Pandectistas, numa época (final do século XVIII e século XIX) em que conceitos do chamado direito público ainda eram incipientes”[5].
Um comentário: isso não quer dizer que o direito tenha de ser aprisionado apenas por uma pauta metodológica normativa. Há algum tempo venho defendendo, e. g., a independência epistêmica de matérias que chamei de processologia (= estudo causal-explicativo do processo; como a criminologia dos penalistas) e de política legislativa processual (= estudo axiológico-político do processo, como a política criminal no direito penal)[6].
No entanto, como assevera Marcos Bernardes de Mello, “nada acontece no mundo jurídico senão como produto de um fato jurídico, seja em que ramo da Ciência Jurídica for”[7]. Um penalista jamais poderá negar a facticidade jurídica de um delito. A categoria do “suporte fático” em muito se assemelha (senão se identifica) com a do “tipo penal”[8]. Da mesma maneira, um administrativista jamais poderá negar a facticidade jurídica de um ato administrativo.
Neste sentido, diz Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda: “há fatos que não interessam ao mundo jurídico, isto é, são estranhos ao direito. A nuvem que está a passar, a estrêla [sic] cadente, o eclipse do sol ou da lua, o que ocorre no fundo dos mares, ou na estratosfera, mesmo fatos que são de grande importância para o nosso corpo e para a vida dos animais, a cachoeira que está a murmurar há milênios, tudo isso é fáctico e não é jurídico. Se algum dêsses [sic] fatos entra no mundo jurídico, é porque o direito se interessou por êle [sic]. A técnica que tem o direito, mero processo social de adaptação, para chamar a si o fato que antes não lhe importava, é a regra jurídica”[9].
Com a ciência processual não poderia ser diferente. É preciso compreender, porém, as balizas elementares da teoria do fato jurídico, para lançá-las à compreensão deontológica do processo (ou, mais precisamente, da coisa julgada — premissa seguida por Senra, com a qual concordamos em boa medida)[10].
O que forma a norma jurídica? Basicamente, os adeptos da analítica inerente à teoria do fato jurídico majoram a importância dos seguintes conceitos: a) o suporte fático; e b) o preceito. No “mundo dos fatos”, a norma ganha o “colorido” de fato jurídico quando há o preenchimento dos pressupostos de sua incidência (= incidência jurídica).
Uma vez juridicizado, o fato passa a ser compreendido — na maioria das vezes — segundo três planos: existência, validade e eficácia.
Em suma:
A norma jurídica, para que seja “verificada ontologicamente”, tem de ver a uma configuração causal. Esse é o papel do suporte fático: em abstrato, ele regula “o que se denomina de suporte fático concreto”[11]; i. e., a verificação, no mundo dos fatos, de uma conduta ou evento, com aptidão para ingresso no mundo jurídico. “Quando, no mundo, tornam-se realidades (= se concretizam) os fatos descritos nos suportes fácticos hipotéticos, as normas incidem, gerando fatos jurídicos”[12].
Exemplo simples, para compreensão da matéria: A ocupa o imóvel de B, sendo B menor incapaz. O fato de B ser menor e absolutamente incapaz (CC, art. 3.º) é o suporte fático da não fluência do prazo prescricional de usucapião contra si: “não corre a prescrição”, diz o art. 198 do Código Civil, “contra os incapazes de que trata o art. 3.º” (inciso I). O fato de B ser menor é, em si, fato bruto; este fato bruto interessa ao direito e ingressa ao “mundo jurídico” como um fato jurídico bastante específico: não se admite correr prazo prescricional contra B (arts. 198, inciso I, c/c o art. 3.º, ambos do Código Civil). Veja-se o esquema abaixo:
O exemplo é, realmente, muito simplório. Em verdade, pode trazer certo descrédito para nossa matéria, mas a teoria do fato jurídico só é bem absorvida por seus interessados quando demonstrada desde suas facetas mais simples até suas construções mais complexas.
