A Burocracia do Aedes Aegypti: serviços públicos em tempos de peste? – Por Leonel Pires Ohlweiler

11/02/2016

Enquanto milhares de pessoas desfilaram no último final de semana pelas passarelas da terra brasilis – oficiais ou não – embebidas pelos ritmos frenéticos de sambas, marchas e outros tons, Albert Camus entrou em cena.

Vivemos em Orã?

A cidade do romance A Peste fazia questão de ressaltar a importância dos aspectos banais da cidade e da vida, mergulhada na rotina e, se fosse pelas bandas de cá, todos envolvidos e engajados com “o maior espetáculo da terra”!

No entanto, as coisas mudaram quando o Dr. Rieux tropeçou no primeiro rato morto, mas a vida na cidade continuou sem sobressaltos, pois o desfile não pode parar e os carros alegóricos precisam cruzar a avenida.

Em Orã “foi mais ou menos nessa época que os nossos concidadãos começaram a inquietar-se com o caso, pois, a partir do dia 18, das fábricas e dos depósitos jorraram centenas de cadáveres de ratos.”[1]

A passagem do livro demonstra as dificuldades da sociedade e da Administração Pública para lidar com o inesperado – às vezes nem tanto - e capaz de alterar a ordem das coisas, diga-se de passagem, não é nenhuma ordem natural, mas construída. De qualquer modo, a estrutura do senso comum possui mecanismos de autopreservação, cujos acontecimentos capazes de gerar perturbação, a princípio, são solenemente ignorados, ao menos até os inevitáveis sinais de ameaça.

Conforme noticiado na imprensa e no próprio www.portalsaude.saude.gov.br, o vírus zika foi detectado pela primeira vez no ano de 1947, transmitido pela picada do mosquito Aedes aegypti. Como os primeiros casos foram leves, as autoridades perceberam a gravidade somente com a ocorrência de surto na ilha Yap, na Micronésia, Pacífico, em 2007. No Brasil os problemas começaram em abril de 2015, mas foi como tropeçar no primeiro rato, não houve grande preocupação. No entanto, manchetes estampam notícias sobre a verdadeira epidemia que se espalha por mais de 20(vinte) países. A Organização Mundial da Saúde (OMS) já reconheceu, agora, constituir-se ameaça planetária.

Tal aspecto, mais uma vez, já há muito estava na obra de “ficção” de Camus, retrato fiel do mundo da vida: “Até então as pessoas tinham apenas se queixado de um episódio que provocava mal-estar. Compreendia-se agora que esse fenômeno, cuja amplitude não se podia avaliar e cuja origem era desconhecida, tinha qualquer coisa de ameaçador.[2]

Aqui reside uma das tantas questões relevantes examinadas na alegoria de Orã: os problemas do modo de ser liberal-individualista, com a preocupação constante com os atos cotidianos que ocupam a vida, cuja interrupção só é permitida quando presente alguma “coisa de ameaçadora”! A obra de Albert Camus, inclusive, possui a inegável dimensão política, pois a cidade assolada pela epidemia lembra a ocupação nazista na França durante a Segunda Guerra Mundial. Não se pode reduzir o texto à literalidade do problema de saúde pública, pois retrata, em última análise, o modo como a sociedade e o Estado lidam com determinados dilemas sociais.

Inclusive o avanço da peste possui relação direta no modo como lidamos com o avanço da corrupção neste país, conforme a coluna da semana anterior.

A Administração Pública é muito bem retratada no livro A Peste, pois a organização burocrática demorou a reconhecer que a morte dos ratos em Orã era algo realmente grave e perigoso para os cidadãos. Mas, preferia ficar em silencio “para não inquietar a opinião pública.”

O estado de letargia não perpassa tão-somente os escaninhos do Poder Público, mas da sociedade como um todo e aqui nas zonas da tropicália, alguns mais preocupados em cumprir com o tempo de desfile na Marquês de Sapucaí. No texto de Camus sabemos o que ocorreu. Após nominarem-se os eventos de “epidemia”, “peste”, os portões da cidade foram fechados. E “a partir desse momento, pode-se dizer que a peste se tornou um problema de todos nós. Até então, apesar da surpresa e da inquietação trazidas por esses acontecimentos singulares, cada um dos nossos concidadãos seguira com suas ocupações, conforme pudera, no seu lugar habitual.[3]” Somente assim a comunidade, de fato, percebeu que “todos estavam no mesmo barco”. A vida cotidiana é engraçada. É preciso alguma espécie de “Peste” chegar para, a partir de então, impor alguma reflexão sobre o que os cidadãos estão fazendo, jogando lixo nas ruas, terrenos abandonados, locais com água parada e a maior tranquilidade do mundo assistindo o carnaval pela televisão.

Cuidado! Nós ainda permanecemos com os portões abertos, muito embora com alertas sobre os riscos nas Olimpíadas do Rio de Janeiro deste ano. A questão preocupa em virtude do afirmado pela OMS de que o vírus deve atingir quase todo o continente americano, também já detectado nos Estados Unidos, Havaí, Reino Unido, Portugal, Espanha e Israel (Folha de São Paulo, 26/01/2016).

