A citação regular do acusado é, a nosso ver, pressuposto de validade do processo.
Não se trata, com o devido respeito aos que pensam diferentemente, de pressuposto de existência.
Conforme afirma José Roberto Bedaque, “convém, desde logo, fixar entendimento a respeito da natureza do vício causado pela falta de citação. Trata-se, indiscutivelmente, de ato essencial à regularidade do procedimento, pois viabiliza o contraditório. Mas, ainda que o réu não citado permaneça ausente, processo existiu. Há nulidade absoluta, que deve ser reconhecida de ofício. Apenas isso”[1].
A citação não pode ser considerada pressuposto de existência do processo, pois, a rigor, processo já existe antes dela, isso desde o oferecimento da ação penal.
A esse respeito, comprovando essa asserção, destaca-se que, ainda que seja rejeitada a inicial, nem por isso se poderá falar em inexistência de processo: vale lembrar que, em sendo interposto o recurso pela acusação, o imputado será intimado para oferecer as suas contrarrazões, havendo, por certo, todo um processo (às vezes, até bem moroso) para discutir a rejeição da exordial.
Portanto, do ponto de vista técnico, irretocável a afirmação de que o processo já se inicia com a dedução da ação, seja em seara civil ou penal.
Ensinam, no ponto, Ada Pellegrini Grinover, Antonio Carlos de Araújo Cintra e Cândido Rangel Dinamarco que “antes da citação do demandado há no processo uma relação processual linear, tendo como figurantes o demandante e o Estado. Proposta a ação através do ajuizamento da petição inicial (CPC, art. 263) ou da denúncia ou queixa-crime (CPP, art. 41), nasce já para o Estado-juiz um dever de natureza processual (dever de despachar); se a inicial é indeferida, tem o autor a faculdade (processual) de recorrer aos tribunais (CPC, art. 513; CPP, art. 581, inc. I). Pois tudo isso é processo e aí já estão algumas das posições jurídicas que caracterizam a relação jurídica processual”[2].
Aliás, esse parece ter sido o entendimento adotado pelo Código de Processo Penal, o qual dispõe, em seu artigo 363, que “o processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado”. Sendo assim, ao consignar que “terá completada a sua formação” com a citação, o que a lei está dizendo é que o processo já existe antes do ato citatório, aperfeiçoando-se, justamente, com ele.
Cabe ressaltar que a confusão que se faz entre o vício de citação com a hipótese de inexistência jurídica é, em parte, explicável, pois, o que a ausência ou a imperfeição da citação poderá acarretar é a inexistência da formação da coisa julgada, isso por falta de ciência do acusado quanto à sentença proferida.
Nesse caso, sem ciência da sentença, obviamente, não começa a correr o prazo para o recurso, sendo, por isso mesmo, obstada a formação da coisa julgada.
Caso, ainda assim, seja certificado o trânsito em julgado, não será uma hipótese de inexistência do processo (o processo, a rigor, já existe), mas sim de inexistência de formação da coisa julgada, por falta de ciência da decisão, o que é coisa totalmente diversa, em termos jurídicos.
A inexistência de formação da coisa julgada é mais comum de ocorrer no processo civil, em que o réu pode ser demandado à revelia.
No processo penal, mesmo que o feito prossiga com um vício de citação, ainda assim, no momento da prolação da sentença, deverão ser intimados o acusado e o seu advogado. Então, muito dificilmente, em âmbito penal, o imputado não será intimado da sentença, sendo que, certamente, uma vez estando ciente dela, poderá começará a correr o prazo para o recurso. Nessa última hipótese (de acusado não regularmente citado, mas, ainda assim, que foi devidamente intimado da sentença condenatória), se houver o transcurso do prazo recursal, haverá sim a formação de coisa julgada, embora contaminada pela invalidade do vício de citação. Nesse caso, ela poderia ser combatida por alegação de nulidade (pelo vício de citação), mas não de inexistência jurídica.
Portanto, faltando o ato citatório, ou – ainda que ele seja praticado, uma vez sendo imperfeito - faltará pressuposto de validade ao processo, não de existência jurídica.
A falta de citação e/ou a sua realização defeituosa são hipóteses que, em regra, darão ensejo à invalidade do processo, devendo o magistrado reconhecer a nulidade da citação, inclusive de ofício, ordenando a repetição do ato, com a consequente decretação da imprestabilidade de todos os demais atos subsequentes (ou seja, praticamente, quase todo o processo!)
Notas e Referências:
[1] BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 463. Vale fazer a ressalva, contudo, que o Autor, apesar de não concordar que a citação seja pressuposto de existência do processo, rechaça que seja um pressuposto de validade, já que entende que, no caso, o réu não citado é um terceiro à relação, não estando sujeito à imutabilidade da decisão. Para ele: “a tese da inexistência do processo, nesse caso, não satisfaz. A solução do problema não pode ser dada simplesmente com fundamento na premissa de que a citação é pressuposto de existência do processo. A questão é mais complexa, mesmo porque a própria classificação dos pressupostos processuais é controvertida. Se réu não citado permanece ausente é considerado terceiro – e, nessa condição, não está realmente sujeito à imutabilidade da sentença, tendo em vista os limites subjetivos da coisa julgada. Quanto a esta assertiva inexiste dúvida. Tanto é verdade que a questão pode ser suscitada em embargos à execução, ainda que vencido o prazo para a ação rescisória (CPC, art. 741, I)” (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 463)
[2] CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel & GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria geral do processo. 22.ª ed. São Paulo: RT, 2006, p. 305. Neste mesmo sentido, de que processo já existe antes mesmo da citação: VICENTE, Fabrizzio Matteucci. A actio nullitatis insanabilis. Dissertação (Mestrado) apresentada perante a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2006, p. 192.
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