A Cara Odisseia Judiciária Brasileira

07/08/2016

Por Fillipe Azevedo Rodrigues - 07/08/2016

A razão de ser de um Poder Judiciário não fica muito distante das ideias gerais de senso comum, tais como: “fazer cumprir as leis”, “garantir os direitos”, “resolver conflitos” e “dar-nos segurança” para convivermos socialmente.

Também é de fácil percepção que manter a garantia desses bens públicos à população exige uma estrutura grandiosa, infinidade de pessoal e muito dinheiro para custeá-los, afinal 200 milhões de indivíduos são capazes de incomodar muita gente.

A sensação geral, por outro lado, é de que muito se gasta para custear todo esse aparato e pouco retorno se tem. O preço é alto e o benefício diminuto.

Os principais motivos alardeados há anos são a lentidão em decidir e solucionar os conflitos, o custoso e pesado número de servidores auxiliares da Justiça e a constante mudança de paradigma, isto é, os juízes brasileiros “não se entendem” e decidem muitas vezes de modo diverso e por critérios mais variados possíveis. Este último motivo, em particular, desperta a sensação de instabilidade social e o descrédito às regras do jogo econômico-social, a exemplo do fenômeno da judicialização da saúde.

Os magistrados, em defesa de suas atuações, sustentam que o país vive uma cultura de litigância, o que abarrota as secretarias judiciárias de milhares de processos para cada juiz, bem como atribuem o problema à legislação processual e seu cardápio de recursos infindáveis, permitindo que decisões sejam revistas e modificadas várias vezes em uma mesma causa (estima-se em 20 as vezes possíveis).[1]

Mas o próprio sistema de justiça pode contribuir para essa litigância excessiva.

Quando o Ministério Público, órgão essencial à Justiça, cuida de mobilizar todo esse aparato judiciário para discutir “ventosidade intestinal”, “dorsos obscenos”, “furtos de uma fotocópia e R$0,15”, de fato, espanta saber que o Parquet encontrou respaldo suficiente para fazer dessas discussões inusitadas litígios que duram mais de 2 anos transitando nas estantes do Poder Judiciário.

A remuneração de juízes, promotores e seus servidores auxiliares consiste noutro motivo de polêmica. Em um verdadeiro universo paralelo, os valores dos subsídios são constantemente reajustados e, por mais honrosas que sejam tais carreiras, remunerações acima de 30 mil reais não soam bem diante dos diversos segmentos sociais, sobretudo quando os resultados do trabalho de tais profissionais estão longe de serem considerados satisfatórios.

Então, cabe promover uma síntese do cenário atual do sistema de justiça brasileiro e quanto ele custa:

(i) o Judiciário brasileiro drena 1,3% do PIB, 4 vezes a mais do que custa os sistemas de justiça alemão e português e 10 vezes mais do que custa os judiciários argentino e norte-americano, sendo considerado o mais caro do ocidente;

(ii) quase 90% do imenso orçamento do Judiciário brasileiro é destinado ao custeio de pessoal;

(iii) 8,2 é o número de juízes brasileiros por 100 mil habitantes, inferior à média geral de 11 magistrados, presente na Colômbia, Itália, Estados Unidos, Espanha e Argentina; e

(iv) são 205 servidores auxiliares por 100 mil habitantes no Brasil, número bem superior aos 105 argentinos, 67 alemães, 42 chilenos e 30 ingleses.

Cabe destaque particular ao Ministério Público, cuja remuneração de promotores e auxiliares costuma seguir uma certa paridade com a praticada para os integrantes do Poder Judiciário. O MP brasileiro custa 0,32% do PIB, 3 vezes acima do MP italiano, 5 vezes do equivalente português e 10 vezes a mais da realidade alemã e espanhola.

Outra curiosidade reside em quais orçamentos públicos são suportadas tais despesas grandiosas e como elas evoluem. O parâmetro da despesa com pessoal decorre do texto constitucional, cujos dispositivos fixam tetos remuneratórios para as carreiras de juiz e promotor, tomando como referência o subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).[2]  No entanto, aquilo que deveria ser um limite máximo transformou-se num gatilho remuneratório com efeito avalanche. A cada vez que se reajusta a remuneração dos Ministros do STF, é promovido, quase que de imediato, aumento em mesmo percentual de todos os membros da magistratura federal e do Ministério Público da União; são milhares de juízes federais e procuradores da república. Em paralelo, todos os Estados começam a receber as propostas de reajuste reflexo de seus juízes e promotores estaduais, independentemente da situação econômica particular de cada Estado e o tamanho do seu orçamento, por melhor ou pior que esteja o cenário das contas locais.

