A atual política de drogas no Brasil como instrumento de rotulação e exclusão social dos afrodescendentes - Por Ricardo Martins

14/12/2017

1 INTRODUÇÃO

Os governantes no Brasil não querem assumir que perderam a guerra contra as drogas e continuam insistindo numa política antidrogas falida e violenta, que vem matando cada vez mais pessoas, sejam elas policiais, viciados ou terceiros inocentes. E estatísticas demonstram que a referida política de drogas faz com que o Brasil seja um dos países mais violentos do mundo, matando mais do que a guerra da Síria.[1]

A criminalização do uso de drogas no Brasil e a resistência em não enfrentar tal questão efetivamente como um problema político e de saúde pública, vem causando um encarceramento em massa que está saindo do controle do Poder Estatal. E a forma como atualmente é criminalizado o porte de entorpecentes, não diminui a sua utilização e ainda etiqueta grande parcela da sociedade como se fossem serem humanos imprestáveis para a vida em sociedade.

O etiquetamento ou rotulação social, é uma teoria da criminologia denominada Labelling Approach, que há muito tempo já vem sendo estudada pelos especialistas, conforme comenta o doutrinador Sérgio Salomão Shecaira: 

A teoria do labelling approach, também chamada de interacionista ou da rotulação social, parte da premissa segundo a qual a sociedade não é um todo consensual, mas que vivemos em uma sociedade pautada no conflito. A pergunta, formulada até então, para saber quais eram as razões que levavam algumas pessoas a ter motivações delituosas, é substituída pela indagação: porque as pessoas convencionais não seguem impulsos desviantes que todos têm? Partindo-se desse relativismo moral, chega-se à conclusão que o cometimento de um delito – a chamada desviação – não é uma qualidade ontológica da ação, mas o resultado de uma reação social: conclui-se, também, que o delinquente apenas se distingue do homem normal devido a estigmatização que sofre, particularmente aquela decorrente do recolhimento às chamadas instituições totais, em especial a prisão. A grande contribuição desta perspectiva está no legado criminológico da prudente não intervenção (teoria da ultima ratio), da criação de um movimento de descriminalização de certas condutas delituosas e da diversion. No plano do direito penal brasileiro, é consequência direta desta teoria a luta por penas alternativas (Leis 7.209/1984 e 9.714/1998) e por medidas alternativas ao próprio processo (institutos da transação penal, composição civil e suspensão condicional do processo na Lei 9.099/1995).[2] 

A referida exclusão social é histórica no Brasil, já que a elite intelectual brasileira principalmente de origem europeia que vivia e ainda vive no Brasil, é marcada por uma singularidade social pós-escravocrata, conforme comenta Hugo Leonardo em sua obra Criminologia no Brasil: 

A produção intelectual de Candido Motta demonstra que o preconceito racial tem vida própria na história do Brasil e na nova criminologia. A denominada questão racial tem um papel fundamental para as justificativas sociais e econômicas de interesse da elite nacional do início do século XX. O tratamento desigual que a escola criminológica positivista propunha, ganhou eco no Brasil e na intelectualidade então em formação, na medida em que serviria para fundamentar uma situação absolutamente peculiar acarretada com o fim da escravidão.[3] 

A maioria das pessoas presa portando entorpecentes no Brasil são pessoas de uma classe social muito baixa, na sua grande maioria jovens afrodescendentes, que acabaram virando escravos da droga em decorrência do vício que adquiriram[4]. E para sustentar tal vício acabam vendendo e transportando drogas, ou seja, viram soldados do tráfico ilícito de entorpecentes.

Além do mais, importante destacar, que a grande maioria dos jovens mortos por ações de segurança pública no Brasil são negros, sendo exterminados sumariamente como se fossem baratas, tratando-se de um verdadeiro genocídio racial da juventude negra.[5] Tratando-se de uma verdadeira guerra de brancos contra negros.

E as pessoas abordadas portando ou transportando entorpecentes no Brasil, acabam sendo enquadradas principalmente em três crimes, art. 28, 33 e 35 todos da Lei nº 11.343/06 (Porte para uso pessoal, Tráfico e Associação ao Tráfico), delitos esses que serão melhor abordados no decorrer da presente discussão.

