É sabido que o volume de processos judiciais envolvendo a Fazenda Pública cresce vertiginosamente nos últimos anos. Dados extraídos do site da Procuradoria Geral do Estado de Santa Catarina[1] demonstram que, no ano de 2016, a Procuradoria Geral do Estado de Santa Catarina atuou em 66 mil novas ações em face do Estado de Santa Catarina. No ano anterior, havia atuado em 51 mil novas ações judiciais, o que deixa claro que, de um ano para outro, houve um aumento de cerca de 15 mil ações.
As denominadas demandas de massa são as responsáveis pela maior parte de tal quantitativo e se referem, na maioria, a litígios relacionados a políticas públicas (destaque para demandas visando ao fornecimento de medicamentos e outras prestações ligadas à área da saúde) e processos envolvendo discussões em torno de direitos de servidores públicos.
O excessivo volume de processos judiciais relacionados à Fazenda Pública, muitos deles versando sobre o mesmo tema, bem assim o fato de que o enfrentamento pontual dos litígios de massa não se mostra suficiente e eficaz, impõe que a Advocacia Pública busque soluções para a minimização da problemática em questão.
Na verdade, o assoberbamento do Judiciário demanda que a advocacia pública busque rever a presença do Estado em juízo e a forma de defesa do interesse público, bem assim o próprio papel do advogado público no exercício de suas funções.
Não se pode deixar de lembrar que a advocacia pública é constitucionalmente considerada como função essencial à Justiça, defendendo não o interesse do Governo, mas sim o do Estado. Exatamente por isso é que a atuação da advocacia pública não significa ir sempre contra toda e qualquer pretensão do administrado. Ao contrário, o compromisso da advocacia pública é a defesa intransigente do interesse público primário.
Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro[2]:
“O que a Constituição quis realçar, com a inclusão dessas carreiras no capítulo das “funções essenciais à Justiça”, foi a importância de todas na busca da Justiça, entendida no duplo sentido: a) Justiça como instituição, como sinônimo de Poder Judiciário, já que este não tem legitimidade para dar início às ações judiciais, decidindo os conflitos que são postos e nos limites postos pelo advogado, pelo promotor de Justiça, pelo advogado público, pelo defensor público; sem esses profissionais, a Justiça não é acionada; ela não existe; b) Justiça como valor, incluída no preâmbulo da Constituição entre os valores supremos de uma sociedade fraterna pluralista e sem preconceitos, e que consiste na “vontade constante de dar a cada um o que é seu” (justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi”).
Nesse contexto de enfrentamento das demandas de caráter repetitivo e de revisão da própria forma de se defender o interesse público é que surge a importância do papel do advogado público, titular de função essencial à justiça.
Obviamente que não existe um único caminho a ser seguido pela advocacia pública para o enfretamento das demandas de massa. Ao contrário, o caminho parece ser a conjugação das diversas ferramentas existentes, objetivando evitar o ajuizamento de novas demandas (atuação preventiva da Advocacia Pública) como também resolver eficientemente demandas de massa já ajuizadas. A atuação da Advocacia Pública no trato das demandas de massa deve se dar, portanto, tanto previamente ao ajuizamento da demanda, como também no curso de processos já instaurados.
No tocante à atuação preventiva, o primeiro ponto a ser considerado - e que ganhou especial relevo no Código de Processo Civil de 2015 - é a busca pela solução amigável dos conflitos.
Referido Código prevê expressamente que o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos (art. 3º, § 2º). Além disso, dispõe que a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por magistrados, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial (art. 3º, § 3º).
Mais adiante, no artigo 174, o diploma processual civil dispõe que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios criarão câmaras de mediação e conciliação, com atribuições relacionadas à solução consensual de conflitos no âmbito administrativo”.
Veja-se que a criação de tais câmaras é obrigatória e que seu objetivo é o de dirimir conflitos envolvendo órgãos e entidades da administração pública; avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de conciliação, no âmbito da administração pública; bem como promover, quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta.
A Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015, por sua vez, dispõe sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública, prevendo a criação de câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos no âmbito dos respectivos órgãos da Advocacia Pública para dirimir conflitos entre órgãos e entidades da administração pública; avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de composição, no caso de controvérsia entre particular e pessoa jurídica de direito público e, ainda, promover, quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta.
De acordo com a referida lei, o modo de composição e funcionamento das câmaras será estabelecido em regulamento de cada ente federado e, havendo consenso entre as partes, o acordo será reduzido a termo e constituirá título executivo extrajudicial.
Não há dúvida de que o enfrentamento das demandas de massa depende, antes de mais nada, de uma mudança na arraigada cultura do litígio, a qual deve ceder lugar para meios alternativos de resolução de conflitos, dentre os quais se destaca a autocomposição dos conflitos.
A busca por meios consensuais de resolução de conflitos não apenas contribui para reduzir a excessiva litigiosidade e todas as mazelas daí decorrentes como também para a própria realização da justiça, o que vai ao encontro da ideia de uma advocacia pública efetivamente cumpridora de seu papel de função essencial à justiça.
Também não se pode deixar de considerar que, atualmente, de acordo com o Novo Código de Processo Civil, houve uma mudança drástica em relação ao valor dos honorários advocatícios devidos nas causas em que restar vencida a Fazenda Pública. Enquanto na vigência do Código de 1973 tinha aplicação a fixação equitativa dos honorários advocatícios, podendo inclusive se dar em valor fixo e a critério do magistrado, a legislação processual civil atual estipula que os honorários sejam fixados dentro de percentuais mínimos e máximos, em regra sem possibilidade de o magistrado fixar a verba honorária consoante apreciação equitativa.
Tal alteração da legislação processual civil acaba por impactar sobremaneira nas condenações impostas à Fazenda Pública, posto que, em cada litígio, o Estado precisaria contabilizar um risco de ser condenado ao pagamento de honorários advocatícios de, no mínimo, 10% sobre o valor da condenação, do proveito econômico ou do valor da causa.
Logo, a solução consensual dos conflitos também representaria economia aos cofres públicos em decorrência do não pagamento de honorários advocatícios sucumbenciais.
Além desse primeiro ponto, a atuação preventiva da Advocacia Pública no enfrentamento das demandas de massa também se revela essencial no momento da elaboração das leis estaduais.
De acordo com o art. 4º, inciso VIII, da Lei Complementar Estadual nº 317, de 30 de dezembro de 2005 (Lei Orgânica da Procuradoria Geral do Estado de Santa Catarina), compete à Procuradoria Geral do Estado “manifestar-se nos projetos de lei encaminhados pelo Poder Executivo ao Poder Legislativo”.
Os advogados públicos possuem conhecimento efetivo das repercussões judiciais de determinados dispositivos legais, de forma que, ao analisarem determinado projeto de lei, haveria a possibilidade de serem detectadas disposições legais com potencial repercussão judicial negativa, ou seja, situações com aptidão de gerar futuras demandas de massa.
Afora a atuação preventiva acima abordada, há a necessidade de uma revisão na forma de atuação judicial da advocacia pública, na medida em que a atuação unicamente pontual nos litígios acaba por se mostrar ineficiente, além de gerar, muitas vezes, insegurança jurídica, já que casos iguais acabam sendo solucionados de maneira diferente.
Dentre os mecanismos processuais de atuação em face de demandas de massa, possui especial relevância o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), previsto no artigo 976 do Código de Processo Civil, quando presentes os seguintes requisitos: (a) efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito; (b) risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.
O grande benefício do referido incidente é que a tese jurídica será, nos termos do artigo 985 do diploma processual civil, aplicada: (a) a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região; (b) aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do tribunal, salvo revisão na forma do artigo 986.
O § 1o do artigo 985 estabelece, ainda, que, na hipótese de não ser observada a tese adotada no incidente, caberá reclamação.
O artigo 332 do Código de Processo Civil, por sua vez, determina que processos que versem sobre tema firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas poderão ser julgados liminarmente improcedentes, caso o pedido contrarie o entendimento firmado, independentemente da citação do réu. Com isso, a Fazenda Pública sequer seria citada, o que acaba por eliminar o litígio já em sua fase embrionária.
No intuito de fazer valer tal instrumento processual, faz-se necessário que os advogados públicos identifiquem as ações repetitivas cuja matéria ainda não esteja pacificada e nem possua recurso afetado, a fim de que seja requerida a instauração do IRDR sobre o tema.
Atualmente, por meio de consulta ao sítio do Tribunal de Justiça de Santa Catarina[3], foram identificados três incidentes de resolução de demandas repetitivas. O primeiro deles (Tema 1)[4] versando sobre a necessidade ou não de comprovação de hipossuficiência do autor de pleito de dispensação de medicamento ou terapia no âmbito da assistência à saúde, cujo mérito já foi julgado em 09/11/2016. O segundo (Tema 2)[5] trata da Incidência do Imposto de Renda sobre a verba recebida por policiais civis e militares do Estado de Santa Catarina denominada Indenização por Regime de Serviço Público Ativo – IRESA, prevista no § 1º do art. 6º da LCE n. 514/2013 e no § 2º do art. 6º da LCEn. 609/2013, tendo sido admitido em 08/11/2016, ainda não julgado. O terceiro (Tema 3)[6] objetiva que seja declarado que o ICMS relativo ao fornecimento de energia elétrica ao consumidor cativo tenha por base de cálculo o preço praticado na operação final promovida pela concessionária de distribuição, compreendendo os custos do uso do sistema de distribuição e transmissão. Referido incidente, entretanto, não foi admitido, em 26/10/2016.
Para que se obtenha êxito na utilização de tal incidente na resolução do problema das demandas repetitivas, cabe à advocacia pública não apenas identificar os temas passíveis de tal incidente e instaurar a referida medida processual, como também efetivar tal instauração assim que identificado que determinado tema se amolda às possibilidades do IRDR.
Além do IRDR, há, ainda, outros mecanismos processuais que se mostram eficazes e salutares para o enfrentamento das demandas repetitivas, alguns deles não necessariamente novos na processualística civil brasileira.
É o caso dos recursos repetitivos e do pedido de suspensão previsto no artigo Art. 4°, da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992, suspensão essa que pode, nos termos do § 8o do mencionado artigo, ser concedida em uma única decisão para liminares cujo objeto seja idêntico, além de poder ser estendida a liminares supervenientes, mediante simples aditamento do pedido original.
Portanto, o enfrentamento das demandas repetitivas depende de uma estratégia ampla, que envolve não apenas a atuação preventiva e a repressiva dos litígios, mas compreende a reflexão sobre o próprio papel da advocacia pública enquanto função essencial à justiça e ao Estado Democrático de Direito.
Notas e Referências:
[1] http://www.pge.sc.gov.br/index.php/imprensa/noticias/1865-retrospectiva-as-principais-acoes-e-realizacoes-da-procuradoria-durante-o-ano-de-2016
[2] Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. A Advocacia Pública como função essencial à Justiça. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-ago-18/interesse-publico-advocacia-publica-funcao-essencial-justica. Acesso em 14/03/2017.
[3] Disponível em: https://www.tjsc.jus.br/documents/10181/342784/Temas+Incidente+de+Resolu%C3%A7%C3%A3o+de+Demandas+Repetitivas+-+IRDR/98fab6a1-cfbc-4677-a81c-02818255285a. Acesso em 16/03/2017.
[4] Processo paradigma 0302355-11.2014.8.24.0054/50000.
[5] Processo paradigma 1000576-74.2016.8.24.0000.
[6] Processo paradigma 1001312-92.2016.8.24.0000.
Sandra Cristina Maia é Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Especialista em contratos empresariais pela UFPR e ESA/OAB/PR. Procuradora do Estado de Santa Catarina.
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