O Brasil, já há muito tempo, vive uma crise de efetividade do Poder Judiciário. Estamos numa época de judicializações travestidas de ativismos judiciais, que buscam, ao largo do texto normativo, dar efetividade às crenças da sociedade, numa vulgata do antigo realismo jurídico, onde a moral política da coletividade está sendo substituída pelo senso comum teórico dos juízes, que se valem, a todo o tempo, de subjetivismos e discricionariedades no exercício da atividade judicante.
A judicialização, por óbvio, é contingencial num país de modernidade tardia como o Brasil, mas não pode ser confundida com ativismos judiciais, bons ou maus (até porque isso retoma a ideia de subjetivismo), que a despeito de se buscar dar uma maior efetividade aos direitos dos cidadãos, notadamente em se tratando de direitos fundamentais, se mostra como uma carta branca para decisionismos e arbitrariedades, o que vem sendo lugar comum nas decisões de controle de constitucionalidade, mas não apenas nelas.
Importações de teorias que aqui vem sendo mal utilizadas ou compreendidas, a descoberta dos princípios como normas jurídicas – embora não haja um consenso acerca da sua natureza jurídica -, ativismos, bem ou mal intencionados, colaboram para o agravamento da crise de efetividade do Poder Judiciário e podem ser equacionados com uma análise não apenas quantitativa, mas sim, e sobretudo, qualitativa das decisões judiciais e dos argumentos utilizados pelos juízes em suas fundamentações, à luz da garantia fundamental à motivação das decisões judiciais.
Neste aspecto, uma das soluções encontradas seria o estreitamento entre os Sistemas do Civil Law e do Common Law, especialmente no Judicial Review, importando para o Brasil a doutrina do staredecisis, ou seja, da força obrigatória dos precedentes judiciais, que por aqui desembarcou com a edição da Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, que ao inserir o art. 103-A na Constituição Federal, instituiu no direito brasileiro as denominadas Súmulas Vinculantes[1], e desencadeou uma série de mudanças pontuais no Código de Processo Civil de 1973, culminando em uma viravolta da cultura jurídica brasileira, que passou a lidar de forma mais estreita com os precedentes judiciais obrigatórios.
Pouco ou quase nada as súmulas vinculantes tem a ver com os precedentes judiciais da doutrina do staredecisis. Aquelas buscam uma objetivação do Direito, com enunciados curtos e respostas antes das perguntas; estas, por sua vez, buscam dar integridade e coerência ao Direito, se valendo da tradição da comunidade política na da solução do caso concreto, sempre, lógico, em atenção à garantia fundamental à motivação da decisão judicial. Não se pode encarar a Súmula Vinculante como um mal em si, mesmo porque ela garante a necessária integridade do direito, desde que se tenha em mente que ela é texto e assim deve ser analisada.
A utilização da doutrina dos precedentes judiciais obrigatórios, no modo como se defende a sua utilização no Brasil, é, a um só tempo, cultural e legal. No Brasil, que adota o Sistema do Civil Law, pululam leis que impõem a utilização de precedentes judiciais de forma obrigatória, o que teve seu apogeu coma edição do Novo Código de Processo Civil, o que demanda certo esforço da comunidade jurídica, em especial na modificação da própria cultura jurídica, bem assim do estado d’arte do ensino jurídico nas faculdades e universidades.
As faculdades no Brasil, a despeito de hercúleos esforços para a necessária mudança cultural que se impõe, não apenas para o manejo da teoria dos precedentes judiciais obrigatórios, mas, sobretudo, para uma maior efetividade da garantia fundamental à motivação das decisões judiciais – o que demanda uma formação mais circunspecta ao estudo do caso concreto -, ainda estão atreladas à distinção entre questão de fato e questão de direito, o que, decerto, se reflete na práxis jurídica, onde os operadores do direitoutilizam-se de teses jurídicas em suas manifestações, mas muitas vezes, pouco se atêm ao caso a ser analisado, descuidando da faticidade, da introdução do mundo prático no direito, sem a qual não há o que se falar em norma jurídica, seja ela geral ou individual[2].
Cada caso é um caso, a introdução do mundo prático no direito não deixa dúvidas a esse respeito, mas a integridade e coerência do direito impõem que se tratem igualmente casos similares (treatlike cases alike), alcançando, deste modo, igualdade e segurança jurídica, garantidores do Estado Democrático de Direito. A utilização dos precedentes judiciais obrigatórios é benéfica na busca da igualdade, segurança e previsibilidades jurídicas, desde que compreendidos como tais (precedentes judiciais), que em nada se assemelham às ementas dos acórdãos ou aos estreitos limites das súmulas vinculantes[3].
Para a utilização da doutrina do staredecisis, faz-se necessária a reconstrução da história do precedente judicial, a análise das vicissitudes dos casos (atual e paradigma), o que possibilitará a análise das distinções (distinguishing) entre os casos, a eventual superação do precedente (overruling), a sinalização dessa superação (anticipatoryoverruling), bem como a identificação do princípio a ser utilizado no caso similar (ratiodecidendi), o que remete o aplicador para a reconstrução dos fatos (treatlike cases alike), mesmo porque a aplicação dos precedentes judiciais depende dessa reconstrução histórica do precedente[4], sem descuidar de seu cotejo com o caso presente e suas idiossincrasias.
