A acusação dos presos políticos em Angola

03/12/2015

Por Andrey Lucas Macedo Corrêa e Ana Miguel Gomes Regedor - 03/12/2015

O julgamento dos 17 ativistas presos em Angola desde o passado mês de Junho, encerrou já sua primeira semana. A coluna de hoje serve para refletir sobre a peça acusatória do Ministério Público (confira aqui) que busca a condenação dos indiciados pelos crimes de actos preparatórios para a prática de rebelião do número 1 do artigo 121 e pelo crime de atentado contra o Presidente da República ou outros membros de Órgãos de soberania, disciplinado pelo número 1 do artigo 23, ambos com referência ao artigo 28 da lei 23 de 2010 – Lei dos Crimes Contra a Segurança do Estado, além de outros “crimes” acessórios de cada um dos acusados.

Trata-se de uma peça acusatória de 16 páginas, que, sem dúvida, não consegue comprovar o cometimento dos delitos imputados aos 17 acusados, mas serve para demonstrar a faceta jurídica do regime de José Eduardo dos Santos e o desleixo dos advogados de acusação, em termos próprios de um romance surrealista.

Preliminarmente, a existência de uma peça tão simplória já fornece indícios de que se trata de um julgamento político[1], no qual não é necessária grande argumentação, apenas se busca transvestir para a lógica penal os interesses do regime.

Passando para o mérito da acusação, é interessante que, pela natureza da acusação e pelos princípios que conhecemos, ela passa a ideia de ser até uma peça de defesa. Afinal de contas, já inicia informando que os arguidos foram presos em flagrante delito quando participavam de um curso de formação de activistas em uma livraria.

Além de algumas acusações acessórias, o mérito da ação reside em um argumento que passa longe de qualquer discurso jurídico democrático, que, em tese, é a criminalização pela leitura de um livro que é, basicamente, um manual de instruções sobre como sair de uma ditadura para uma democracia[2] sem a adoção do combate armado. Mais além, no que diz respeito à validade dos métodos probatórios, a própria sustentação da acusação num livro publicado pela primeira vez em 2002 que se encontra agora disponível integralmente na internet, para a obtenção do qual não foi necessário um mandato parece-nos decretar a nulidade da prova que legitima o processo.

“Esta obra de Gene Sharp inspirou as chamadas revoluções nos países da Europa do Leste, países nórdicos, países africanos, como a Burkina Faso, Tunísia, Egito, Líbia e alguns países da América Latina, etc... que derrubaram os respectivos Governos e Presidentes e cujas consequências, de tão nefastas, deixaram os países atingidos completamente na desgraça, destruídos pelo vandalismo e pelas guerras que se seguiram”.

Para além do debate que é realizado, e no qual nos alinhamos, dos problemas pela importação de democracia nos moldes ocidentais por vários dos países citados acima, é importante perceber que isso não é justificativa para mitigar e limitar a organização livre de cidadãos para repensar a lógica política de Angola, que, por mais transvestida de um regime democrático, já é há anos uma ditadura personificada no presidente José Eduardo dos Santos.

A perversidade da situação também se prende com razões históricas. Também conhecido por ser o segundo Presidente da República há mais tempo no exercício das suas funções de todo o mundo[3], ‘Zédu’ está já há 34 anos no poder e chegou à presidência de Angola por decisão do Movimento ... (MPLA).

Basta verificar os dois primeiros artigos da Constituição Angolana e comparar com a existência de um julgamento de pessoas por estarem a ler e debater um livro para encontrar o quanto o discurso jurídico democrático pode servir como uma cortina de fumaça para sustentar um regime antidemocrático:

1. A República de Angola é um Estado Democrático de Direito que tem como fundamentos a soberania popular, o primado da Constituição e da lei, a separação de poderes e interdependência de funções, a unidade nacional, o pluralismo de expressão e de organização política e a democracia representativa e participativa.

2. A República de Angola promove e defende os direitos e liberdades fundamentais do Homem, quer como indivíduo quer como membro de grupos sociais organizados, e assegura o respeito e a garantia da sua efectivação pelos poderes legislativo, executivo e judicial, seus órgãos e instituições, bem como por todas as pessoas singulares e colectivas.

Sem falar na referência directa do artigo 40 da Constituição:

1. Todos têm o direito de exprimir, divulgar e compartilhar livremente os seus pensamentos, as suas ideias e opiniões, pela palavra, imagem ou qualquer outro meio, bem como o direito e a liberdade de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações.

Infelizmente, diante de toda essa questão, é surpreendente que os países mais próximos de Angola não se manifestem de forma crítica com relação ao regime de José Eduardo dos Santos. No caso do Brasil o capital financeiro e as relações espúrias de empresas (inclusive estatais) com Angola vedam as mãos do governo brasileiro para a situação política de Angola, um país que carrega tantas perspectivas de identidade com o Brasil e, paralelamente, muitos dos mesmos problemas.

Mas tudo isso serve, para além de promover a solidariedade para com os activistas presos e para com o povo de Angola que vive em condições sub-humanas, para refletirmos sobre o papel da democracia e da liberdade de expressão. Serve para pensarmos se um Estado Democrático de Direito juridicamente colocado consegue exprimir seus princípios na realidade política posta. Serve para nessa dissociação do Estado para com a Sociedade, com o primeiro tentando moldar a segunda com a redução da liberdade de expressão em prol do aumento da institucionalidade. A sociedade não cabe na institucionalidade.

Para finalizar, Carlos Drummond de Andrade refletiu também a resistência necessária frente às imposições da institucionalidade, do Estado polícia, da ditadura...

Intimação

Abre em nome da lei. Em nome de que lei? Acaso lei sem nome? Em nome de que nome cujo agora me some se em sonho o soletrei? Abre em nome do rei. 

Em nome de que rei é a porta arrombada para entrar o aguazil que na destra um papel sinistramente branco traz, e ao ombro o fuzil? 

Abre em nome de til. Abre em nome de abrir, em nome de poderes cujo vago pseudónimo não é de conferir: cifra oblíqua na bula ou dobra na cogula de inexistente frei. 

Abre em nome da lei. Abre sem nome e lei. Abre mesmo sem rei. Abre sozinho ou grei. Não, não abras; à força de intimar-te repara: eu já te desventrei. 

Carlos Drummond de Andrade 

Boa semana a todos!


Notas e Referências:

[1] No sentido estrito

[2] O livro é um bom ensaio, mas nem pode ser considerado um livro com ideologia subversiva para os nossos regimes ditos democráticos, realmente o livro só é relevante em uma ditadura de moldes clássicos.

[3] Seguido por Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, presidente da Guiné Equatorial, que lhe leva pouco mais de um mês de vantagem.


Andrey Lucas Macedo CorrêaAndrey Lucas Macedo Corrêa é Bacharelando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia-UFU com período de mobilidade internacional na Universidade de Coimbra-Portugal. Bolsista de iniciação científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq e bolsista de mobilidade internacional pela UFU. Pesquisador do Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados – LAECC/PPGD-UFU. .


Ana Miguel Gomes Regedor

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Ana Miguel Gomes Regedor é Licenciada em Direito pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direitos Humanos e Democracia pelo European Inter-University Centre for Human Rights and Democratisation (EIUC).

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Imagem Ilustrativa do Post: ativistas presos em Angola


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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