Um bom exemplo do que foi relatado ocorreu no Rio Grande do Norte. Estado com economia muito precária e dependente sobretudo de repasses federais, tem o Ministério Público mais caro da região nordeste, tanto com relação ao impacto que produz no orçamento estadual quanto no custo per capita populacional. O MPRN, em 2012, custava R$73 para cada cidadão potiguar, enquanto os órgãos paraibano, pernambucano, baiano e cearense custavam, respectivamente, R$44, R$37, R$26 e R$24, sem significar melhores resultados comparativos para a população. Isso porque o que devia ser um teto de remuneração é encarado mais como um piso, permitindo que um promotor paulista, atuante na capital São Paulo, tenha mesma remuneração do seu colega potiguar em Natal, por mais diferentes que sejam a realidade de trabalho e o custo de vida em cada cidade e Estado.

No mesmo sentido, o sistema de justiça em geral, contando com advocacias e defensorias públicas, ultrapassa bastante a média ocidental de impacto no PIB (1,8% frente a patamares em torno de 0,3% no restante dos países pesquisados). Isso aliado à indústria jurídica brasileira, com mais faculdades de Direito do que todas as demais faculdades do mundo somadas – sem contar a infinidade de “cursinhos” jurídicos –, encerram enredo perigoso de uma cultura de concursos e dependência profissional de vagas no serviço público, contrastando interesse público com interesses de – atuais ou pretensos –  servidores públicos.

Contudo, antes de atribuir a culpa por esse caro segmento estatal à cultura, cabe a nós a reflexão se a maior parcela da população apoia ou rechaça tal conjuntura de prestações jurisdicionais morosas e ineficientes, bem como se se alinha a posturas muitas vezes excessivamente corporativistas e desconectadas com a realidade econômica e social de um país que clama por melhor gestão pública e economicidade nos dispêndios dos recursos dos contribuintes.[3]

Retrata bem o que foi dito a repercussão negativa da manifestação caricata e de assombrosa sinceridade do Ex-Desembargador do Estado de São Paulo, José Renato Nalini, sobre a necessidade de promover “disfarce para aumentar um pouquinho” o subsídio dos magistrados por via de “auxílio-moradia”, uma vez que não daria para “comprar terno” e “ir à Miami toda hora”. Outros fatos igualmente caricatos só não têm a mesma repercussão negativa porque não ganharam a dimensão pública de um programa de TV, a exemplo do voto do Ministro Luiz Fux do STF sobre a imposição aos magistrados de realizarem um cadastro virtual para otimizar as penhoras de bens de devedores cobrados judicialmente. Para o Ministro, seria uma atividade muito “enfadonha” exigir de um juiz o preenchimento de extensos formulários para se cadastrar no sistema BACEN JUD, atividade indigna para um magistrado, que cairia na denominada, por ele, “armadilha da eficiência”. A dignidade de um juiz seria incompatível com o êxito da tutela executória a fim de garantir aos credores a satisfação legítima da dívida cobrada.

Preservar elevados subsídios a agentes públicos que evitam preencher formulários em benefício direto para a população não é sustentável para qualquer país. Rever o peso do Judiciário e dos demais órgãos que compõem o sistema de justiça brasileiro é reforma tão relevante quanto qualquer outra no espaço de debate nacional. A indústria jurídica de faculdades e cursinhos é apenas externalidade da prática pública insana de um Poder Judiciário agigantado nas despesas e que devolve pequenos ganhos sociais. Sobra a nós cobrarmos eficiência e termos a esperança que, assim como no caso relatado acima, ganhe o interesse público e percam os privilégios despropositados de agentes públicos.[4]

(Publicado originalmente no Portal Jusliberdade)


Notas e Referências:

[1] Entre decisões liminares e sentenças, cabem embargos declaratórios, agravos, apelação, recursos especiais e extraordinários, bem como, em quase todos eles, é possível recorrer do resultado dos próprios recursos.

[2] Confira o art. 37, XI, e o art. 93, V, ambos da CF.

[3] Confira “A demora do Judiciário e o Custo Brasil“.

[4] No MS 27.261-DF, o Ministro Luiz Fux foi voto vencido por maioria de 4 a 3, obtida em razão do voto de desempate do Ministro Cezar Peluso. Restaram obrigados os magistrados a automatizarem o processo de penhora por meio de um mero cadastro em um sistema eletrônico, o que garantiu o êxito de milhares de créditos cobrados judicialmente, antes frustrados pela morosa e burocratizada estrutura das execuções judiciais. Falo mais sobre o assunto no livro “Análise Econômica da Expansão do Direito Penal”, Belo Horizonte: Del Rey, 2014, p. 185.


Fillipe Azevedo RodriguesFillipe Azevedo Rodrigues é Advogado na QBB Advocacia, Conselheiro do Conselho Penitenciário do Estado do Rio Grande do Norte e Professor da Universidade Potiguar, Natal – RN. Mestre em Direito constitucional pela UFRN e Doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC), Portugal. Autor do Livro “Análise Econômica da Expansão do Direito Penal” pela Editora Del Rey, Belo Horizonte.


Imagem Ilustrativa do Post: Justiça // Foto de: Eurritima // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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