A Democracia[1] é um dos principais alicerces das formas pacíficas de convivência humana. É a partir de seu significado material e formal que se vislumbra possibilidades do desenvolvimento humano em oposição às posturas fanáticas e moralistas. Sem que hajam os espaços democráticos é muito difícil perceber de que forma o ser humano se sente próximo ou responsável pelo Outro.
No entanto, apesar de reconhecermos os significados, a prática e a teoria da Democracia parece que nos falta um horizonte que favorece uma permanente humanização desse fundamento civilizacional. Por esse motivo, é possível falar que a própria Democracia seja capaz de trazer os elementos da sua destruição. Veja-se, por exemplo, a nossa última eleição presidencial: todos os ritos legais, todos os procedimentos foram devidamente seguidos com rigor, mas, na galeria subterrânea de outros espaços igualmente democráticos, como é o caso do espaço virtual, essa imagem positiva da democracia se perverte numa imagem negativa da qual se abre um óculos do discurso de ódio, da segregação, das profundas desigualdades sociais, daquilo que genuinamente desumaniza.
Nesse caso, quando a Democracia apresenta o seus próprios riscos[2], ainda que esteja sob uma a anuência formal das instituições, é preciso atenção quanto às chances de os espaços democráticos transformarem-se em oportunidades de servidão voluntária[3]. Parece-me que com o avanço tecnológico intensificou-se a glorificação da autonomia ao estilo self made man/woman, a exposição da imagem pessoal nas redes sociais, ou seja, de uma alta transparência da vida privada em pública. As pessoas, talvez, não querem mais se aventurar nos mistérios da dimensão relacional, mas preferem utilizar a Democracia como espaço da destruição da Sociedade.
Por esse motivo, ainda que se tenha o imperativo da legalidade, o desenvolvimento tecnológico e o funcionamento regular das instituições, a Democracia nem sempre terá o seus avanços desejados porque o problema nuclear de seu avanço reside nessa proximidade da relação do “Eu” com o “Tu”. É precisamente essa relação que começa a desintegrar as liberdades comuns para se buscar as fontes da servidão voluntária, em outras palavras, é mais fácil abdicar das responsabilidades e das liberdades, dos riscos provenientes dessas atitudes, para se viver em completa segurança e evitar os resultados indesejados daquilo que toda relação humana propõe: conhecer o mistério de nossa humanidade que habita o “Outro”.
Nesse século XXI, o que se observa é uma lenta e progressiva autofagia da Democracia[4] a partir da servidão voluntária. A partir desse argumento, esse período histórico que nós vivenciamos representa um risco grave ao desenvolvimento, aperfeiçoamento e amplitude dos espaços democráticos. Ao invés de se consolidar e identificar os pressupostos mais elementares da uma vida plenamente democrática, prefere-se abdicar ou “vender” a liberdade para que se viva sob a “segurança” dos regimes totalitários.
O mais evidente regime totalitário[5], embora mascarado pela sua aceitação como fonte de “organização social”, é o totalitarismo mercantil, a ditadura dos mercados transnacionais. Por esse motivo, a pergunta mais democrática que se pode fazer, hoje, é: o que não é passível de se tornar uma mercadoria? Os riscos de uma autofagia da Democracia[6] são factuais, reais. Talvez se conseguimos entender a profundidade dessa indagação e dos riscos iminentes da eliminação da Democracia, seja possível buscar novos significados de ratificação da Democracia como a promotora de novas, sustentáveis e sustentadas esperanças civilizacionais.
Notas e Referências
[1] “A democracia é idealmente o governo do poder visível, isto é, do governo cujos atos se desenrolam em público e sob o controle da opinião pública. [...] Como ideal de governo visível, a democracia sempre foi contraposta a qualquer forma de autoritarismo, a todas as formas de governo em que o sumo poder é exercitado de modo subtraído na maior medida possível dos olhos dos súditos”. BOBBIO, Norberto. Democracia e segredo. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: UNESP, 2015, p. 29/30.
[2] “Riscos não se esgotam, contudo, em efeitos e danos já ocorridos. Neles, exprime-se sobretudo um componente futuro. Este baseia-se em parte na extensão futura dos danos atualmente previsíveis e em parte numa perda geral de confiança ou num suposto ‘amplificador do risco’. Riscos têm, portanto, fundamentalmente que ver com a antecipação, com destruições que ainda não ocorreram, mas que são iminentes, e que, justamente nesse sentido, já são reais hoje”. BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 39.
[3] “[...] Em vez de a necessidade caçar as suas vítimas, agora é tarefa dos voluntários caçar as oportunidades de servidão [...]”. BAUMAN, Zygmunt. Vigilância líquida: diálogos com David Lyon. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, p. 76.
[4] "[...] a democracia não é nem uma sociedade a governar nem um governo da sociedade, mas é propriamente esse ingovernável sobre o qual todo o governo deve, em última análise, descobrir-se fundamentado". RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 66.
[5] “El problema con el mercado surge cuando en su nombre no se admite ninguna corrección, ninguna referencia diferente, ninguna alternativa al mercado total capitalista, o cuando toda interpelación tienda a ser interpretada nada más en términos de distorsiones o de juicios de valor. Y aunque es claro que esta conditio humana crea tensiones y contradicciones entre diversos polos de la acción social (entre el interés particular y el interés general, entre la acción atomística y la acción asociativa, entre el cálculo utilitario y la utilidad solidaria, entre la ética del mercado y la ética de la responsabilidad por el bien común, en fin, entre el sujeto humano y las instituciones que él mismo ha creado), las alternativas tienen que ser pensadas en términos de dominar y disolver, hasta donde sea posible, las fuerzas compulsivas que se imponen “a espaldas de los productores”, inhibiendo su dinámica destructiva y canalizando las expectativas recíprocas y los proyectos en conflicto, sin pretender abolir alguno de los polos de la contradicción”. HINKELAMMERT, Franz J.; JIMÉNEZ, Henry Mora. Hacia una economía para la vida: Preludio a una reconstrucción de la economía. 2. ed. Costa Rica: Editorial Tecnológica de Costa Rica, 2008, p. 466/467.
[6] “Para demagogos cercados por restrições constitucionais, uma crise representa uma oportunidade para começar a desmantelar o inconveniente e às vezes ameaçador sistema de freios e contrapesos que vem com a política democrática. As crises permitem aos autocratas expandir seu espaço de manobra e se proteger de inimigos aparentes. Porém, a questão permanece: é tão fácil destruir as instituições democráticas?”. LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. [Edição Kindle]. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, pos. 1815-1818.
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