Como se nota, o direito procede uma “escolha dos fatos”, como diz Pontes de Miranda. Veja-se como o alagoano elucida a questão:
O direito, na escolha dos fatos, que hão de ser regrados (= sobre os quais incide a regra), deixa de lado, fora do jurídico, muitos fatos, que alguns observadores e estudiosos parecem dignos de regulação; mas esse julgamento dos técnicos do direito, ou dos não-técnicos, por mais procedente que seja, só se pode passar no plano político, moral ou científico, e nenhuma influência pode ter na dogmática jurídica[13].
Esses são os caracteres essenciais da ideia de suporte fático, consistente na ocorrência dos fatos previstos pela norma[14]. Se o suporte fático é formado de elementos x¹, x² e x³ — e é do melhor alvitre atentar-se ao fato de que, na maioria das vezes, “o suporte fático não é algo uno”, sendo “formado por diversos acontecimentos”[15] —, o fato não existe juridicamente. Uma compra e venda, e. g., exige partes, objeto, forma e vontade. Se inexiste vontade, não há compra e venda. Há um vazio jurídico, um fato bruto qualquer, irrelevante para o direito. Este primeiro pronto é fundamental para se compreender, bem, o plano da existência dos fatos jurídicos (estudaremos os planos logo adiante).
Preceito: segundo Marcos Bernardes de Mello, por preceito (ou “disposição”) se deve entender “a parte da norma jurídica em que são prescritos os efeitos atribuídos aos fatos jurídicos”, sendo “a disposição normativa sobre a eficácia jurídica”[16]. Se o suporte fático é a “impregnação”, digamos assim, entre a regra jurídica abstrata e o fato natural concreto; o preceito dispõe sobre os efeitos jurídicos deste suporte fático-jurídico.
Assim, se Fulano subtrai dolosamente para si coisa alheia móvel, pratica o fato jurídico furto (CP, art. 155), ao qual se comina pena de reclusão, de 1 a 4 anos, e multa. A sanção penal deste exemplo é, justamente, o preceito, que imputa a eficácia jurídica respectiva àquele delito.
A fenomenologia da juridicização, como diz Marcos Bernardes de Mello, é bem expressada na forma seguinte[17]:
Pois bem: é com essa visão – aqui resumida segundo nossa própria leitura — que Alexandre Senra parte para o estudo da coisa julgada.
A segunda parte da obra: após explicar as premissas, Alexandre Senra se dedica, efetivamente, ao estudo da coisa julgada. Sua obra traz, para tanto, três capítulos: o quarto (“Os conceitos de coisa julgada”); o quinto (“O momento de formação da coisa julgada [= o trânsito em julgado]”); e o sexto (“Suportes fáticos da coisa julgada [= os tipos de fatos jurídicos que produzem o efeito jurídico coisa julgada]”). Há um sétimo capítulo para conclusões; um oitavo para indicação de referências bibliográficas.
Conceitos de coisa julgada: citando lições escritas por José Carlos Barbosa Moreira ainda em 1970, Alexandre Senra alerta que ainda não há um conceito único e preciso de “coisa julgada”[18]. De qualquer maneira, “todos os conceitos doutrinários de coisa julgada relacionam-se de algum modo à ideia de estabilidade do que foi decidido”[19]. Numa divisão didática, podemos falar em duas grandes teorias: as materiais e as processuais[20]:
Entre nós, J. C. Barbosa Moreira defendera que a coisa julgada seria “uma situação jurídica caracterizada pela estabilidade do conteúdo da sentença”; José Rogério Cruz e Tucci notou, diz Senra, uma “enorme variação de perspectivas adotadas para o exame da coisa julgada”[21]. Araken de Assis teria seguido a concepção alemã (de Hellwig); Cândido Rangel Dinamarco a concepção italiana (de Liebman) e Alexandre Freitas Câmara a proposta de seu conterrâneo, Barbosa Moreira[22].
