Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese
A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro ganhou a concessão de ordem no Habeas Corpus nº 763541, no Superior Tribunal de Justiça, garantindo o interrogatório de adolescente como último ato num “processo infracional”. A decisão foi comemorada pela instituição em rede social, no mês último mês de dezembro, com reprodução da parte dispositiva:
“Ante o exposto, concedo o habeas corpus para anular apenas o interrogatório do paciente, determinando que o Juízo proceda a nova oitiva do representado, como último ato de instrução, nos termos do art. 400 do CPP, preservados os demais atos instrutórios. Concedo a liberdade ao menor até a prolação da nova sentença”.
Embora não seja possível acessar as peças do processo, dado o sigilo imposto por lei, é preciso, no entanto, explicitar alguns pontos do que está em jogo nessa notícia. Não se trata, portanto, de uma crítica aos termos do processo, mas, como ponto de partida, de questionar os limites do diálogo de fontes entre Direito de Crianças e Adolescentes e Direito Processual Penal na interpretação e aplicação das regras do procedimento de apuração de ato infracional.
A baliza fundamental para esse diálogo está no reconhecimento da diferença específica entre esses ramos do Direito. Parte-se, portanto, uma leitura que reconheça a principiologia, as regras hermenêuticas e o alicerce constitucional próprios e fundantes do Direito de Crianças e Adolescentes. Isso garante o recurso a normas procedimentais que venham confirmar o sistema de garantia de direitos a crianças e adolescentes, sem atentarem à especificidade e fins constitucionalmente estabelecidos.
A partir disso, essa breve análise será dividida em duas partes. Na primeira, é interpretado o art. 152, do ECA, que prevê a possibilidade de aplicação subsidiária de legislação processual aos procedimentos previstos no estatuto. Em seguida, é analisada a especificidade do procedimento socioeducativo previsto no estatuto, sua base constitucional e o necessário protagonismo do adolescente.
Verifica-se do trecho da decisão o estabelecimento de confusão entre o procedimento de apuração de ato infracional voltado à responsabilização de adolescente e o processo penal para adultos, com aplicação direta do art. 400 do Código de Processo Penal para o fim de alteração do rito, tornando a oitiva do adolescente o último ato do procedimento.
Isso é um atentato ao sistema de proteção previsto na Constituição da República, art. 227, fundante do Direito de Crianças e Adolescentes, do qual o Estatuto da Criança e do Adolescente é espinha dorsal.
O art. 152 do ECA prevê a aplicação subsidiária de legislação processual nos seguintes termos: “Aos procedimentos regulados nesta Lei aplicam-se subsidiariamente as normas gerais previstas na legislação processual pertinente”
O que o art. 152 diz expressamente é a aplicação subsidiária de normas gerais previstas na legislação processual. O que se viu na decisão foi a aplicação de regra específica do Código de Processo Penal para a alteração do rito previso no ECA.
Não foi o caso de complementar uma abertura procedimental no estatuto a partir do recurso a uma norma geral, numa interpretação que levasse a dar concretude ao procedimento previsto no estatuto. O que se procedeu foi a uma modificação legislativa por uma decisão judicial.
O procedimento de apuração de ato infracional é previsto no ECA nos arts. 171 a 190. O art. 184, do ECA, é claro ao prever como primeiro ato judicial oral do procedimento a audiência de apresentação do adolescente. Nesse momento, conforme o art. 186, “comparecendo o adolescente, seus pais ou responsável, a autoridade judiciária procederá à oitiva dos mesmos, podendo solicitar opinião de profissional qualificado”.
A partir da oitiva do adolescente, de seu responsável e mesmo de profissional da equipe interprofissional, o juiz decidirá sobre a manutenção ou não de internação provisória (art. 184) como poderá decidir pela remissão, ouvindo o Ministério Público (art. 186, §1º).
