A Autonomia do Consumidor posta aos Simbolismos que Obscurecem o Consumo: o direito do consumidor como retomada da consciência – Por Gabriela Samrsla Möller

31/03/2017

Coordenador: Marcos Catalan

O homem gosta de acreditar-se senhor da sua alma. Mas enquanto for incapaz de controlar os seus humores e emoções, ou de tornar-se consciente das inúmeras maneiras secretas pelas quais os fatores inconscientes se insinuam nos seus projetos e decisões, certamente não é seu próprio dono. (Jung, Carl G. O homem e seus símbolos, p.83)

Do estudo da passagem dos fatos ao mundo jurídico, o verdadeiro desafio é posto na medida em que se compreende que os fenômenos podem se apresentar visíveis e invisíveis, simples e complexos, não comportando – como bem se deve interpretar todo o sistema - por equações matemáticas, dada as ondulações que se manifestam no social. Estes fenômenos, quando invisíveis, merecem especial atenção, pois estão consagrados junto ao imaginário social e dificultam a apreensão e interpretação do evento. Em um campo social em que o poder está presente em todas as partes a partir dos olhos, importa saber descobri-lo naqueles locais onde se deixa ver menos, onde é ignorado.

Dado que na sociedade de consumo o gosto tem o condão de classificar e diferenciar as posições sociais objetivas, o habitus de consumo é dotado de um valor social e reestruturado pela dialética da distinção, trocas do que se tem por qualidade são realizadas pela quantidade, onde a sociedade de massa está centrada. Por exemplo, as instituições de ensino estão ao alcance de todos, entretanto estas são divididas entre aquelas tidas como boas e aquelas outras tidas como periféricas. O poder distintivo das posses ou dos consumos culturais tende a diminuir na medida em que aumenta o número de pessoas que estão em condições de sua apropriação, de modo que a dialética da pretensão e da distinção continua a produzir novos bens ou outras maneiras de apropriação dos mesmos bens. A permuta desses papéis permite que a dominação seja perpetuada e as diferenças mantidas.

O campo social pode ser tido como um espaço multidimensional no qual as posições são definidas em razão de coordenadas de valores, e os agentes são divididos conforme o jogo de oposição e distinção. A cultura de massas reestrutura as bases das classes sociais, cindindo-as a partir do poder de consumo, que por sua vez ganha a significação a partir de sua quantidade e qualidade. Como toda a cultura, a cultura de massas tem seus desses e heróis, embora esses fundamentos sejam exatamente o que a decompõe: o espetáculo e a estética. Dentro desse paradoxo insere-se também a bela mitologia da felicidade.

As forças interiores do homem procedem de uma força não alimentada sobre a consciência e que também não está sob o seu controle. Na mitologia eram os espíritos, demônios e deuses. Estão tão presentes como no passado, mudando apenas a sua forma de representação. Ou seja, já não colocamos a culpa em outras entidades, e para lidar com essa concepção, o homem abriu mão de sua introspecção e essa renúncia - com alusão as crenças primitivas, tão desacreditado e ridicularizado pelo homem moderno – incide em outra forma de possessão por forças fora do seu controle: o inconsciente simbólico. Os símbolos, por sua vez, são responsáveis pelo consensus acerca dos sentidos e dessentidos do mundo social que leva a integração lógica e moral, por isso pode-se afirmar que a integração lógica e moral posta pelo consumo atua perversamente por meio de distorções do real.