Ao proceder com essa sumarização geral da matéria para o leitor, Senra propõe o seguinte:
[...] aqui notamos perspectivas diversas e posicionar-nos entre essas concepções da coisa julgada, mesmo depois de estabelecida a diretriz que nos guia, demanda algumas reflexões, sem descurar do que nelas há de comum: a) nenhuma nega haja íntima relação entre coisa julgada e imutabilidade/indiscutibilidade; b) todas entendem que a coisa julgada surge com o trânsito em julgado[23].
Os três posicionamentos supra referidos (Hellwig, Liebman e Barbosa Moreira), diz Senra, têm divergências em dois pontos: 1.º) o que seria a coisa julgada; e 2.º) quais os limites sobre os quais se estendem os caracteres da imutabilidade e da indiscutibilidade.
O que seria a coisa julgada? As concepções trabalhadas por Senra variam na seguinte tríade:
Para Liebman, a coisa julgada seria uma qualidade na medida em que “a coisa julgada não seria um efeito da sentença, e sim uma qualidade (= atributo; = predicado; = característica) que se agregaria a ela a seus efeitos”, e isso, para Senra, se justifica pelo “quadro doutrinário reinante até então (década de 30): gozava de ampla aceitação o entendimento de que a coisa julgada seria um efeito as sentença”; Hellwig “entendera dessa forma”, como noticiou o próprio Liebman, mas entre eles há uma divergência, como explica o nosso autor: “a divergência – verdadeira oposição –, neste ponto, entre as concepções alemã e italiana da coisa julgada consiste, então, em entende-la como um efeito da própria sentença (Hellwig) ou não (Liebman). Situar o dissenso nos termos efeito e qualidade é se perder num desacordo meramente verbal”[24].
Finalmente, Barbosa Moreira entendia “a coisa julgada” como “um efeito jurídico”; diferentemente, a concepção alemã afirma que “a coisa julgada é um efeito da sentença”, ao passo que a italiana aduz que “a coisa julgada não é um efeito da sentença”[25].
Sobre o que se estenderia a imutabilidade/indiscutibilidade? Didaticamente, e com o apoio em nosso autor agora resenhado:
1) para Hellwig, torna-se imutável/indiscutível apenas o conteúdo declaratório da sentença;
2) para Liebman, torna-se imutável/indiscutível qualquer conteúdo da sentença e seus efeitos; e
3) para Barbosa Moreira, torna-se imutável/indiscutível apenas o conteúdo da sentença[26].
Aqui, exige-se muita atenção do leitor. As diferenças são mais tênues: em Hellwig, a imutabilidade recai sobre o “conteúdo declaratório” do decisum[27]; em Barbosa Moreira, apenas sobre o “conteúdo” da sentença. Qual é a diferença? O que há por trás desse sutil jogo de palavras?
Segundo Alexandre Senra, Barbosa Moreira visava:
a) superar a concepção alemã (de Hellwig) quando partia da premissa de que “a coisa julgada é instituto com uma finalidade essencialmente prática, consistente em conferir estabilidade à tutela jurisdicional, tornando, para isso, o resultado do processo imune a futuras contestações” — logo, se A logra procedência de pretensão anulatória de contrato que tem com B, não faz sentido que B mova nova ação para cobrar-lhe o cumprimento do contrato anulado simplesmente que não intenta discutir o plano de validade daquele negócio; e
b) superar a concepção italiana (de Liebman), porque a limitação da imutabilidade apenas aos efeitos não supera o fato de que “a experiência demonstra que ela não se estende aos efeitos (sempre jurídicos) da sentença” (exemplo do próprio Barbosa Moreira, citado por Senra: “[...] podem os donos de terrenos confinantes estabelecer convencionalmente, para as respectivas áreas, divisa diferente da que se fixada no processo da ação de demarcação. No tocante ao efeito executório, peculiar às sentenças condenatórias, a coisa é de ofuscante evidência: cumprida espontaneamente ou executada a sentença, cessa o efeito, que já nascera com o normal destino de extinguir-se”)[28].
