A AUTONOMIA DA VONTADE COMO CONDIÇÃO PARA A PRODUÇÃO DE EFEITOS JURÍDICOS DO ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA  

25/08/2020

Coluna Direito Negocial em Debate / Coordenador Rennan Mustafá

O Supremo Tribunal Federal conferiu à colaboração premiada feição contratual ao fixar sua natureza jurídica como negócio jurídico processual. Por ocasião do julgamento do HC 127.483/PR, a Corte Constitucional adotou, de maneira paradigmática, a teoria dos três planos da existência do negócio jurídico para explicar a colaboração enquanto fenômeno jurídico.

Posteriormente, com o Pacote Anticrime, inclui-se o artigo 3º-A na Lei n. 12.850/2013 (Lei das Organizações Criminosas), que dispõe expressamente que “O acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesses públicos”.

Vale mencionar que muito embora já fosse prevista no ordenamento jurídico brasileiro, a difusão desse instituto deu-se com a promulgação da referida Lei n. 12.850/2013, baseada nas Convenções Internacionais de Mérida (Decreto n. 5.687/2006) e Palermo (Decreto n. 5.015/2004), que trata sobre as organizações criminosas.

Diante disso, pode-se evidenciar que o exercício da autonomia da vontade é condição essencial para a produção de efeitos jurídicos.

Destaca-se que do ato jurídico lato sensu decorrem: a) ato jurídico stricto sensu ou ato não negocial, consistente naquele em que a vontade manifestada pelas pessoas compõe o suporte fático de certa categoria jurídica, porém, o fato jurídico respectivo já tem efeitos preestabelecidos pelas normas jurídicas, tratando-se de efeitos necessários, ou ex lege; e b) o negócio jurídico ou ato negocial, no qual a vontade não apenas integra o suporte fático como, também, viabiliza aos sujeitos regularem, dentro de determinados parâmetros, a amplitude, o surgimento, a permanência e a intensidade dos efeitos que constituam o conteúdo eficacial das relações jurídicas que nascem do ato jurídico[1].

Para Maria Helena Diniz, o “negócio jurídico origina-se de ato volitivo, que colima a realização de um certo objetivo, criando, com base em norma jurídica, direito subjetivo, e impondo, por outro lado, obrigações jurídicas” [2].

Antônio Junqueira de Azevedo, depois de criticar as definições de negócio jurídico pela gênese (como ato de vontade) e pela função (como norma jurídica concreta), acaba por defini-lo por sua estrutura:

O negócio jurídico, estruturalmente, pode ser definido ou como categoria, isto é, como fato jurídico abstrato, ou como fato, isto é, como fato jurídico concreto. Como categoria, ele é a hipótese de fato jurídico (às vezes dita ‘suporte fático’), que consiste em uma manifestação de vontade cercada de certas circunstâncias (as circunstâncias negociais) que fazem com que socialmente essa manifestação seja vista como dirigida à produção de efeitos jurídicos; negócio jurídico, como categoria, é, pois, a hipótese normativa consistente em declaração de vontade (…).

In concreto, negócio jurídico é todo fato jurídico consistente em declaração de vontade, a que o ordenamento jurídico atribui os efeitos designados como queridos, respeitados os pressupostos de existência, validade e eficácia impostos pela norma jurídica que sobre ele incide”[3].

Assim, segundo Antônio Junqueira de Azevedo, o exame do negócio jurídico deve ser feito em três planos sucessivos: a) da existência, pela análise de seus elementos, a fim de se verificar se o negócio é existente ou inexistente; b) da validade, pela análise de seus requisitos, a fim de se verificar se o negócio existente é válido ou inválido (subdividido em nulo e anulável); e c) da eficácia, pela análise de seus fatores, a fim de se verificar se o negócio existente e válido é eficaz ou ineficaz em sentido estrito[4].

Por sua vez, a declaração de vontade é elemento essencial do negócio jurídico, “destinada a produzir efeitos que o agente pretende e o direito reconhece”, ocorrendo com a efetiva declaração[5].

Marcos Bernardes de Mello esclarece que “a exteriorização de vontade consciente constitui o elemento nuclear do suporte fáctico do ato jurídico lato sensu. Na verdade, a vontade somente pode ter alguma importância para o mundo jurídico se prevista como suporte fáctico de alguma norma jurídica” (grifo do autor)[6].

Nesse prisma, interessa-nos discutir sobre o exercício da autonomia da vontade como elemento essencial para a celebração do acordo de colaboração premiada, tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal, por meio da perspectiva dos requisitos da validade, estabeleceu o seguinte:

Quanto ao plano subsequente da validade, o acordo de colaboração somente será válido se: i) a declaração de vontade do colaborador for a ) resultante de um processo volitivo; b ) querida com plena consciência da realidade; c ) escolhida com liberdade e d) deliberada sem má-fé; e ii) o seu objeto for lícito, possível e determinado ou determinável[7].

Do mesmo modo, o inciso IV, do § 7º, do artigo 4º da Lei n. 12.850/2013, incluído pelo Pacote Anticrime, estabelece como requisito para a homologação do acordo a “voluntariedade da manifestação de vontade, especialmente nos casos em que o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares”.

José de Oliveira Ascensão define autonomia da vontade como sendo “o poder de estabelecer a sua própria lei. Um pouco mais livremente será o poder de criar um ordenamento próprio”[8].

É importante mencionar que quanto à autonomia da vontade, há determinados limites estabelecidos pelo sistema jurídico, como descreve Marcos Bernardes de Mello, o sistema jurídico prescreve limites relativos: a) à própria manifestação de vontade, permitindo-a ou proibindo-a, e b) ao seu conteúdo, quando admitida. Dessa forma, há limites de legalidade que o acordo de vontade não pode ultrapassar.

Portanto, os questionamentos advindos da utilização do instituto da colaboração premiada devem ser pensados a partir da Teoria do Negócio Jurídico, de modo que diante da sua natureza de negócio jurídico o exercício da autonomia da vontade é um elemento essencial para que o acordo de colaboração premiada possa produzir efeitos jurídicos.

 

Notas e Referências

[1] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

[2] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, volume 1; Teoria geral do direito civil, 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 479.

[3] AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio jurídico: existência: validade e eficácia. 4ª ed. atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2002) – São Paulo: Saraiva, 2002, p. 4-16.

[4] Ibidem.

[5] AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 8ª ed. rev., atual. e aum. – Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 409; 419).

[6] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 127.483, Paraná, Relator: Min. Dias Toffoli. julgado em 27/08/2015, Processo Eletrônico DJe-021, Divulg 03-02-2016.

[8] ASCENSÃO, Jose de Oliveira. Teoria geral do direito civil: acções e factos jurídicos. Volume III. Lisboa, 1992, p. 39.

 

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