Pela dialética exposta, o consumo dota as mercancias de um caráter simbólico, que ultrapassa a consciência humana. Por exemplo, um sapato não se limita mais as suas qualidades técnicas, mas sim é condicionado a partir da potência de distinção que ele poderá ocasionar. Dessa forma, uma sociedade de consumo não se limita a ser aquela que a sociedade consome, uma vez que essa se adequa a várias sociedades passadas, presente e futuras. Tão pouco é aquela que consome produtos de mercado, ou aquela na qual a sociedade, por seus membros, consome de forma compulsiva. O que deve ser objeto de indagação é a sociedade consumista, por ter ela no consumo a dinâmica da vida social e o consumo não somente para superveniência. O consumo é transformado em algo habitual, que sequer necessita justificação. O objetivo da economia não é a criação de riquezas sociais, mas sim se incrementar a oferta de bens e serviços. A meta da política é a de oferecer aos cidadãos um nível de vida mais alto, passando a classificar a sociedade pela renda capital e pela quantidade de bens de consumo que se recolhe em estatísticas sobre o bem-estar. O consumo é a base da autoestima e da estima social, um caminho para a felicidade pessoal. É o valor simbólico dos produtos que classifica sua necessidade, pois responde a um conjunto de motivações psicológicas.

O sentido da justiça e da igualdade é deturpado pelo sentido da justiça e igualdade de consumo: tenho o direito de consumir o que o outro consome, de modo que a minha satisfação com o meu próprio consumo tem relação com o que os outros consomem.  A contradição entre o reconhecimento da igual dignidade e da igualdade política e da assombrosa desigualdade econômica denota as contradições de uma democracia que busca ser afirmada pelo direito.

A sociedade disciplinaria Foulcautiana já não mais representa a sociedade atual; em seu lugar, foi estabelecido outra completamente diferente, uma sociedade de rendimento. Foucault não mais consegue explicar as mudanças psíquicas e sociais a partir de sua análise do poder, uma vez que a sociedade negativa da transiciona progressivamente para uma sociedade em que “tudo pode”. O inconsciente coletivo, os arquetipos e o imaginário social expressam o afã de maximizar a produção. O excesso de trabalho e rendimento o agoniza e se converte em auto exploração. As enfermidades psíquicas da sociedade de rendimento não desmentem essa realidade.

Nesse sentido, a fomentação do consumo por propagandas influência diretamente a consciência na tomada de decisões. Esse quadro faz com que o homem não viva conscientemente, condizente com sua natureza imanente, afastando-se assim da individuação. Esse equilíbrio psíquico se expressa das mais variadas formas, tais como patologias.

Partindo-se do pressuposto que os agentes externos preconizam a real influência que desqualifica a massa, o direito do consumidor é mais do que tudo, necessidade. Isto porque a perda de autonomia do consumidor frente ao consumo predatório e a restruturação da cultura pela desqualificação de produtos eruditos e populares a partir da homogeinização faz com que a massa perca a sua condição de ser para ser transformada em objeto.

As eleições de consumo estão condicionadas por motivações psicológicas de diversos tipos, desde o afã de êxito e medo, ao fracasso vital, ao desejo de compensar uma incapacidade, desde a busca pela igualdade, aquisição de novidades, a necessidade de identidade e segurança. A trama de crenças que fora o húmus cultural influencia na eleição e nos hábitos que se adquirem no processo de socialização. Os desejos dos consumidores são manipuláveis e quanto mais inconscientes, mais dominados pelo simbólico, mais serão manipulados.

As demandas recorrentes de relação de consumo, das mais simples as mais complexas, acentuam essa objetificação realizada em face do consumidor. Enquanto que essa massa não for requalificada e posta efetivamente no mundo, como ser-aí, continuará existindo um fosso que aprofunda a sua desqualificação. As demandas repetititivas são o reflexo que denotam a perpetuação das decisões, denotando o tratamento desqualificatório.

O superendividamento e a facilitação do crédito, a título de exemplo, criam um ambiente de metaconsumo do consumo, criando uma diferenciação entre os próprios cidadãos em uma sociedade, fazendo com que a cultura das diferenças produza, pelo consumo predatório, emergindo angústias diversas. A impossibilidade do adimplemento e as suas consequências como ligações dos credores, cobranças, fazem com que o ser se reduza àquilo e nada mais.

Sem dúvida a democratização da economia conduz a certas melhoras, porém melhoras realizadas não “pelo povo” mas da qual o povo é o servo na direção e na medida desta. O efeito democrático da economia, nesse sentido, não é outro se não o consumo. Porém, o percalço principal surge: A capacidade de produção não se conecta com a capacidade de distribuição. O torpe do processo de produção é o passo do produto ao consumo e sua distribuição nos diversos setores de consumo. Por isso, a economia técnica é fatalmente antidemocrática e afirmatória da distinção. Visão que vai contra aqueles que sistematizam a sociedade de massa e sua cultura como produtos de uma democracia plural e de uma estrutura social onde o acesso das massas ao consumo elimina as desigualdades A democracia, inclusive, é posta por muitos autores como a falsa ilusão de participação das massas.

Em uma sociedade que aumenta as ofertas de consumo importa assegurar institucionalmente que o mercado deve funcionar em benefício do consumidor, uma vez que o consumidor está desamparado frente a todas as microfísicas de poder denotadas pelos símbolos que se perfazem pelo invisível.

A moral hedonista do consumo, baseada no crédito, despesa e fruição, deseja um mundo social que julga os homens por sua capacidade de consumo, sua posição social e o estilo de vida que leva. Esse homem é persuadido pela nova burguesia de vendedores de bens e serviços simbólicos, e pelo conselho destes rege aquilo que terá como o seu gosto. Proteger o ser contra suas próprias deformações é dever de um direito preocupado e atento a todas as formas de alienação do social.

A ideia introduzida pelo mercado de consumo de que o ser é livre, que não é alienado, não é vítima fatal da publicidade e de todos os símbolos encapsulados, assim como é totalmente capaz de dispor de suas escolhas e assumir determinados riscos por ela, fez com que se criasse uma ideia no imaginário social de que o consumidor é alguém plenamente consciente de sua ação. Contudo, não se trata de haver tomado uma decisão, pois a mercadoria é transformada em necessidade, por sua qualidade proveniente da dialética entre distinção e oposição. O produto exerce uma autoridade sobre o consumidor, que retira dele a capacidade de realizar uma eleição soberana, frente as possíveis consequências que a não aquisição do produto pode causar-lhe, como o rechaço social, o sentimento de insegurança, a ausência de identificação.

Trazer o consumidor a consciência consiste no primordial objetivo de concretizar os objetivos relacionados aos direitos básicos calcados sobre a dignidade humana, posto que aceitando que o consumidor detém liberdade e capacidade para consumir, e o mercado tem liberdade para comercializar, é um dever fundamental delineado pela Constituição a proteção daquele que violado onde os seus olhos sequer alcançam. Os consumidores não são soberanos e nem decidem de forma autônoma na relação de consumo, isso é fato incontestável e esse cenário é delineado tendo com grande condicionante as violências simbólicas.

Os consumidores não são uma classe, nem diversas classes, mas sim agentes integrantes de vários estilos de vida e organizados de forma pouco coesionada, com interesses diversos. Dificilmente juntos podem constituir algo que os leve a transformação. Por isso, a atuação do direito no sentido de reconhecer a realidade proveniente das invisibilidades perpetradas por detrás da relação de consumo é fundamental para conhecer e reconhecer os fenômenos do social e colori-los devidamente. Um judiciário mais sensível aos fenômenos, ao contexto plural e à complexidade das relações pede uma justiça calcada em um processo que, efetivamente, busque garantir os direitos do ser frente ao que se traduz como social.


Notas e Referências: 

BORDIEU, Pierre. A Distinção: Crítica social do julgamento. São Paulo: Zouk, 2007.

BYUNG-CHUL, Han. La Sociedad del Cansacio. Barcelona: Herder, 2012.

MORIN, Edgar. Cultura de Massas no Século XX: neurose. Vol. I.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, 1989.

CORTINA, Adela. Por una Ética del Consumo: La ciudadanía del consumidor em un mundo global. Colombia: Tauros Pensamiento, 2002.

JUNG, Carl G. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.


 

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