Não há abertura normativa para o estabelecimento de regra procedimental específica com o recurso de norma geral, via aplicação subsidiária da legislação processual pertinente. É inaplicável o art. 152 para alterar o rito previsto no ECA para que a audiência de apresentação seja realizada ao final do procedimento.
A interpretação adequada do procedimento de apuração de ato infracional deve observar o que é estabelecido no art. 6º do ECA: “Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento”.
Deve-se considerar que o procedimento de apuração de ato infracional, portanto, é um meio de garantia de direitos ao adolescente, com prioridade absoluta e considerando-o como sujeito de direitos em sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
O procedimento de apuração de ato infracional não deve ser identificado ao processo criminal para voltado à aplicação de pena ao adulto, se comprovada a prática de crime ou contravenção.
O ECA, no art. 100, parágrafo único, XII estabelece como princípio para a aplicação da medida socioeducativa a oitiva obrigatória e participação do adolescente, “em separado ou na companhia dos pais, de responsável ou de pessoa por si indicada, bem como de seus pais ou responsável”, como um “direito a ser ouvido e participar nos atos e na definição da medida de promoção de direitos e de proteção”. Além disso, conclui o mesmo dispositivo que a opinião do adolescente deverá ser “devidamente considerada pela autoridade judiciária competente”.
O princípio da oitiva e participação obrigatórias deve ser observado no que se refere à aplicação de medidas socioeducativas e, portanto, no procedimento de apuração de ato infracional, por disposição expressa do art. 113, do estatuto.
A audiência de apresentação como primeiro ato do processo é condizente com o direito à oitiva obrigatória e participação do adolescente na construção narrativa dos fatos, sua configuração ou não como ato infracional, e na definição da medida socioeducativa aplicável.
Embora o ato infracional seja definido no art. 103, do ECA, como conduta descrita na lei como crime ou contravenção, é preciso evitar a identificação absoluta criminógena ou como pena, tendo em vista a dimensão socioeducativa do procedimento de responsabilização, em que pese sua indiscutível consequência sancionatória.
Tanto o ato infracional como a medida socioeducativa integram o direito de proteção especial, como se extrai do art. 227, §3º, IV e V, da Constituição da República. Assim, o procedimento de apuração de ato infracional deve ter como norte a concretização do dever de proteção integral, levando a um processo de responsabilização que não exclua a escuta e a participação ativa do adolescente.
Na audiência de apresentação, é possível a aplicação da remissão, como previsto no art. 186, §1º, do ECA. A remissão é prevista no ECA como a possibilidade de desjudicialização, tornando o processo judicial a última alternativa possível de atuação estatal para a garantia de direitos ao adolescente no procedimento de apuração de ato infracional. O instituto previsto no ECA tem origem no artigo nº 11, das Regras Mínimas das Nações Unidas para a administração da Justiça da Infância e da Juventude, conhecidas como Regras Mínimas de Beijing, aprovada pela resolução 40/33, da Assembleia Geral da ONU, de 29 de novembro de 1985.
Trata-se do “recurso a meios extrajudiciais” como forma de devolver o caso infracional aos demais responsáveis pela garantia de direitos ao adolescente, considerando-se a complexidade da questão na maior amplitude de suas dimensões como questão social, com inclusão da família e do poder público.
Não se lida no procedimento judicial com as causas, mas com as consequências. E o comando constitucional fundante do Direito da Criança e do Adolescente estabelece a relação jurídica em que os sujeitos infantoadolescentes são, em princípio, credores de direitos de prestação de que são devedores a família, a sociedade e o Estado. O art. 4º do ECA explicita o comando constitucional, instituindo esse dever para a família, a comunidade, a sociedade em geral e o poder público.
