A boa morte

17/03/2015

Por Atahualpa Fernandez - 18/03/2015

“Ó devotíssimo São Judas Tadeu, pela vossa morte tão preparada e meritória, alcançai-me eu vo-lo peço, a graça de minha vida ser uma preparação contínua para uma boa morte...”

Oração católica, Novena em honra de São Judas Tadeu

 

Recapitulemos: no dia 1º de novembro de 2014, Brittany Maynard acabou com sua vida, tal como havia decidido quando se lhe diagnosticou um agressivo tipo de câncer no cérebro e os médicos lhe deram seis meses de vida. Não tardou muito para a Igreja Católica atacar a Maynard por decidir sobre sua vida e seu corpo. Nenhuma surpresa, exceto pelo fato de constituir um absurdo para a razão: dado que se Deus tudo sabe e decide, por que não considerar que os seres que por diversas razões se quitam a vida o fazem por Sua decisão, já que se assim não fosse, não  poderiam executar o ato.

É verdade que para o cristianismo a «vida é um vale de lágrimas», que viemos ao mundo para sofrer e passar misérias, e que esse é o preço da «caída», a dívida que devemos satisfazer por causa do pecado original. Daí a inevitável algofilia cristã que vai acompanhada pela glutonaria da desdita: não basta com suportar o sofrimento, há que amá-lo. O problema está em que é um colossal e soberano equívoco conceder essa petição de princípio: que a moral é monopólio da religião. A Igreja não é o juiz moral de ninguém e não há nada que deva ser condenado em um gesto dessa magnitude, porque a fé ou a moral cristã não são os fundamentos da proibição da eutanasia. O imoral, indigno e lamentável é que isto não seja evidente para todos, é deixar que o outro sofra ou causar sofrimento podendo evitá-lo. O moral — e a razão de ser de uma sociedade que não ameaça sistematicamente as normas da moral a que chamamos civilizada  — é o contrário: ninguém deve viver indignamente.

Claro que o Vaticano pode impregnar os cérebros teologicamente condicionados de suas ovelhas com preconceitos e valores infundados e anacrônicos; o que não pode (e não deve) é intentar impor essa moral fundada no «sadismo do sofrimento» como norma obrigatória a todo mundo, principalmente para quem sofre uma dolorosa, incurável e terrível enfermidade que lhe impossibilita uma qualidade de vida medianamente decente.

 Nem sequer aqueles que creem na existência de um Deus onipresente e providente, que vela pelo bem estar de todos e cada um de nós, são capazes de afiançar que os poderes mais altos da Igreja podem vagar pelo mundo com ideias tão insensíveis às pretensões de uma pessoa por ver aliviada suas particulares desgraças pessoais, e condenando «à tort et à travers» aqueles que exercem o direito de morrer com dignidade sem entrar em matizes acerca da qualidade de suas vidas e o que estão pagando, em termos de sofrimento, por ela.

Pois bem, há duas maneiras de marchetar o espectro da morte. A primeira, a boa morte ou eutanásia (em grego, «eu-thánatos»): o digno fim de uma boa vida. Qualquer vida é um processo efêmero, e todos teremos um fim. Mas também em uma vida efêmera (aliás, a única que há) cabe a consciência e a felicidade pessoal. Quando alguém se põe a redigir o guião de sua vida, se encontra com que o primeiro e decisivo capítulo já está escrito e não se pode borrar. A esse alguém somente lhe resta continuar a obra, coisa que fazemos enquanto vivemos. Ainda que não nos seja dado redatar o primeiro capítulo, às vezes podemos escrever o último. Já que não podemos eleger como nascer, ao menos podemos eleger como viver (e inclusive morrer), a não ser que a morte se nos adiante e desbarate nossos planos.

A segunda, a má morte ou cacotanásia (em grego, «kako-thánatos»), ao contrário da primeira, frustra muitas vidas humanas (colocando-as em uma situação de perda ao final) e acrescenta um capítulo de inferno e indignidade a uma biografia que poderia haver sido satisfatória (por exemplo, o intento desesperado de alargar uma vida que já chegou a seu fim). Não há nenhuma dignidade no fato de negar o direito de resistir à interferência arbitrária dos demais que pretenda infligir qualquer extensão de uma vida sem sentido; são os demais os que devem reconhecer cada ser humano como última instância para julgar se a vida que lhe sugerem vale à pena ser vivida ou não.

Não trato aqui de fugazes devaneios, nem de crises de desânimos ante dificuldades superáveis, nem de decisões precipitadas tomadas sob o efeito de uma depressão passageira, senão de pessoas conscientes em estado (ou processo) de deterioro físico tremendo e irreversível, com a liberdade e a capacidade de eleger  intactas, e que ainda conservam seu bom juízo. Se esses indivíduos consideram que, a partir de certo momento, o balanço de satisfações e sofrimentos vai resultar em um saldo intolerantemente negativo (uma prolongação de sua agonia ou de sua má vida), são eles e somente eles os que devem decidir entre a eutanásia e a cacotanásia, porque la muerte más deseable de un humano es la que él decide (J. Mosterín).