Ocorre, contudo, que diante do Princípio da Subsidiariedade, sabemos que os conflitos sociais só devem ser solucionados através da intervenção do Direito Penal, quando os demais ramos Direito forem insuficientes, situação esta que não ocorre com a política de drogas adotada pelo ordenamento jurídico nacional.

Quanto ao Princípio da Subsidiariedade do Direito Penal, comenta Cleber Masson: 

De acordo com o princípio da subsidiariedade, a atuação do Direito Penal é cabível unicamente quando os outros ramos do Direito e os demais meios estatais de controle social tiverem se revelado impotentes para o controle da ordem pública.[6] 

Assim sendo, de plano já se percebe que a política de drogas no Brasil é calcada num preconceito de raça e está tentando resolver a questão das drogas com a utilização do ramo do Direito mais truculento que existe, que é o Direito Penal, e em decorrência disso vem pagando um preço muito alto, com uma violência exacerbada e o encarceramento em massa principalmente de afrodescendentes.

Além do mais, a não regulamentação do uso de drogas no Brasil, dificulta a realização de pesquisas científicas sobre o assunto, para que sejam tomadas medidas efetivas de prevenção de seu uso e tratamento dos viciados. 

2 DO PORTE DE ENTORPECENTES PARA USO PESSOAL

No que se refere ao porte de entorpecentes para uso pessoal, o art. 28 da Lei n. 11.343/06 não prevê mais a possibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade, veja-se: 

Lei nº 11.343/06 - Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

...

§ 6o Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:

I - admoestação verbal;

II - multa.

§ 7o O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.

Diante da ausência de previsão de uma pena privativa de liberdade para o o crime porte de entorpecente para uso pessoal, surgiu uma discussão doutrinária e jurisprudencial, se tal conduta ainda seria considerada crime ou não. E analisando tal questão o Supremo Tribunal Federal entendeu que ocorreu apenas uma despenalização da conduta e não uma descriminalização do porte de entorpecente para uso pessoal[7]

A exclusão da pena privativa de liberdade do crime de porte de entorpecentes para uso pessoal já foi um grande avanço jurídico e social, porém, o ideal seria sua efetiva descriminalização e regulamentação, acompanhando a postura do Uruguai e de alguns países da Europa, diante do princípio da alteridade que estabelece que ninguém pode ser punido por causar mal a si próprio e pelo fato de que sua regulamentação diminuiria a violência, o crime organizado e a corrupção policial.

Quanto ao princípio da alteridade, comenta o doutrinador Fernando Capez: 

Alteridade ou transcendentalidade: proíbe a incriminação de atitude meramente interna, subjetiva do agente e que, por essa razão, revela-se incapaz de lecionar o bem jurídico. O fato típico pressupõe um comportamento que transcenda a esfera individual do autor e seja capaz de atingir o interesse do outro (altero).

Ninguém pode ser punido por ter feito mal só a si mesmo.[8] 

Atualmente é notório que não existe um programa público efetivo e de qualidade para tratamento dos viciados, situação que torna inócua a aplicação de uma medida educativa de comparecimento à programa ou curso educativo. E de forma abusiva e despreparada algumas internações compulsórias acabam acontecendo, porém, os tratamentos quase sempre acabam não tendo continuidade diante da ausência de investimento e interesse do Estado.

Assim sendo, o art. 28 da Lei n. 11.343/06, apenas faz com que a pessoa detida, portanto entorpecentes, fique com seu nome registrado no cadastro da polícia e do Poder Judiciário, e caso tenha aplicada também a pena de multa terá ainda o seu nome inscrito na dívida ativa, caso não honre com suas obrigações.

Desta forma, a maneira como se encontra criminalizado o porte de entorpecentes para uso pessoal, em nada contribui para o tratamento dos viciados e ainda os rotula, fazendo com que fiquem excluídos da sociedade. Impedindo que, por consequência, ingressem no mercado de trabalho, situação que os impulsionam a criminalidade mais pesada, dando início a um ciclo vicioso que na grande maioria dos casos os leva ao cárcere por longos períodos ou à morte em decorrência da violência. 

3 DO TRÁFICO DE DROGAS

No que se refere ao crime de tráfico de entorpecentes, a grande maioria das pessoas presa diariamente acusadas da prática de tal delito, não são realmente traficantes, mas sim pessoas que se viciaram na droga e que precisam vendê-la para sustentar o próprio vício. A outra parcela de pessoas presa portando drogas, são as denominadas “mulas” (grifo nosso), que diante da miserável condição de vida que possuem, acabam assumindo o risco de transportar entorpecentes para terceiros, para tentar mudarem de vida. Sendo que em ambos os casos, a grande maioria presa é composta de afrodescendentes, sendo muitas mulheres.

Dessa forma, para diferenciar o usuário do traficante, o art. 28, §2º da Lei nº 11.343/06, determina que o juiz deverá analisar se a droga destinava-se a consumo pessoal, à natureza e à quantidade da substância apreendida, o local em que se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. Momento em que, aqueles que demonstram ter condições financeiras de comprar a droga serão considerados usuários (brancos) e os que não tem serão considerados traficantes (negros).

Entendendo que o sujeito deve ser enquadrado por tráfico de drogas, o juiz deve analisar se estão presentes os requisitos previstos no §4º do art.33 da 11.343/06, para diferenciar o pequeno traficante do grande traficante, para que possa fazer a correta dosimetria da pena, de acordo com o critério trifásico previsto pelo Código Penal.

O §4º do art. 33 da 11.343/06, criou uma nova figura no tráfico de drogas, que é o chamado tráfico privilegiado, que possibilita a redução de 1/6(um sexo) a 2/3(dois terços) da pena privativa de liberdade na terceira fase de sua aplicação, quando o acusado seja primário, de bons antecedentes, não se dedique à atividade criminosas nem integre organização criminosa, podendo a pena chegar em até 1(um) anos e 8(oito), veja-se:

Lei nº 11.343/06 - Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

...

§ 4o Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.     (Vide Resolução nº 5, de 2012) 

Ocorre, contudo, que tem com contato o dia a dia Justiça Criminal, percebe que os magistrados amparados em pensamentos e fundamentos retrógrados, resistem muito em aplicar o referido redutor legal acima mencionado, sob o simples argumento de que os acusados não preenchem os requisitos para tanto. E mesmo tendo uma pena de 1(um) ano e 8(oito) meses em sua redução máxima, muitos magistrados aplicam o regime inicial fechado de cumprindo de pena, sob o argumento de que se trata de um crime hediondo.

Destaca-se, todavia, que o Supremo Tribunal Federal enfrentando tal questão entendeu que o tráfico privilegiado não é um crime hediondo e que por isso poderia ter um regime inicial aberto de cumprimento de pena.[9]

Quando da entrada em vigor do §4º do art. 33 da Lei nº 11.343/06, o texto de lei federal vedava a conversão da pena privativa de liberdade em penas restritivas de direitos. Porém, analisando tal questão também, a Suprema Corte entendeu ser inconstitucional tal vedação, diante da presença dos requisitos legais previstos no art. 44 do Código Penal e principalmente por tratar-se de um crime cometido sem violência direta.

Diante da reiterada discussão sobre o assunto, e em razão do Habeas Corpus nº 97.256 oriundo do Rio Grande do Sul, o Senado Federal aprovou a Resolução nº 5, autorizando expressamente a conversão da pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos, veja-se:

Resolução nº 05 do Senado Federal - Art. 1º É suspensa a execução da expressão "vedada a conversão em penas restritivas de direitos" do § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal nos autos do Habeas Corpus nº 97.256/RS.

Toda essa discussão é interessante, porém, conforme já comentado, os Tribunais Estaduais e os Tribunais Regionais Federais, muitas vezes resistem em aplicar o regime aberto de cumprimento de pena, bem como em converter a pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos, sob o argumento de que os acusados não preenchem os requisitos legais para tanto. Porém, como poucas pessoas têm condições de levarem seus pleitos aos Tribunais Superiores, acabam muitas vezes cumprindo pena de 5(cinco) anos pelo crime de tráfico de drogas em regime fechado, sem o reconhecimento do § 4º do art. 33, da Lei nº 11.343/06 e por consequência sem o direito a conversão da pena privativa de liberdade em penas restritivas de direitos.