A remissão é uma forma tanto de desvio da via judicial – e dos possíveis efeitos deletérios de um procedimento judicial – para a via do social e do poder público, quanto, em muito maior medida, resultado da verificação de que, no caso, não se trata de intervenção judicial mas de intervenções de outros atores sociais junto ao adolescente e/ou seu grupo familiar, via programas e políticas públicas. Essa verificação se dá em primeiro lugar com a escuta do adolescente, procurando saber dele e/ou de seus pais ou responsáveis, de suas vinculações sociais, de suas referências locais. Esse é o primeiro ato judicial, é indispensável, e é o que justifica a audiência de apresentação como ato inicial do procedimento de apuração de ato infracional.
A identificação sem restos do procedimento socioeducativo com o processo penal para o adulto retira o protagonismo do adolescente, transformando esse procedimento num teatro de embate judicial entre adultos. Há aí a consequente objetificação do adolescente numa alteração procedimental de forte teor adultocêntrico. Uma decisão adultocêntrica e atentatória ao sistema de direitos de crianças e adolescentes com a indesculpável utilização do termo “menor”.
É preciso atentar para que a posição do adolescente no processo não seja do indivíduo de quem se extrai ou não a culpa, ou de que se produz um saber. Mas de, verificando-se ser indispensável a atuação judicial, seja reconhecida a posição de efetiva participação na construção narrativa de sua trajetória, momento de que faz parte a assunção da reparação e da responsabilidade, bem como na definição da medida socioeducativa.
A interpretação constitucionalmente adequada do procedimento socioeducativo leva à concluisão no sentido de se tratar de um procedimento de abertura à e reconhecimento da palavra singular do adolescente na produção da narrativa de sua trajetória e, neste ato, de responsabilização pela prática do ato infracional, uma vez comprovado. E, ainda, da possibilidade de participação do adolescente na definição da medida socioeducativa a que vai se submeter. A responsabilização socioeducativa é um direito do adolescente a tomar a palavra.
Argumentos no sentido da resignação à prática judicial viciada pela identificação criminógena da infração ou à realidade criminal das periferias atentam ao projeto constitucional de sociedade no qual crianças e adolescentes são reconhecidas sujeitos de direitos e têm prioridade absoluta na garantia de direitos. E adolescente a que se atribui a prática de ato infracional não deixa de ser adolescente. Qualquer construção de categorias de etiquetamento e discriminação, como “menor infrator” ou “adolescente infrator”, é inconstitucional e ilegal.
O debate não pode ser desviado para alterações legislativas que firam o sistema constitucional de direitos. É urgente debater a formação universitária e judiciária em Direito da Criança e do Adolescente; a formulação e a concretização coletivas de políticas públicas voltadas para adolescentes e jovens; a formação e a inserção no mercado de trabalho; a educação pública de qualidade; a segurança alimentar; a pluralidade do ser adolescente num país multiétnico, com políticas públicas e atendimentos assistenciais e judiciais que considerem a pluralidade étnica e tradicional, entre tantas outras questões. É preciso retomar a discussão sobre cidadania e concretização de direitos fundamentais num projeto constitucional de Estado Social e Democrático de Direito num Brasil multiétnico, desigual e marcado pelo racismo estrutural.
Diante dessa complexidade, urge ampliar o debate sobre um procedimento de apuração de ato infracional que torne efetiva a escuta e amplie a participação do adolescente.
A alteração do rito previsto no ECA para a apuração de ato infracional, tornando a oitiva do adolescente o último ato do processo, não é condizente com os limites previstos no art. 152, para a aplicação subsidiária da legislação processual, com a normativa de rito prevista no Estatuto para o procedimento socioeducativo, com o art. 100, parágrafo único, XII, do ECA e, assim, com o protagonismo do adolescente no processo, e, enfim, com a previsão constitucional do direito de proteção especial e consideração hermenêutica dos fins sociais a que se destina o procedimento bem como a garantia de direitos ao adolescente, reconhecendo-o como sujeito multiétnico de direitos em condição peculiar como pessoa em desenvolvimento.
Imagem Ilustrativa do Post: A Film in Technicolour // Foto de: Nikk // Sem alterações
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