A beleza do consumo cosmético – Por Felipe Montiel da Silva

14/10/2016

Jeremiah de Saint-Amoir, personagem criado por Gabriel García Marquez no célebre “Amor nos Tempos do Cólera”[1], afirmava que “a velhice era um estado indecente que devia ser detido a tempo”. A funesta sentença, no entanto, tem revestido os estandartes da indústria estética, semeando, nos latifúndios do imaginário social, a ideia de que beleza e juventude podem ser alcançadas pela aquisição das ferramentas científicas oferecidas nas prateleiras do mercado[2]. Neste cenário, a certeza de submissão aos dissabores do tempo e da natureza foi substituída, com o alvorecer da Modernidade e da ciência, pela possibilidade de controle sobre qualquer forma de manifestação do destino[3]. A repulsa ao corpo em estado de decadência física e os desencaixes ao padrão verticalizado de beleza não apenas podem como devem ser tratados e curados pelos mecanismos técnicos disponibilizados. Negligenciar a aparência individual não está entre as assertivas disponíveis, uma vez que os predicativos de promessa do belo estão acessíveis em todos lugares, modelos e preços, ou seja, estão à disposição de todas as classes sociais. Não é diferente o acesso às formas de embelezamento dos indivíduos que, para além da classe social, etnia ou forma física, fogem ao padrão estético posto. Cada vez mais anúncios publicitários dão vez e representação àqueles que transcendem o formato ideal, oportunizando, assim, a adesão ao consumo de homens e mulheres que estão em descompasso com os moldes socialmente arquitetados; em outras palavras, o despotismo da beleza não poupa a ninguém. Entre as formas de obtenção da estética idealizada estão cosméticos, os quais criam, para suas revendedoras diretas, verdadeira reformulação na ideia de trabalho. Em pesquisa à forma de atuação da empresa Natura, vanguardista na revenda de cosméticos em relações pessoais, Ludmila Costhek Abílio acena para algumas questões que não podem deixar de ser salientadas[4]. Em primeiro lugar, nem sempre as representantes de venda encaram o exercício de suas funções como trabalho, sendo a forja da identidade de “revendedora de cosméticos” atribuída à compatibilidade e ao histórico de trabalhos formais exercidos. Logo, de acordo com a pesquisa, far-se-ia possível encontrar uma arquiteta que revendesse produtos cosméticos em representação, sem que, com isso, se identificasse como revendedora. A descaracterização do trabalho, neste esquadro, permite que muitas revendedoras dediquem quantidade de tempo grandioso às atividades “extraordinárias”, possibilitando, em harmonia à ideia de que o indivíduo é o único responsável por sua ascensão ou degredo, as condições necessárias à ocorrência duma espécie de sobretrabalho. Outra particularidade constatada reside na forma de aquisição das mercadorias. De acordo com a política da referida sociedade empresária, a revendedora solicita o produto desejado, emitindo, concomitantemente, boleto com valor 30% (trinta por cento) menor do que o apresentado no catálogo de produtos. A porcentagem extraída perfaz a remuneração da revendedora, que, por sua vez, assume o risco e a responsabilidade de remunerar a empresa fornecedora dos cosméticos a despeito da efetivação das vendas pretendidas. Portanto, chega-se à compreensão que as verdadeiras clientes das empresas de venda de cosméticos em relações pessoais são suas trabalhadoras, as quais atraem para si o real risco do negócio, entregando, em garantia ao pagamento das mercadorias adquiridas para venda, a idoneidade comercial de seus nomes. Igual importância deve ser conferida à vinculação entre o objetivo do produto e a imagem ou aparência da revendedora. Desta forma, para avalizar a eficácia dos produtos em venda, muitas trabalhadoras consomem – em larga escala – os cosméticos destinados ao negócio, adquirindo dívidas que, de forma paradoxal, são compreendidas como meio de entregar maior alcance e sucesso à atividade desenvolvida. A confusão estabelecida entre investimento e despesa, faz com que grande parte das operárias desta forma social de trabalho ignore, ao final das contas, o ganho advindo da atividade desempenhada, limitando-se, muitas vezes, a entoar que o proveito da atividade repousa na diminuição dos custos de consumo das mercadorias em tese adquiridas para venda. Internalizam as revendedoras, portanto, o discurso que sacraliza a beleza, compreendendo como forma fundamental para sua obtenção o consumo dos produtos cosméticos.


Notas e Referências:

[1] MÁRQUEZ. Gabriel García. O amor nos tempos do cólera. 5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1985. p. 56.

[2] LIPOVETSKY, Gilles. A estetização do mundo: viver na época do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 352.

[3] BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 77.

[4] ABÍLIO, Ludmila Costhek. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Boitempo: Fapesp, 2014. p. 20-26.


Imagem Ilustrativa do Post: MATSYS, Quentin. A Grotesque old woman. 1513. Óleo sobre carvalho. 64,2 x 45,4 cm

Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/The_Ugly_Duchess#/media/File:Quentin_Matsys_-_A_Grotesque_old_woman.jpg. Acesso em: 12/10/2016

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