Mesmo os Tribunais Superiores entendendo reiteradas vezes que as “mulas” não fazem parte da organização criminosa, por serem mero instrumento dos grandes traficantes, muitos magistrados ainda resistem muito em seguir tal entendimento, e acabam encarceram uma grande quantidade de miseráveis, na sua maioria do continente africano[10], que arriscam suas vidas transportando drogas para tentar mudar de condição social e financeira.[11]

Fora a condenação por tráfico de drogas, se o sujeito é preso acompanhando por mais alguém, acaba sendo enquadrado também com base no art. 35 da Lei nº 11.343/06, que é a denominada Associação ao Tráfico e, por consequência, é condenado em concurso material a mais 3(três) de reclusão, o que totaliza 8(oito) anos, ou seja, 5(cinco) anos pelo do Tráfico de Drogas e 3(três) pela Associação ao Tráfico.

Nesse sentido, é notório que a política de drogas no Brasil tem o intuito apenas de excluir algumas pessoas da sociedade, principalmente os afrodescendentes. Situação que é vedada em nosso ordenamento jurídico, conforme comenta José Afonso da Silva em sua obra Curso de Direito Constitucional Positivo:

O texto constitucional, que proíbe o preconceito de origem, cor e raça e condena discriminações com base nesses fatores, consubstancia, antes de tudo, um repúdio à barbárie de tipo nazista que vitimara milhares de pessoas, e consagra a condenação do apartheid, por parte de um povo mestiço, com razoável contingente de negros. O repúdio ao racismo nas relações internacionais foi, também, expressamente estabelecido (art. 4º, VIII).

Nele se encontra, também, o reconhecimento de que o preconceito de origem, raça e cor especialmente contra negros não está ausente das relações sociais brasileiras. Disfarçadamente ou, não raro, ostensivamente, pessoas negras sofrem discriminação até mesmo nas relações com entidades públicas.[12]

Desta forma, fica claro que mesmo existindo uma igual formal, estamos longe de igual material no Direito Penal e no Direito Processual Penal brasileiro, no que se refere aos réus afrodescendentes acusados de tráfico de drogas. 

4 DA PRISÃO PREVENTIVA

A maioria das pessoas presa em flagrante delito pela prática do crime de tráfico de drogas tem a prisão precautelar convertida em prisão preventiva, fazendo com que amarguem longos períodos no cárcere presos provisoriamente até o julgamento final, conforme dados do Conselho Nacional de Justiça – CNJ.[13]

Ocorre, contudo, que diante da possibilidade legal da redução da pena privativa de liberdade do tráfico de drogas com base no § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/06, e da possibilidade de sua conversão em penas restritivas de direitos, conforme já comentado, não faz o mínimo sentido deixar esses acusados recolhidos cautelarmente.

Como a maioria dos acusados da prática do tráfico de drogas só consegue o reconhecimento do tráfico privilegiado em segunda instância ou até mesmo perante os Tribunais Superiores (STJ ou STF), que na verdade são poucos, acabam cumprindo um tempo de prisão preventiva superior ao tempo da própria condenação final.

Assim sendo, é notório que no Brasil a prisão preventiva, que é uma medida cautelar, acaba sendo utilizada como instrumento de punição e de exclusão social sumária, porque alguns operadores do direito sabem que os afrodescendentes e pobres em geral, dificilmente terão condições de contratar um advogado criminalista pra conseguir o reconhecimento do tráfico privilegiado perante instâncias superiores.[14]

Quanto ao assunto em questão, comenta o doutrinador Renato Brasileiro de Lima:

Impera, no processo penal comum brasileiro, absoluta indeterminação acerca do prazo de duração da prisão preventiva, que passa a assumir contornos de verdadeira pena antecipada. Isso porque, ao contrário da prisão temporária. Que possui prazo prefixado, o Código de Processo Penal não prevê prazo determinado para a duração da prisão preventiva. Assim, a prisão preventiva, cuja natureza cautelar deveria revelar a característica da provisoriedade, acaba por assumir caráter de verdadeira prisão definitiva.[15] 

Infelizmente a contratação de um advogado é uma prerrogativa pra poucos no Brasil, situação que obsta que a maioria dos acusados consigam o que lhes pertence por direito, o que faz com que tenhamos um percentual de presos provisórios superior ao de presos condenados, em muitas regiões.

Porém, a utilização da prisão preventiva como pena, é uma medida que fere preceitos constitucionais, o Direito Penal e Direito Processual Penal e, portanto se trata de um grave constrangimento ilegal utilizado contra uma parcela da sociedade, que muitas vezes não tem condição para se defender dos abusos do poder estatal por não terem o efetivo acesso à justiça. Assim é obrigada a aguentar calada pois não tem meios adequados e corretos para se insurgir contra uma postura excludente que muitas vezes é aplaudida por leigos mal informados pela mídia policialesca de baixíssimo nível. 