As dificuldades da conscientização são tantas no combate ao mosquito que no dia 29 de janeiro de 2016 foi editada a Medida Provisória nº 712, dispondo sobre a adoção de medidas de vigilância em saúde quando verificada situação de iminente perigo à saúde pela presença do mosquito transmissor do Vírus da Dengue, do Vírus Chikungunya e do Zika Vírus. O artigo 1º, §1º, III, autoriza a autoridade máxima do Sistema Único de Saúde o ingresso forçado em imóveis públicos e particulares, no caso de situação de abandono ou de ausência de pessoa que possa permitir o acesso de agente público, regularmente designado e identificado, quando se mostre essencial para a contenção das doenças.

O retrato da situação, portanto, é similar ao relatado no livro A Peste. Mesmo com os portões fechados, relata o autor, os cidadãos tinham grandes dificuldades para compreender o que ocorria. A Medida Provisória editada demonstra o completo descaso com os interesses da comunidade ou a errônea percepção de que os casos de Zika Vírus são acidentais! O fato é, como os personagens da obra, ninguém aceitava verdadeiramente a epidemia: “a maior parte era sobretudo sensível ao que perturbava os seus hábitos. Impacientavam-se, irritavam-se e esses não são sentimentos que se possa contrapor à peste.[4]

O texto referido, é claro, contém pontos para dizer, no mínimo interessantes, sobre a competência da Administração Pública. Ora, os bens públicos estão submetidos aos deveres de cuidado e zelo da União, dos Estados e Municípios. Soa um tanto quanto estranho editar atos normativos para autorizar a realização de visitas a imóveis públicos, bem como o ingresso forçado. Como indica Floriano de Azevedo Marques Neto o patrimônio público “corresponderia ao conjunto de bens materiais e imateriais, inclusive direitos e receitas, de propriedade das pessoas de direito público.”[5] O dever de fiscalização é atividade inerente à atividade de gestão de imóveis públicos, cabendo aos órgãos públicos competentes, nos termos do artigo 23, inciso I, da Constituição Federal.

Deve-se destacar que o poder de polícia[6] ou atividade ordenadora existe há muito no Direito Administrativo brasileiro, constando no artigo 78 do Código Tributário Nacional com atuação na área da saúde pública.

Logo, não é crível o discurso de a MP ter criado as condições para, a partir de agora, legitimar ações preventivas de combate ao mosquito aedes aegypti.  Se a necessária profilaxia não foi adotada antes é consequência da postura passiva da burocracia referida por Alberto Camus em reconhecer de fato o “estado de peste”!

Sobre o tema, vale mais uma vez a lembrança de Pietro Virga com relação ao exercício do poder de polícia na área de saúde pública, cuja competência administrativa será exercida considerando a contagiosidade, capacidade de transmissão e de difusão da doença, sendo que “l’autorità sanitária può adottare le misure necessarie al fine di evitare la diffusione dele malattie infettive con prescrizioni mediche(...) e disinfezioni dele abitazioni etc.”[7]

A citada medida provisória, portanto, não pode servir para justificar o marco temporal a partir do qual as responsabilidades serão exigidas.

Não apenas o poder público, mas cada cidadão é responsável e deve compreender, como alude Camus, “estamos todos no mesmo barco”, inclusive os cidadãos neste momento mais preocupados com a apuração das notas das escolas de samba.

OBs. A coluna foi escrita antes da divulgação do resultado oficial do Desfile das Escolas de Samba 2016!


Notas e Referências:

[1] A Peste. Rio de Janeiro: Edições BestBolso, 2010, p. 19.

[2] A Peste, p. 21.

[3] A Peste, p. 67.

[4] A Peste, p. 77.

[5] Bens Públicos. Função Social e Exploração Econômica. O Regime Jurídico das Utilidades Públicas. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009, p. 54.

[6] Conforme Pietro Virga: “polizia amministrativa é caratterizzata da una funzione preventiva, essendo intensa ad impedire che le azioni e i comportamenti dei privati non violino le limitazioni poste dalle leggi o dagli atti amministrativi a tutela degli interessi dela colletivitá.”(Diritto Amministrativo, Vol. 4, Milano: Giuffrè, 1996, p. 321).

[7] Diritto Amministrativo, p. 357. No Brasil também há o marco regulatório do Direito Sanitário, com legislações própria e diversas publicações sobre o tema, como CARVALHO, Cristiano. Direito Sanitário Brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2004, ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Direito do Saneamento. Campinas/SP: Millennium, 2007, PEREIRA, Cláudia Fernanda de Oliveira. Direito Sanitário. A Relevância do Controle nas Ações e Serviços de Saúde. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004 e AITH, Fernando. Curso de Direito Sanitário. São Paulo: Quartier Latin, 2007.

CAMUS, Albert. A Peste. Rio de Janeiro: Edições BestBolso, 2010.

MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Bens Públicos. Função Social e Exploração Econômica. O Regime Jurídico das Utilidades Públicas. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009.

VIRGA, Pietro. Diritto Amministrativo, Vol. 4, Milano: Giuffrè, 1996.

CARVALHO, Cristiano. Direito Sanitário Brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2004. ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Direito do Saneamento. Campinas/SP: Millennium, 2007.

PEREIRA, Cláudia Fernanda de Oliveira. Direito Sanitário. A Relevância do Controle nas Ações e Serviços de Saúde. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004.

AITH, Fernando. Curso de Direito Sanitário. São Paulo: Quartier Latin, 2007.


 

Imagem Ilustrativa do Post: Aedes_aegypti_bloodfeeding_CDC_Gathany // Foto de: Lennart Tange // Sem alterações

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