Tratamos, nos textos precedentes, da relação jurídica que se prolonga no tempo como elemento fundante das ações modificatórias. No presente, iremos analisar o enunciado n. 239 da Súmula do STF, que teve a sua aplicabilidade distorcida por um longo período. O pano de fundo da produção sumular, mais uma vez, é uma relação tributária.
A discussão sobre a eficácia da decisão proferida dentro do âmbito de uma relação tributária continuativa surgiu no STF a partir de um caso envolvendo o Imposto sobre a Renda do período de 1927. Entrementes, somente com o julgamento do agravo de petição n. 11.227, da relatoria do Min. Castro Nunes, a discussão ganhou novos contornos que posteriormente foram ratificados pelo enunciado da súmula do tribunal.
O precedente foi firmado em uma ação de execução fiscal para cobrança do Imposto sobre a Renda referente ao exercício de 1936. Em sua defesa, a contribuinte argumentou que já havia sido executada anteriormente em relação ao ano-calendário de 1934 e, naquele processo, logrou êxito em afastar a exigência do imposto pelo mesmo motivo da discussão atual. Logo, na visão da executada, seria incabível uma nova cobrança do mesmo tributo em relação aos exercícios subsequentes, pois o fundamento da ação anterior teria feito coisa julgada e deveria ser respeitado pela Fazenda Nacional.[1]
Diante do caso, o pleno do STF proferiu decisão no seguinte sentido:
Ementa: Executivo fiscal - Impôsto de renda sobre juros de apólices - Coisa julgada em matéria fiscal. É admissível em executivo fiscal a defesa fundada em “coisa julgado” para ser apreciada pela sentença final. Não alcança os efeitos da coisa julgada em matéria fiscal, o pronunciamento judicial sobre nulidade do lançamento do impôsto ou da sua prescrição referente a um determinado exercício, que não obsta o procedimento fiscal nos exercícios subseqüentes.[2]
Assim, em 13 de dezembro de 1963, o mesmo órgão aprovou o enunciado nº 239 com a seguinte redação: “Decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em relação aos posteriores.”[3]
No precedente citado, a relação material, sem dúvida, era de natureza continuativa, pois que a incidência do Imposto sobre a Renda se repetia para os períodos subsequentes, mas os contornos delimitados no processo continham a feição estática, já que se tratava de execução fiscal para cobrança do Imposto sobre a Renda de determinado exercício e, na defesa, apenas se buscou o cancelamento da cobrança. Por isso, não seria cabível que os motivos da decisão anterior atingissem os demais períodos.
O entendimento manifestado na súmula, entretanto, foi, por muitos anos, objeto de equivocada interpretação por parte dos Tribunais Superiores, especialmente pelo STJ, que ampliou a hipótese de aplicação da súmula para outras demandas, inclusive aquelas em que a sentença declara a existência ou inexistência da relação jurídica tributária.[4] A má aplicação do enunciado gerou problemas para os jurisdicionados, porquanto, diversas sentenças, nas quais a relação jurídica de direito material projetava a sua eficácia para o futuro, tiveram sua eficácia sustada indevidamente com fundamento na orientação construída pela súmula.
Aliás, salienta-se que, desde 14 de agosto de 1981, o STF limitava o alcance daquele verbete aos exatos termos fáticos para os quais fora construído. Isto é, o entendimento somente se aplica quando a ação, apesar de tratar de direito material com eficácia continuativa, refira-se apenas a determinado período de apuração ou lançamento. No voto proferido no recurso extraordinário n. 93.048, o Min. Rafael Mayer criou a distinção entre o plano do direito tributário formal (onde é aplicável o enunciado n. 293) e o plano do direito tributário material[5].
Somente a partir de 2006, o STJ modificou a sua jurisprudência para atribuir a necessária delimitação dos casos em que o enunciado pode ser aplicado.
Por tudo isso, o enunciado n. 239 do STF se aplica exclusivamente aos casos em que o pedido deduzido no processo se refira a determinado ou determinados períodos de apuração. Em contrapartida, para que o comando sentencial projete a sua eficácia para o futuro, deve-se conjugar uma relação material de trato continuado com relação processual que contenha pleitos que alcancem fatos futuros, como o pedido de existência ou inexistência de relação jurídica tributária.
No próximo texto, abordaremos a questão da mudança de precedente como possível modificação do estado de direito para os fins da ação em análise.
Notas e Referências
[1] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Agravo de Petição nº 11.227. Relator. Min. Castro Nunes. DJ: 10/02/1945. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 28/01/2011.
[2] Idem.
[3] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Enunciado nº 239 da Súmula. DJ: 13/12/1963. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 28/01/2011.
[4] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial nº 599.764. Relator Min. Luiz Fux. DJ: 01/07/2004. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 28/01/2011. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial nº 686.058. Relator Min. Teori Zavascki. DJ: 16/11/2006. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 28/01/2011.
[5] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário nº 93.048. Relator Min. Rafael Mayer. DJ: 14/08/1981. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 28/01/2011.
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