5 DA CONCLUSÃO

Com uma simples análise da política de drogas no Brasil, pode-se verificar que se tem apenas uma igualdade formal no Direito Penal e no Direito Processual Penal, e que se está longe de uma igualdade material, tendo em vista que uma grande parcela da sociedade é tratada com um rigor excessivo do Estado, referindo-se, principalmente aos afrodescendentes, que muitas vezes por apenas portarem uma pequena quantidade de entorpecentes, ou por transportarem drogas em decorrência miséria em que vivem são punidos com excesso, fazendo com que tenhamos um sistema forte contra os fracos e fraco contra os fortes.

A postura do Estado rotula as pessoas que são encontradas com drogas e as excluí do convívio social, principalmente com o encarceramento em massa de drogados que vêm sendo realizado atualmente, assim causando um colapso no sistema prisional brasileiro.

O encarcerando precário e em massa além de terem índices de ressocialização muito baixos, têm custo financeiro muito alto para o Estado, com isso devolvem para a sociedade pessoas revoltadas com o sistema, que muitas vezes acabam virando criminosos profissionais.

Observa-se que desde a abolição da escravatura no Brasil, uma parcela racista da sociedade toma medidas veladas no intuito de excluir afrodescendentes do convívio com os demais, sob o argumento de que o negro é um ser preguiçoso e tendencioso à prática de crimes, seguindo claramente a Escola Positivista da Criminologia, que sustenta a teoria do criminoso nato.

A Escola Positivista surgiu na Itália no início do século XIX, com os estudos de Cesare Lombroso, que entendia que as algumas pessoas já nasciam criminosas, e por tal razão assim deveriam ser tratadas, veja-se: 

A Escola Positiva tem como um de seus principais autores e obras Cesare Lombroso que marcou a fase antropológica da criminologia (O homem delinquente), e na fase jurídica Rafael Garofalo (Criminologia), e Enrico Ferri (Sociologia Criminale). Por essa linha de pensamento, a criminalidade é considerada um fenômeno natural causamente determinado. A criminologia deve explicar as causas do delito, utilizando-se de método científico capaz de prever meios de combatê-lo. Com isso, a criminologia assume o papel de defesa do corpo social.[16] 

Assim sendo, por mais que a Constituição estabeleça que todas as pessoas são iguais perante a lei, percebe-se que essa atitude nem sempre existiu no dia a dia das Políticas Públicas, diante de diversas atitudes que são tomadas pelo Estado.

Muitas pessoas são presas diariamente, porque portavam entorpecentes ou porque estavam em um local propício ao tráfico de drogas. Ocorre, contudo, que muitas vezes o local da prisão destas pessoas é a comunidade onde elas residem com seus familiares por falta de opção, situação que ocorre principalmente no Rio de Janeiro, onde os morros são dominados pelo tráfico de drogas.

Além do mais, os critérios utilizados pelo ordenamento jurídico brasileiro para diferenciar o usuário de drogas do traficante são basicamente financeiros e sociais, fazendo com agentes públicos racistas ou preconceituosos em geral, possam expressar suas ideologias com a chancela do Estado.

Desde a colonização do Brasil, os afrodescendentes têm um tratamento diferenciado pelo Direito Penal, pois são tratados de forma extremamente rigorosa pelo Estado, inclusive com a aplicação de penas capitais. Chegando ao ponto de o Código Penal de 1890 proibir a prática da capoeira em todo o território nacional, fazendo com que o negro fosse ainda mais perseguido e odiado, sendo considerado praticamente um inimigo do Estado.

Os inimigos do Estado evoluem com o passar do tempo, e atualmente são estudados pela teoria do Direito Penal Inimigo, conforme comenta o doutrinador Eugênio Raul Zaffaroni:

Na América-Latina todo suspeito é tratado como inimigo, apesar da legitimação do direito processual penal. Em geral, a categoria do inimigo não é expressamente introduzida ou não feitas referências claras a ela no direito ordinário, visto que ao menos institui-se sua incompatibilidade com o princípio do Estado de direito. Porém, com má consciência, legitima-se ou ignora-se o tratamento que, naquelas condições, é atribuído a um número enorme de pessoas. 