No Brasil ainda se utilizam ementas de acórdãos como se se tratassem de precedentes judiciais, o que se pode observar nas mais variadas decisões, inclusive das Cortes Supremas. Tais atitudes dificultam a reconstrução da história do precedente, a identificação das similitudes entre os casos, bem como possíveis distinções, enfraquecendo o argumento necessário para a utilização do precedente como razão de decidir, mesmo porque a própria identificação da ratiodecidendi, não raras vezes, resta obnubilada na ementa colacionada. Percebendo o juiz que ao decidir está dando continuidade a um romance em cadeia, onde os capítulos anteriores do livro foram escritos pelas pretéritas decisões, que devem sempre ser levadas em consideração, em razão da integridade e coerência do romance, nem que seja para mudar a narrativa da história em razão das particularidades do presente[5], decerto a teoria do staredecisis será uma excelente ferramenta na busca da superação da crise de efetividade antes noticiada.
As Cortes Supremas[6] do Brasil, notadamente o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, que são responsáveis por dar a última palavra acerca da interpretação da Constituição Federal e da lei infraconstitucional federal, tem muito a colaborar com a aplicação da doutrina do staredecisis, isso diante da competência constitucional que lhes é atribuída. Não se deve mais entender as Cortes Supremas como cortes de controle, mas sim como cortes de precedentes, vocacionadas a outorgar sentido à Constituição e à legislação federal infraconstitucional[7], daí a necessidade de se valorizar as suas decisões, emprestando-lhes força vinculante não apenas aos órgãos jurisdicionais hierarquicamente inferiores, mas sim, sobretudo, que as próprias Cortes Supremas estejam vinculadas aos seus próprios precedentes, o que, infelizmente, ainda hoje não se percebe de forma plena.
Não por outro motivo os demais órgãos do Poder Judiciário não se vêm obrigados a seguir os precedentes emanados das Cortes Supremas (eficácia vertical), até porque elas mesmas insistem em não respeitar seus próprios precedentes (eficácia horizontal), sem que para isso se desincumbam do redobrado ônus argumentativo imprescindível a esta desvinculação (distinguishing ou overruling).
Não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa, tem-se que buscar o sentido do texto na tradição da comunidade jurídica, função mesma dos precedentes judiciais, que refletem, em dado momento histórico, a moral política da comunidade, daí a importância da Teoria dos Procedentes Judiciais Obrigatórios, pois com eles se alcançam integridade e coerência no Direito.
A distinção entre texto normativo e norma jurídica, que reintroduziu a faticidade na applicatio[8], é também tributária da teoria dos precedentes judiciais obrigatórios, pois com seu estudo se desvela a tradição da comunidade política, pré-compreensões e preconceitos (autênticos), evitando-se, com isso, diante da equivocidade da linguagem, decisionismos e discricionariedades, o que desde o pós-guerra vem sendo enfrentado pelas teorias da decisão judicial que se dizem pós-positivistas.
O Novo Código de Processo Civil, sozinho, não é suficiente para a mudança de paradigmas necessária à utilização dos precedentes judiciais obrigatórios. Toda a comunidade jurídica deve engendrar esforços para a aplicação das normas do novo diploma, notadamente em seus alicerces básicos: a) contraditório dinâmico; b) garantia da fundamentação da decisão judicial (analítica); e c) devido processo leal (boa-fé). Somente assim poderemos sonhar com a integridade e coerência do Direito, evitando-se solipsismos e discricionariedades, ainda que travestidas de boas intenções. Daí a pergunta cunhada por Agostinho Ramalho Marques Neto[9]: quem nos salva da bondade dos bons?
Notas e Referências:
[1] Não se está afirmando que as súmulas vinculantes são o mesmo que precedentes judiciais obrigatórios. A distinção entre esses dois institutos, aliás, é uma das finalidades do trabalho a ser desenvolvido.
[2]GRAU, Eros Roberto. Por que Tenho Medo dos Juízes: a interpretação/aplicação do direito e os princípios. 6ª ed. refundida. São Paulo: Malheiros, 2014.GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 14ª ed. Petrópolis: Vozes. Bragança Paulista: São Francisco, 2014.STRECK, Lenio. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.
[3]STRECK, Lenio Luiz. ABBOUD, Georges. O Que É Isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes?. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.
[4]MARINONI. Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: RT, 2010.
[5]DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[6] Aqui as tomo não como cortes superiores (de controle), mas como cortes de interpretação, destinadas a criação dos precedentes judiciais.
[7]MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. São Paulo: RT, 2013.
[8]GRAU, Eros Roberto. Por que Tenho Medo dos Juízes: a interpretação/aplicação do direito e os princípios. 6ª ed. refundida. São Paulo: Malheiros, 2014.
[9]MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. O Poder Judiciário na Perspectiva da Sociedade Democrática: O Juiz Cidadão. In: Revista ANAMATRA. São Paulo, n. 21, 1994, p. 30-50.
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