Quem ousaria opor-se a sua eleição? Quem teria a insensatez de arrogar-se uma autoridade sobre a vida do próximo quando sua carga de viver se faz insuportável? Por acaso Jesus Cristo, animado pelo próprio Pai, também não se entregou de forma ativa, prematura e «voluntariamente» ao seu «dever» de padecer uma «má morte» pela humanidade?

Como a maioria das verdades amargas, falar ou praticar a morte nos dias atuais aterroriza a todos. Não gostamos que nos recordem a fragilidade e a finitude da vida, que levantem o «véu da ignorância» com que cobrimos nossos temores e fabulações sobre o sofrimento e a morte. O hedonismo demencial, a esquizofrênica implicação mundana sem freios, a compulsão quase enfermiça pela felicidade, a aparência e a saúde a qualquer preço leva-nos a distorcer ou negar constantemente a evidência da vulnerabilidade ou efemeridade da vida e a vivermos como se fôramos imortais. Por não poder suportar demasiada realidade, quase não recordamos de que a morte é inevitável. Não é a minha eleição, mas reconheço que há pessoas que decidem percorrer este demencial caminho de delírio da perpetuidade.

Mas ainda que se possa ver uma enfermidade terminal como só outro caminho misterioso de Deus para demonstrar-nos que nos ama, o certo é que o ideal do humano livre, dono e senhor de si mesmo, consiste em tomar o mando e assumir a autoria de sua vida e de sua morte. Por dizê-lo de alguma maneira: se parece razoável supor que podemos dispor conscientemente sobre nossas vidas ao menos em alguns aspectos, a garantia da independência e soberana autarquia para controlar os cursos de ação possíveis relativas à morte (boa ou má) incrementa a formação da própria individualidade, da capacidade de plena autodeterminação no âmbito de nossa peculiar existência, e, consequentemente, da própria ideia de dignidade.

E a dignidade da vida humana estriba em não aceitar qualquer tipo de vida, senão somente aquela que vale a pena de ser vivida. Ninguém nos perguntou como gostaríamos de haver nascido, e nada nos impede que possamos decidir sobre «como» morrer. Esta é a maneira mais poderosa para fazer com que a vida adquira um sentido verdadeiramente transcendente. Se, ao contrário, permitimos que seja a contaminante opinião dos demais que controle tudo, dilapidamos e corrompemos a ideia mais bela que existe: a possibilidade concedida a cada qual de ser dono de seu destino e de melhorar sua existência.

A importância de postular o direito a escolher um digno final de vida, de decidir com sensatez e serenidade como serão os últimos momentos de nossa finita existência, decorre da evidência de que com a morte termina o ciclo natural da vida. Nossa liberdade e autonomia, aqui, estão em jogo. O inimigo não é a morte, senão a enfermidade, o sofrimento e a dor. Quando a enfermidade é incurável e a dor irremediável, tratar de condenar ou combater a morte somente serve para alargar inutilmente o sofrimento humano.

Por isso a aceitação da boa morte conduz à contenção do sofrimento, que é um elemento da justiça: a única forma de justiça que pode garantir a concreção do imperativo ético segundo o qual há que atuar sempre de tal maneira que as consequências de nossas ações sejam compatíveis com a maior possibilidade de evitar, eliminar ou diminuir a miséria, a infelicidade e o sofrimento humano. Evitar, eliminar ou mitigar o sofrimento, esta é a máxima, a norma moral absoluta, o imperativo categórico supremo.

Portanto, desconfiemos daqueles que creem que suas crenças, por definição, são ou podem ser constitutivas da verdade ou prova axiomática da existência objetiva do afirmado (ou de uma «única moral correta»). Desconfiemos das pessoas cujo sistema de crenças é o único que se interpõe entre elas e um comportamento repulsivo. Desconfiemos daqueles que idolatram a desgraça, que se irritam com nossa liberdade e que avocam o direito ou a autoridade moral de julgar nossos infortúnios. Desconfiemos de todos aqueles que professam adorar ou preocupar-se pelo sofrimento alheio.

Em sua solicitude se oculta uma espécie de desprezo disfarçado, uma maneira de reduzir aos miseráveis a sua angústia, de não considerá-los nunca como iguais. E então, baixo a máscara da piedade, triunfa a inveja e o ressentimento: amor pela desgraça, ódio pelo ser humano (P. Bruckner). Somente se lhes perdoa a vida se sofrem, ainda que ideia de que a dor e o sofrimento santificam jamais se demonstrou cientificamente.


Atahualpa Fernandez

Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


Imagem Ilustrativa do Post: El bes de la mort _ detall (B&W) // Foto de: Ferran Pestaña // Sem alterações Disponível em: http://www.flickr.com/photos/ferranp/4968304774/in/photostream/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

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