A ação penal pública e o Princípio da indivisibilidade

15/09/2020

Em inúmeros acórdãos do Egrégio Supremo Tribunal Federal, encontramos a afirmativa “de que o princípio da indivisibilidade da ação penal não se aplica à ação penal pública” (RHC 61.928, DJ de 01.02.85, p. 469).

No Agravo Regimental nº 99.303-7, a 1ª Turma do Excelso Pretório rejeitou nulidade arguida, através do seguinte argumento:

“Ação penal pública. Princípio da indivisibilidade (art. 48 do Cód. Proc.Penal). Diz respeito às queixas (em crime de ação privada) e não aos de ação pública, pois o Ministério Público pode, a qualquer tempo, denunciar os demais autores do crime, quando identificados e localizados (DJ de 01.02.85)”.

Data venia, embora estejam corretas tais decisões ao refutarem a alegação de nulidade, parece-nos que a questão não está bem posta, sob o aspecto doutrinário.

Não resta dúvida inexistir qualquer vício na relação processual penal em decorrência da exclusão da denúncia de um determinado indiciado, motivo pelo que, na parte conclusiva, estamos de pleno acordo com os eminentes Ministros.

Surgindo novas provas (Súmula nº 524), deverá o Ministério Público aditar a denúncia para incluir no processo o indiciado anteriormente excluído.

 Nestes casos, tal aditamento equivale a um desarquivamento do que restou arquivado expressa ou implicitamente. Veja-se nosso trabalho intitulado Arquivamento e Desarquivamento do Inquérito Policial.

Entretanto, fazemos reparo aos próprios fundamentos destas decisões. Vale dizer, não nos parece correta a assertiva de que a ação penal pública seja divisível, diferentemente da ação privada.

Na verdade, somos que a ação pública é tão indivisível quanto a ação privada, apenas a forma de explicitar o princípio e fiscalizá-lo tem uma sistemática diferente no Código de Processo Penal.

Tendo em vista o princípio da oportunidade da ação penal privada, tornou-se imperativo ao legislador regular a matéria de forma expressa no art. 48 do Código de Processo Penal, impedindo que o querelante utilize-se do direito de ação de forma discriminatória, em contraste com os fins colimados pela lei ao outorgar-lhe tal legitimação extraordinária.

Assim, em sendo facultativa a ação privada, correto andou o legislador ao tornar claro e límpido o princípio da indivisibilidade, criando mecanismos para o seu controle (arts. 45 e 48 do Cód. Proc. Penal).

Entretanto, a ausência de dispositivo idêntico em relação à ação pública não pode levar jamais à conclusão de que ela seja divisível, mormente em face da combinação dos arts. 77, inc. II, e 79 do Código de Processo Penal.

Pode-se afirmar, sem medo de errar, que também a ação penal pública é indivisível.

Neste particular, o sistema do código se apresenta bastante lógico. Na realidade, vigorando o princípio da obrigatoriedade da ação pública, desnecessário seria dizer que ela deve ser proposta em face de todos os autores e partícipes da infração penal.

Em outras palavras, o princípio da indivisibilidade está abrangido ou compreendido no princípio da obrigatoriedade.

A indivisibilidade, destarte, é um consectário lógico da obrigatoriedade de agir. É intuitivo.

Tal aspecto sistemático não passou despercebido ao arguto e renomado Professor Hélio Tornaghi, consoante se vê do trecho abaixo transcrito:

Indivisibilidade. O direito de ação é direito de pedir ao Estado que faça justiça, não que seja instrumento de vindita. Entendeu a lei que pedir punição de uns e não de outros ofensores não seria solicitar justiça, sim exercer vingança. Estabeleceu, então, a regra da indivisibilidade da ação privada (Código Proc. Penal, arts. 48 e 49). Quanto à pública, não havia necessidade de preceito expresso, já que o Ministério Público não pode renunciar ao exercício da ação.” (Instituições de Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 1977, 2ª ed., vol. 2º, p. 357).

Na esteira desta boa doutrina, também se manifesta o ilustre Professor Fernando da Costa Tourinho Filho, in verbis:

“A ação penal, seja pública ou privada, é indivisível, no sentido que abrange todos aqueles que cometeram a infração. Quanto à ação privada, há, a respeito, texto expresso (CPP, art. 48). E isto por uma razão muito simples: se a propositura da ação constitui um dever, é claro que o Promotor não pode escolher contra quem ela deva ser proposta. Ela deve ser proposta contra todos aqueles que cometeram a infração. Em se tratando de ação privada, porque regida pelo princípio da oportunidade, poder-se-ia pensar que a vítima teria o direito de promover a ação penal contra quem quisesse, isto é, poderia escolher dentre os culpados o que deveria ser processado. Daí a regra do art. 48 do estatuto processual penal.” (Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 1982, 6ª ed., vol. 1º, p. 287).

 

Em sendo assim, resta examinar como se realiza a fiscalização da indivisibilidade da ação penal pública e qual a consequência de seu descumprimento.

Fácil responder a estas indagações. Levando em linha de conta que o Ministério Público, antes de descumprir o princípio da indivisibilidade, está vulnerando a obrigatoriedade da ação penal pública, outro caminho não resta ao Juiz senão o de aplicar a regra do art. 28 do Código de Processo Penal, (na redação primitiva, ainda em vigor por decisão do S.T.F.), remetendo traslado do inquérito ou das peças de informação ao Procurador-Geral, o qual poderá aditar a denúncia ou insistir no arquivamento em relação ao não denunciado, tenha o Promotor de Justiça motivado ou não o seu procedimento anterior. In casu, não incluir na denúncia um indiciado é o mesmo que requerer o arquivamento em relação a ele.

Neste sentido é a sempre autorizada lição do Mestre José Frederico Marques, Tratado de Direito Processual Pena, São Paulo, 1980, Saraiva, 2º vol., p. 144.

Caso o Juiz não haja discordado da não inclusão de um indiciado, aplicando o art. 28, estaremos diante de um arquivamento em relação ao excluído, motivo pelo que somente poderá ser denunciado se presentes os requisitos da Súmula nº 524 do Supremo Tribunal Federal, conforme adiantamos inicialmente.

De uma forma ou de outra, uma coisa é certa: a não inclusão de um indiciado na denúncia, seja expressa ou implicitamente, jamais poderá viciar uma relação processual instaurada por denúncia apta. Não teria qualquer sentido que a impunidade de um indiciado acarretasse a impunidade de todos os outros.

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura