Por Joacir Sevegnani - 10/02/2015
O modelo de atuação do fisco no Brasil ainda é essencialmente punitivo, reflexo da concepção enraizada de que as normas tributárias somente são cumpridas em razão do temor das sanções.
Inegavelmente as sanções desenvolvem um papel fundamental na manutenção do equilíbrio e harmonia das relações sociais. A sanção é ínsita à natureza do próprio Direito. Para que as normas sejam cumpridas pela sociedade, em muitas situações, a lei prescreve sanções que visam incentivar a observância das normas de conduta.
No âmbito do Direito Tributário, as sanções tributárias têm grande importância para garantir a concretização do dever fundamental de pagar tributos. Há mesmo entendimentos de que sem a prescrição de sanção pecuniária ou administrativa, ninguém recolheria ou pagaria tributos.
Essa é a opinião de Ives Gandra Martins, ao considerar que o tributo caracteriza-se como norma de rejeição social, exigindo necessariamente a estipulação de uma regra sancionatória para ser cumprida. Assim, no seu entender, quanto maior a sanção, menor será o seu nível de descumprimento. Contudo, experiências concretas comprovam que esse entendimento não se afigura integralmente verdadeiro.
Embora muitos contribuintes sejam naturalmente propensos a práticas tributárias lesivas ao erário público, não é um modelo de fiscalização estritamente punitivo e pautado por sanções elevadas que conduz à redução da evasão fiscal.
Como o demonstram Elliot Aronson e Eduardo Giannetti, a motivação para o cumprimento das normas estabelecidas pelo Estado não está adstrita apenas ao temor da sanção ou ao rigor da sua imposição. Este é apenas um dos fatores de indução, denominado pelos autores de “submissão”, em que o receio de ser submetido ao rigor da pena afasta a pretensa vontade de descumpri-la.
Num nível distinto, há uma parcela de indivíduos que observa as normas legais motivados por uma espécie de “identificação social”. Neste caso, as pessoas não praticam determinadas ações consideradas indevidas pela sociedade, para não receberem uma reprovação social. Enquanto os atos de desrespeito ao meio ambiente atingiram, em grande parte, esse nível de reprovação, as práticas explícitas de evasão fiscal, como não entregar documento fiscal aos consumidores, ainda são relativamente toleráveis e aceitas.
Por fim, tem-se um último nível em que a razão para cumprir as normas legais decorre de uma “internalização de valores”. Aqueles que atingiram esse grau de percepção não respeitam as leis pelo temor da punição ou da reprovação social, mas com base numa reflexão ética interior.
No campo da tributação, evidencia-se que a sanção atua de forma semelhante, ou seja, não é a única motivação para o pagamento de tributos, funcionando como medida necessária, quando o desejo de burla da norma tributária se funda meramente em interesses particulares, em detrimento do interesse público.
Com base nestas considerações, vislumbra-se que é possível e oportuno conferir ao fisco, mediante lei, a prerrogativa de atuar preponderantemente no controle e acompanhamento dos contribuintes, de modo que ao identificar indícios de descumprimento da obrigação tributária, antes do início da ação de fiscalização, ou mesmo durante o transcurso da ação fiscal, possa permitir-lhes que procedam ao saneamento de irregularidades, com o pagamento de multa moratória, quando for o caso.
Contudo, essa nova abordagem fiscal está suscetível a críticas que, em regra, funda-se em dois aspectos.
O primeiro, é que consoante o parágrafo único, do artigo 142, do Código Tributário Nacional, a atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional, o que impediria o agente do fisco de autorizar a regularização espontânea de eventual infração à legislação tributária pelo contribuinte.
Em relação a esta crítica, é pertinente destacar que a atividade administrativa é vinculada à lei, de modo que a responsabilidade funcional a que faz alusão o CTN é para os casos em que o agente fiscal agiu em desconformidade com o preceito legal. Assim, se a lei autoriza o fisco a permitir o saneamento de irregularidades, antes de iniciar o procedimento de fiscalização propriamente, não há que se cogitar em inobservância das normas legais que implicariam em responsabilidade funcional.
O segundo aspecto diz respeito à possibilidade de ser oportunizado, por lei, o direito de o contribuinte regularizar infrações eventualmente praticadas, com aplicação de penalidades de caráter meramente moratório, após o início da medida de fiscalização. Já é largamente conhecida a delimitação do artigo 138, do Código Tributário Nacional, estabelecendo que após o início de medida de fiscalização, encerra-se a fase da denúncia espontânea, de modo que o contribuinte fica impedido de sanar as irregularidades praticadas.
Entende-se que o limite temporal fixado neste dispositivo legal é norma direcionada ao contribuinte, visando impedi-lo de, após iniciada fiscalização, regularizar pendências e irregularidades a seu livre arbítrio. Entretanto, não há óbice que impeça o legislador ordinário de criar mecanismos diferenciados, mediante lei, facultando ao contribuinte, mesmo durante uma medida de fiscalização, regularizar inconsistências ou recolher os tributos devidos, com a aplicação de multa moratória.
Do ponto de vista da eficiência, essa nova abordagem do fisco evita o dispêndio de tempo com fiscalizações morosas e favorece a verificação de quantidades maiores de contribuintes. Com isso, aumenta a percepção de cumprimento das leis tributárias, o que contribui para a redução da concorrência desleal fomentada pela evasão fiscal.
Por fim, não se pode olvidar que as adoções de mudanças dessa natureza não dependem apenas da criação de mecanismos instrumentais e reestruturação do modelo jurídico vigente. É fundamental para transformar as antigas estruturas que a cultura do próprio fisco seja repensada, deixando de considerar-se como um órgão cuja missão é fundamentalmente aplicar sanções aos infratores, para transformar-se, sobretudo, em agente que atua na salvaguarda da arrecadação dos entes estatais. Este novo ambiente favorecerá a compreensão de que os tributos não são apenas uma obrigação legal imposta aos contribuintes, mas, especialmente um dever imprescindível para garantir a existência da vida em sociedade.
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Joacir Sevegnani é Mestre e Doutor em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI com dupla titulação pela Università di Perugia, Itália. Auditor Fiscal da Receita Estadual do Estado de Santa Catarina e Professor de Direito Tributário e Direito Constitucional no Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí – UNIDAVI.
__________________________________________________________________________________________________________________ Referências ARONSON, Elliot. O animal social. Tradução de Noé Gertel. São Paulo: IBRASA, 1979. GIANNETTI, Eduardo. Vícios privados, benefícios públicos?: A ética na riqueza das nações. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. MARTINS, Ives Gandra da Silva et al. O princípio da moralidade no direito tributário. 2. ed. atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, (Pesquisas tributárias. Nova série; n. 2). __________________________________________________________________________________________________________________ Imagem ilustrativo do post: Roaring lion Foto de: Tambako The Jaguar Disponível em: https://www.flickr.com/photos/tambako/494118044/ Sem alterações Licença para uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode __________________________________________________________________________________________________________________