A ABSOLVIÇÃO DO ACUSADO NO PROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

12/07/2018

 

O (grande) lapso temporal envolvendo demandas criminais em todo o país não é novidade. Exemplificativamente, o relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de 2017 constatou que a Justiça Estadual do Brasil leva, em média, 02 (dois) anos[1] para proferir sentença em um processo de 1ª instância. Já a Justiça Federal, em média, leva 02 (dois) anos e 01 (um) mês.

No que diz respeito especificamente à Justiça criminal, de acordo com referido relatório, no “ano de 2016, ingressaram no Poder Judiciário 3 milhões de casos novos criminais, sendo 1,9 milhão (62,9%) na fase de conhecimento de 1º grau, 443,9 mil (15%) na fase de execução de 1º grau, 18,4 mil (0,6%) nas turmas recursais, 555,2 mil (18,7%) no 2º grau e 80,6 mil (2,7%) nos tribunais superiores”.

De acordo com a página 142 do Relatório, em que houve a análise do tempo médio de tramitação dos processos criminais baixados na fase de conhecimetno do 1º grau, por tribunal, é possível constatar que, no âmbito Estadual, a média de tramitação é de 03 (três) anos e 02 (dois) meses enquanto que, na esfera Federal, o tempo médio é de 02 (dois) anos e 04 (quatro) meses.

Importante consignar, inicialmente, que a duração média dos processos criminais, seja na seara Federal, seja na seara Estadual, tem melhorado quantitativamente graças ao esforço conjunto dos agentes estatais, tudo isso a implementar, na medida do possível, a duração razoável do processo, postulado presente no inciso LXXVIII, do art. 5º, da Constituição Federal de 1988, cujo acréscimo se deu através da Emenda Constitucional nº 45, de 2004.

Entretanto, em que pese a melhoria neste aspecto, é possível, na medida em que se caminha democraticamente, aperfeiçoar o sistema processual penal?

Para nós, sim. O início da resposta perpassa por uma das palavras-chave deste artigo que, assim como na vida em sociedade, norteia nossas ações, qual seja: o tempo.

O tempo possui relevância jurídica na esfera processual sendo responsável, muitas vezes, por aflições dos acusados no processo penal. Sobre os efeitos negativos do tempo, Sebastião Raul Moura Júnior[2] descreve que “não basta apenas o lapso temporal adequado e compatível com a realidade do caso concreto, deve-se analisar, também, o aspecto subjetivo do acusado, o que só será possível através de uma mentalidade nova e sensível de um julgador engajado nas causas que lhe são postas”.

Desta perspectiva, surge mais um questionamento: ao invés de indagar sobre qual é ou seria o tempo razoável do trâmite processual, não seria mais correto indagar se esse tempo, independentemente de sua razoabilidade a priori, respeita, em toda a sua plenitude, a Dignidade da Pessoa Humana na figura do acusado?

                        Esta questão relativa à mora processual, especialmente em ações penais públicas condenatórias, é extremamente preocupante em nosso País, particularmente porque aqui se banalizou a prisão provisória e, portanto, mantém-se com bastante frequência preso o réu, quando ainda não definitivamente julgado e condenado. O que deveria ser uma excepcionalidade, passou a ser uma banalidade. Desgraçadamente!

                        Ary Franco já pontificava há tempos que “a questão relativa ao prazo de encerramento da instrução criminal sempre foi preocupação máxima dos poderes públicos, por isso mesmo que é mister acautelar os interesses do réu, que não pode nem deve, como elemento da sociedade, ficar indefinidamente à espera de que os órgãos da sociedade que integram o Poder Judiciário ultimem a sua situação de acusado, para declará-lo inocente, ou não.[3]

                        Outro antigo processualista, Câmara Leal, já indicava como causa justificadora para a concessão de habeas corpus quando, estando o réu preso em flagrante ou preventivamente, não é o processo julgado dentro do prazo legal, exceto se ocorrer legítimo impedimento.[4]

                        Vicente de Azevedo, outro saudoso jurista, enfrentando esta mesma questão, alertava que acaso não concedido, em tais hipóteses, o habeas corpus acabaria “o réu cumprindo a pena cominada em abstrato na lei penal antes de julgado[5]...