A posição de Alexandre Senra: o nosso autor concorda com Barbosa Moreira, ao menos num específico recorte: “em termos de teorização” (pois não centrou análises, ainda, sobre o direito positivo vigente, o CPC/2015)[29]. Diz Senra:
[...] nos parece correto, neste momento, entendermos a coisa julgada, na linha do posicionamento de Barbosa Moreira, e à luz do direito positivo vigente, como uma situação jurídica (= efeito jurídico), surgida a partir do trânsito em julgado e caracterizada pela imutabilidade e indiscutibilidade do conteúdo da decisão judicial (definição científica)[30].
Posição do autor sobre a inserção da coisa julgada como parte de uma teoria processual ou material: a partir da 92.ª página, Senra avisa ao leitor que passará a expor as razões pelas quais sustenta “uma teoria material ou uma teoria processual da coisa julgada”. E já adiante: filia-se ao entendimento segundo o qual a coisa julgada está no grupo das teorias processuais, “o que não significa”, adverte, “que todas as normas jurídicas pertinentes à coisa julgada têm natureza processual ou somente natureza processual” — não é o caso[31], como salienta, n’outra passagem: “adotar-se uma teoria processual da coisa julgada, nos termos em que definimos essa categoria, não importa admitir que o instituto da coisa julgada seja disciplinado exclusivamente por normas de direito processual. Não é”[32].
Baseando-se em Jordi Nieva-Fenoli, Senra avisa — acertadamente — que é difícil categorizar as teorias processuais e materiais como heterogêneas entre si[33]. Um exemplo salutar disso está, p. ex., na inserção de Ulpiano como um teórico da teoria material por Senra e por Antonio do Passo Cabral (cf. tabela supra); ao passo de que o mesmíssimo Ulpiano é enquadrado como adepto da teoria processual por autores como Ramon Méndez e Juan Montero Aroca[34]. Não sem razão, Senra monstra passagem de Salvatore Satta: para ele, já não fazia sentido discutir se a coisa julgada tem natureza material ou processual[35].
Alguém poderia partir para uma crítica: se o próprio Senra reconhece as divergências a respeito do tema, por qual motivo chegou a aderir a uma posição específica (a posição processualista)? O autor, porém, dá aviso importante: “não faz sentido [dividir-se a questão nos troncos material e processual] enquanto não definidas as premissas do raciocínio”: se “um critério distintivo entre as teorias materiais e teorias processuais” for devidamente fixado, “será possível o controle de coerência da nossa escolha”[36].
E como Senra diferencia uma e outra teoria? Para o autor agora estudado, uma teoria sobre a coisa julgada será material “se sustentar que a coisa julgada liga-se diretamente à relação jurídica de direito material deduzida em juízo, definindo-a ou alterando-a”; ao passo que uma teoria da coisa julgada será processual “se sustentar que a coisa julgada liga-se diretamente ao direito processual, constituindo-se como um impedimento de revisão do quanto decidido, indiferentemente ao conteúdo da decisão”. Essa distinção permite, na visão de Senra, “que as classes teoria material e teoria processual da coisa julgada esgotam o gênero de possíveis teorias da coisa julgada”, de maneira que uma espécie necessariamente excluísse a outra[37].
O mito da “preclusão máxima”: há quem diga que a coisa julgada seria a “preclusão máxima do processo”, como Thereza Alvim[38]. Isso é bastante repetido por outros autores de calibre, mas A. Senra traz interessantes considerações contra este meta-linguajar. Há vários inconvenientes nisto: “em primeiro lugar, há um problema classificatório”, já que as classificações mais comumente mencionadas pela dogmática (temporal; consumativa; lógica; e, para alguns, punitiva) não seriam capazes de abranger o fenômeno (distinto) da coisa julgada[39]. “Em segundo lugar”, diz Senra, “pode haver um problema de coerência”, pois a visão da coisa julgada como uma “preclusão máxima processual” não se coaduna, e. g., com a tese de Liebman (para quem “a coisa julgada formal seria uma qualidade de toda sentença transitada em julgado”, de maneira que “não faz sentido incluir uma qualidade como espécie do gênero situação jurídica”), como também notara Ada Pellegrini Grinover[40].