Assim sendo, se um negro que tem bons antecedentes já passa por diversas dificuldades para ingressar no mercado de trabalho, se tiver um apontamento por porte ou tráfico de drogas, praticamente terá suas chances extintas. E provavelmente terá que trabalhar em subempregos para sobreviver, porque nenhum grande grupo empresarial irá contratá-lo diante da clara exclusão social que sofrerá por já estar etiquetado como drogado ou traficante, muito semelhante ao que acontecia com os escravos que eram marcados com ferro quente no período escravidão.

Referida exclusão social impulsiona os egressos do sistema penitenciário a ingressarem na criminalidade, fazendo com que já saiam contratados para trabalhar para o crime organizado, porque dificilmente teriam chances de conseguir uma vaga no mercado formal de trabalho.

Portanto é notório que no Brasil se vive num verdadeiro Aparthaied[17] com um Direito Penal seletivo, que pune com extremo rigor principalmente jovens afrodescendentes que são encontrados com drogas, e os enjaula em cárceres infectos muito parecidos com as senzalas do período da escravatura, sem qualquer respeito ao princípio constitucional fundamental da dignidade pessoa humana, diante do racismo institucionalizado e velado existente.

A ausência de critério legais objetivos para se diferenciar o porte de entorpecentes do crime de tráfico de drogas faz com que autoridades racistas e preconceituosas em geral aproveitem pra aplicar suas ideologias, através de uma política pública informal. E por trás de tal questão, de análise de algumas decisões judiciais, fica notória a existência de um preconceito e um racismo velado e institucionalizado que visa excluir os miseráveis do convívio social.[18]

Desta forma, conclui-se que a manutenção do porte de entorpecentes para uso pessoal como crime e a grande resistência ao reconhecimento do redutor legal previsto no § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/06 pelas autoridades, tem o propósito de se apresentar como um verdadeiro filtro social, que tem a intenção de excluir principalmente afrodescendentes e pobres do convívio social, fazendo com que vivam da exploração, do ódio e do desprezo típico da que se reservavam aos escravos vindos da África.

 

Notas e Referências: 

[1] http://exame.abril.com.br/brasil/violencia-brasil-mata-mais-guerra-siria/

[2] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia; 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2014, p. 321.

[3] SÁ, Alvino Augusto de; SHEICARIA, Sergio Salomão; TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Criminologia no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier. 2011, p. 96.

[4] http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/documentos/infopen_dez14.pdf

[5] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/07/26/rj-9-em-cada-10-mortos-pela-policia-no-rio-sao-negros-ou-pardos.htm

[6] MASSON, Cleber. Direito Penal, V. 1. 11. ed., São Paulo: Gen, 2017, p. 54.

[7] RE 430.105 QO/RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, j. 13.02.2007.

[8] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.  30.

[9] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=319638

[10] http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,trafico-internacional-usa-lei-brasileira-de-refugiados-para-levar-droga-para-europa,1705845

[11] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/07/26/rj-9-em-cada-10-mortos-pela-policia-no-rio-sao-negros-ou-pardos.htm

[12] SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 226/227.

[13] http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/06/2aca186d253909cc2f8e9b12f7748d53.pdf

[14] http://cnj.jus.br/noticias/cnj/82535-prisoes-provisorias-sao-regra-e-contrariam-legislacao-penal-conclui-estudo

[15] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 4 ed. Salvador: JusPodium, 2016. p. 955.

[16] LIMA JÚNIOR, José César Naves de. Manual de Criminologia. 2ª ed. Salvador: JusPodium, 2015. p. 65.

[17] https://www.google.com.br/search?q=apartheid&oq=apartheid&gs_l=psy-ab.3...9945.13860.0.14748.2.2.0.0.0.0.175.276.0j2.2.0....0...1.1.64.psy-ab..0.0.0....0.N0x_pRrfzzc

[18]

 

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

LIMA JÚNIOR, José César Naves de. Manual de Criminologia. 2.ed. Salvador: JusPodium, 2015.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 4ª ed. Salvador: JusPodium, 2016.

MASSON, Cleber. Direito Penal, V. 1. 11. ed.,São Paulo: Gen, 2017.

SÁ, Alvino Augusto de; SHECARIA, Sergio Salomão; TANGERINO, Davi de Paiva

Costa.. Criminologia no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

 

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