Assim, A. Senra defende que “coisa julgada e preclusão” até são institutos que guardam pontos de contato, mas no direito brasileiro não lhe parece útil compreendê-los como instituições jurídicas que mereçam o mesmo tratamento[41]. Em resumo, “o CPC/15, similarmente ao que já fazia o CPC/73, extensa e pormenorizadamente dispõe sobre o regramento do que chama de ‘coisa julgada’, de modo que reconduzi-la à categoria das preclusões acaba trazendo mais problemas e dificuldades que soluções”[42].
Quando há formação de coisa julgada? Senra quer responder este questionamento no quinto capítulo da obra agora resenhada (“o momento de formação da coisa julgada [= o trânsito em julgado]”). Essa tarefa exige definir o que seria o trânsito em julgado. Para o autor, “trânsito em julgado é o momento processual a partir do qual o conteúdo de um pronunciamento decisório ou de ao menos um dos seus capítulos torna-se não mais sujeito a modificações no mesmo processo”[43].
Determinado trecho deste capítulo 5.º da obra de Senra me causou estranheza num primeiro momento. Conversei com o próprio Senra e com Roberto Pinheiro Campos Gouveia Filho sobre o assunto. Falo da seguinte passagem: “o trânsito em julgado não é um fato jurídico nem é um efeito jurídico”[44].
Roberto Pinheiro Campos Gouveia Filho salientou que acabou sendo convencido da tese de Senra. Inclusive, é o que escreveu em comentário ao art. 502 do Código de Processo Civil de 2015, em obra coletiva da Editora Lualri. Na ocasião, Gouveia Filho escreveu o seguinte: “coisa julgada e eficácia de coisa julgada são conceitos distintos”, já que a última “é um tipo de eficácia jurídica”, ao passo que “a coisa julgada propriamente” dita seria “um fato jurídico”. E segue o inteligente processualista pernambucano:
É preciso, portanto, analisar a coisa julgada como fato jurídico para poder falar na eficácia da coisa julgada. Em verdade, diversos fatos jurídicos dão ensejo à eficácia de coisa julgada. À medida do possível, analisarei a composição de cada um deles. É necessário compreender que todos são decisionais, ou seja, o que gera a coisa julgada é a decisão: não ela pura e simplesmente, mas sim a decisão ultimada, a vera sententia a que alude Pontes de Miranda, valendo-se de ideias de autores lusitanos clássicos. Ou seja, a decisão, nos diversos moldes estabelecidos, e o advento do trânsito em julgado. O trânsito em julgado funciona como um elemento a mais no fato jurídico decisional, projetando-lhe a imagem de coisa julgada, fazendo-o gerar a eficácia de coisa julgada. Ele é, portanto, elemento fundamental da coisa julgada. Por ora, analisarei o conceito de trânsito em julgado. Pode-se dizer ser ele um momento (como muito bem percebeu Alexandre Senra), porém não apenas no sentido cronológico. Tem viés espaço-temporal e, acima de tudo, opera logicamente, pois é pressuposto para a formação da coisa julgada. O trânsito em julgado, contudo, não se dá de modo uniforme. Se em geral ele ocorre por um ato-fato jurídico, referente ao transcurso in albis do prazo para o exercício do poder de recorrer, há hipóteses em que isso não acontece: i) nas decisões irrecorríveis (seja por óbice legal ou negocial), o próprio fato da decisão já é juridicizado como vera sententia. O trânsito em julgado, portanto, opera de modo automático, sendo declaratório o juízo sobre ele; ii) além disso, o trânsito em julgado pode ocorrer como eficácia anexa de alguns fatos processuais, como se dá na renúncia do poder de recorrer, na aceitação da decisão e na desistência do recurso; iii) além disso, ele pode advir de outro trânsito em julgado. É o que se tem quando, por motivos dos mais variados, a decisão de inadmissibilidade do recurso transita em julgado, algo que, por consequência, gera o trânsito em julgado da decisão recorrida[45].
Senra, por sua vez, confidenciou-me o seguinte:
“A meu ver, temos o mau hábito de achar que tudo que interessa ao direito são fatos jurídicos ou efeitos jurídicos, esquecendo que palavras não designam apenas fatos ou efeitos. “Sentença” não é um fato jurídico, porque antes de tudo “sentença” não é um fato; assim como “garrafa” não é um fato. Fato é, por exemplo: a garrafa cair no chão, a prolação da sentença, o trânsito em julgado da sentença.
Normalmente, palavras não indicam fatos; proposições indicam fatos. [...].
A premissa do meu livro, rigorosamente, não é a teoria ponteana do fato jurídico. E assim a teoria ponteana na visão de Marcos Bernardes de Mello. É, nesse sentido, uma metalinguagem”[46].
Ao menos por enquanto, não tomo uma posição a respeito disso. Quero compreender melhor as premissas de Senra (a obra é toda analítica: da primeira até a última página o autor registra pontos de partida e significações iniciais, na incessante busca de cotejar conceitos em seus contextos). É difícil, assim, atingir uma conclusão segura. O trânsito em julgado não é um fato jurídico autônomo? Perder o prazo de uma apelação não seria um fato jurídico stricto sensu? A coisa julgada (ou o trânsito em julgado) não existe com efeitos próprios? São as perguntas que fiz inicialmente e que, com o tempo, espero respondê-las segundo as premissas de Senra (não necessariamente para aderir ao seu pensamento, mas para bem compreender as suas propostas).
De qualquer maneira, Senra avança e traz considerações a respeito da natureza jurídica do juízo de admissibilidade recursal, colocando-se na esteira das propostas de Fredie Didier Jr., o qual sustenta:
Se o juízo de admissibilidade é um juízo sobre a validade; se a invalidação é uma decisão constitutiva; se os atos processuais defeituosos produzem efeitos até a sua invalidação, conclusões já expostas e fundamentadas, a solução não pode ser outra: o juízo de inadmissibilidade é constitutivo negativo e tem eficácia ex nunc, ressalvada expressa previsão legal que determine a eficácia ex tunc, que a princípio não se reputa conveniente, tendo em vista que os atos processuais, e o procedimento em particular, produzem efeitos até que seja decretada a sua invalidade (inadmissibilidade, no caso do procedimento)[47].
Ancorando-se nisto, Senra aponta que “o juízo de admissibilidade positivo apresenta [...] natureza meramente declaratória; enquanto que o juízo de inadmissibilidade tem natureza desconstitutiva”[48]. Se Senra convenceu Roberto Campos Gouveia Filho sobre o trânsito em julgado não ser fato jurídico (nem tipo eficacial), este campo não repercutiu sobre as ideias do pernambucano, autor de coletânea de textos em sua página pessoal no Facebook dialogando criticamente com as propostas de Fredie Didier Jr.[49].
Suportes fáticos da coisa julgada (capítulo n.º 6): no último capítulo do desenvolvimento, Senra faz uma interessante “varredura” do Código de Processo Civil. Aprecia vários institutos com atos decisórios que lograriam, na sua visão e na sua analítica, a coisa julgada. Não cabe, aqui, apresentar essa vasta apresentação do autor, mas ela é profunda ao ponto de considerar, p. ex.: i) a coisa julgada na jurisdição voluntária[50]; ii) a coisa julgada nos atos decisórios envolvendo autocomposição[51]; iii) a coisa julgada na ação monitória[52] etc.
Nossa opinião: como salientei na versão audiovisual, a obra é um monumento analítico. Da primeira até a última página, Senra se propõe a demonstrar ao seu leitor as suas premissas, conectando-as com o seu objeto de estudo e, também, com a primeira parte da obra. Não é obra didática, nem indicada para iniciantes. O leitor precisa de certa maturidade epistemológica para bem dialogar com o autor. Até o momento atual (escrevo em novembro de 2017), não vi, ainda, nenhuma outra obra tão verticalizada como esta de Senra: não após a vigência do Código de Processo Civil de 2015.
Alguns aspectos externos deixam a leitura um pouco cansativa: não entendo, p. ex., porquê a editora optou por alterar a fonte das notas de rodapé, nelas diminuindo exageradamente o tamanho dos caracteres e o espaçamento entre linhas. Além disso, parece-me possível tornar a obra mais didática (sem sacrificar seu tom analítico) retirando algumas digressões dogmáticas em institutos extravagantes (exemplo: apontar semelhanças e diferenças entre prescrição e decadência[53]), deixando “mais confortável” ou “mais direta” a gnoseologia do leitor com a obra, ou mais precisamente, do leitor com o objeto que efetivamente Senra se propôs a estudar: a coisa julgada.
Ouso dizer, em arremate, que a obra é de leitura obrigatória aos processualistas. Parabenizo Senra pelo excelente trabalho desenvolvido, provocando-o para uma 2.ª edição.
[1] Cf. http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K8703089D6.
[2] Eduardo José da Fonseca Costa é exemplo disso: logrou a graduação em direito em 1997; só em 2007 ingressou no programa de Mestrado em Direito da PUC/SP. E escreveu a bem afamada obra O “direito vivo” das liminares, livro que ainda será examinado nesta coluna.
[3] SENRA, Alexandre. A coisa julgada no Código de Processo Civil de 2015. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 25-50.
[4] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: parte geral – tomo 1. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, p. 6.
[5] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico – Plano da Existência. 20.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 17.
[6] Cf. SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. Miguel Reale e o direito processual. Revista Brasileira de Direito Processual, Belo Horizonte, ano 25, n. 97, p. 223-246, jan./mar. 2017;
[7] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico – Plano da Existência. 20.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 17-18.
[8] Veja-se, aliás, o que dissemos em obra examinada nesta coluna. V. SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. O novo sistema jurídico-penal, de Hans Welzel. Empório do Direito, disponível em: https://goo.gl/Efq3Gs. Acesso em 17 nov. 2017. Em sentido similar, Miguel Reale sustentou que “fato, em suma, figura, primeiro, como espécie de fato prevista na norma (Fattispecie, Tatbestand) e, depois, como efeito juridicamente qualificado, em virtude da correspondência do fato concreto ao fato-tipo genericamente modelado na regra de direito: desse modo, o fato está no início e no fim do processo normativo, como fato-tipo, previsto na regra, e como fato concreto, no momento de sua aplicação”. Além disso, “fato jurídico é todo e qualquer fato que, na vida social, venha a correspondeu ao modelo de comportamento ou de organização configurado por uma ou mais normas de direito” (REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 8.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1981, p. 198-199).
[9] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado das Ações – tomo 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970, p. 5.
[10] Exemplo notório dessa visão de Alexandre Senra consta do seguinte trecho da obra aqui analisada: “a menos que se deixe claro o objetivo de expender-se críticas de lege ferenda, não deve a doutrina (metalinguagem, científica, descritiva) rivalizar com o legislador (linguagem objeto, técnica, prescritiva). O esforço deve, em vez disso, voltar-se à construção a partir do texto legal, de sentido que imprimam coerência ao conjunto de enunciados normativos” (SENRA, Alexandre. A coisa julgada no Código de Processo Civil de 2015. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 140 – destaquei).
[11] GOUVEIA FILHO, Roberto Pinheiro Campos. Noções fundamentais da teoria geral do direito: dos fatos e das situações jurídicas. In: ______. A capacidade postulatória como uma situação jurídica processual simples. Dissertação de mestrado, Universidade Católica de Pernambuco, 2008, f. 22.
[12] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico – Plano da Existência. 20.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 140. Atente-se ainda ao fato de este tipo de estudo ter conotação puramente dogmática. Não se nega a possibilidade de imiscuir elementos filosóficos ou sociológicos para a problemática da concretização do suporte fático (assim, v. o próprio autor citado, na mesma página).
[13] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: parte geral – tomo 1. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, p. 21.
[14] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico – Plano da Existência. 20.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 45.
[15] GOUVEIA FILHO, Roberto Pinheiro Campos. Noções fundamentais da teoria geral do direito: dos fatos e das situações jurídicas. In: ______. A capacidade postulatória como uma situação jurídica processual simples. Dissertação de mestrado, Universidade Católica de Pernambuco, 2008, f. 25.
[16] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico – Plano da Existência. 20.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 111.
[17] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico – Plano da Existência. 20.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 116-117. O esquema também é exibido pelo autor agora resenhado (SENRA, Alexandre. A coisa julgada no Código de Processo Civil de 2015. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 45).
[18] SENRA, Alexandre. A coisa julgada no Código de Processo Civil de 2015. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 77.
[19] Idem, p. 78.
[20] Idem, p. 78.
[21] Idem, p. 80.
[22] Idem, p. 81.
[23] Idem, p. 82.
[24] Idem, p. 83-84.
[25] Idem, p. 84.
[26] Idem, p. 85.
[27] “Na visão de Hellwig, portanto, a coisa julgada material consiste na indiscutabilidade que recai sobre a declaração contida na sentença após o seu trânsito em julgado. Essa orientação teórica gerou [...] um sem número de seguidores. Entre eles, Wach, Chiovenda, Carnelutti, e, entre nós, Pontes de Miranda e Neves” (DARCIE, Jonathan Doering. Revisitando o debate sobre a eficácia declaratória da sentença e a coisa julgada. Cadernos de Pós-Graduação em Direito/UFRGS, v. VII, n. 1, 2012, p. 11). J. Doering Darcie lidou diretamente com a obra Wesen und subjektive Begrenzung der Rechtskraft, de K. Hellwig.
[28] SENRA, Alexandre. A coisa julgada no Código de Processo Civil de 2015. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 87-88
[29] Idem, p. 88. O autor repete a adesão ao entendimento de José Carlos Barbosa Moreira nas páginas 91, 96 e 145.
[30] Idem, p. 89.
[31] Idem, p. 92.
[32] Idem, p. 96.
[33] Idem, p. 92-93.
[34] Idem, p. 93-94.
[35] Idem, p. 94, nota de rodapé de n.º 20.
[36] Idem, p. 94 (destaquei).
[37] Idem, p. 95.
[38] Assim, e. g., ALVIM, Thereza. Notas sobre alguns aspectos controvertidos da ação rescisória. In: WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (orgs.). Doutrinas Essenciais – Processo Civil. Volume VII – Recursos e Ação Rescisória. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 1.171 (o texto original é de 1985 [RePro 39/7]).
[39] SENRA, Alexandre. A coisa julgada no Código de Processo Civil de 2015. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 135-136.
[40] Idem, p. 136.
[41] Idem, p. 137.
[42] Idem, p. 137 (destaquei).
[43] Idem, p. 168.
[44] Idem, p. 173.
[45] GOUVEIA FILHO, Roberto Pinheiro Campos. Comentário ao art. 502. In: ______; RIBEIRO, Sérgio Luiz de Almeida; CARDOSO PANTALEÃO, Izabel Cristina Pinheiro; GOUVEIA, Lucio Grassi de. Novo Código de Processo Civil comentado – Tomo II (arts. 318 ao 770). São Paulo: Lualri Editora, 2017, p. 283-284.
[46] Dizeres de Alexandre Senra em meu telegram no dia 20 de novembro de 2017.
[47] DIDIER JR., Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação: o juízo de admissibilidade do processo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 49.
[48] SENRA, Alexandre. A coisa julgada no Código de Processo Civil de 2015. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 208.
[49] Cf., por exemplo, GOUVEIA FILHO, Roberto Pinheiro Campos. Por uma (re)definição do conceito de recurso: pressupostos de validade e de eficácia do ato jurídico recursal – 1.ª parte: premissas. Disponível em: https://goo.gl/WGTpNA. Acesso em 21 nov. 2017.
[50] SENRA, Alexandre. A coisa julgada no Código de Processo Civil de 2015. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 257-260.
[51] Idem, p. 252-254.
[52] Idem, p. 260-266.
[53] Idem, p. 250-252.
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