                        Aliás, conta-se que Carl Friedrich Gustav Seidler, um viajante suiço-alemão que esteve no Brasil entre 1825 e 1826, escreveu em 1837 o seguinte: “Mete-se num buraco de cachorro um cidadão sob a suspeita de haver praticado um crime, e só muito mais tarde se verifica sua culpa”. Depois, afirmava que “entre nós (brasileiros) não se tem amor à justiça.”[6]

                        A doutrina mais recente, por sua vez, é uníssona, bastando ser citados, por todos, Frederico Marques e Tourinho Filho, respectivamente:

                        “A manutenção do réu sob carcer ad custodiam não pode, em regra, exceder o prazo legal. (...) No Direito inglês é observado, com sumo rigor, o preceito que veda manter-se preso o réu, demoradamente, sem julgamento definitivo. Entre nós, isso nem sempre acontece, o que é injusto e iníquo.”[7] É o que vimos neste processo.

                        “Se o réu não pode ser culpado pela inobservância do prazo, é o habeas corpus o meio idôneo para pôr cobro à coação cautelar, por não se conter esta nos limites temporais em que a lei permite a vulneração da incoercibilidade no âmbito da liberdade de ir e vir.”[8]

                        Observamos que a Emenda Constitucional nº. 45/04 acrescentou mais um inciso ao art. 5º. da Constituição Federal, estabelecendo expressamente que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.” (LXXVIII).

                        Esta questão da demora no julgamento de um processo criminal, mormente quando se trata de réu preso, é causa de preocupações inclusive na doutrina alienígena, a ponto de estar expressamente consignado no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos firmado em Nova York, em 19 de dezembro de 1966 e promulgado pelo Governo brasileiro através do Decreto nº. 592/92, a seguinte cláusula:

                        “3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, a, pelo menos, as seguintes garantias:

(...) “c) De ser julgado sem dilações indevidas” (art. 14, 3, c).

                        Igualmente lê-se no Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969, promulgado entre nós pelo Decreto nº. 678/92:

Art. 8º. – Garantias Judiciais

                        “1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente...” (grifo nosso).

                        Tais normas já se incorporaram ao nosso Direito Positivo, devendo ser obrigatoriamente observadas pelos nossos juízes e Tribunais, por força do disposto no art. 5º., § 2º., da Constituição Federal:

                        “A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, adotada no Brasil através do Dec. 678/92, consigna a ideia de que toda pessoa detida ou retida tem o direito de ser julgada dentro de um prazo razoável ou ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo.” (Superior Tribunal de Justiça – 5ª. Turma – Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº. 5239 - Relator Ministro Edson Vidigal – j. 7.5.96 – DJU 29.9.97, p. 48.228).

                        No mesmo sentido, confira-se a Convenção Europeia para salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais, art. 6º., 1. Na atual Carta Magna espanhola, art. 24, 2, temos: “Asimismo, todos tienen derecho (...) a un proceso público sin dilaciones indebidas y con todas las garantías...” (grifo nosso). Do mesmo modo a VI Emenda à Constituição americana: “Em todas as causas criminais, o acusado gozará do direito a um juízo rápido e público...” É o direito ao speedy trial.

As reflexões aqui postas, portanto, não pretendem refutar tudo o que está sendo feito, se não apontar para possibilidades processuais geradoras de maior efetividade ao sistema penal.

Sobre a segunda palavra-chave deste estudo (efetividade do sistema penal), ao lado desse e de tantos outros dados, segue perante a Câmara dos Deputados projeto para o novo Código de Processo Penal[9].

Em suma, foi formada Comissão Especial destinada a proferir parecer ao Projeto de Lei nº 8045, de 2010, do Senado Federal, que trata do "Código de Processo Penal", revogando, por conseguinte o decreto-lei nº 3.689, de 1941, alterando os Decretos-lei nº 2.848, de 1940; 1.002, de 1969; as Leis nº 4.898, de 1965, 7.210, de 1984; 8.038, de 1990; 9.099, de 1995; 9.279, de 1996; 9.609, de 1998; 11.340, de 2006; 11.343, de 2006), e apensado ao PL804510.

Nesta perspectiva, tomando-se por base o último andamento do feito na Câmara dos Deputados, datado de 13/06/2018[10], consistente na apresentação do Parecer do Relator (PRL1 PL 804510), do Deputado Federal João Campos, será possível a verificação de como a terceira palavra-chave dessa reflexão tem sido tratada, qual seja: absolvição lato sensu. Para isso, será necessário explorar todas as menções à essa palavra-chave no projeto de novo Código de Processo Penal.

No art. 43 do substitutivo foi descriminado que no caso de não oferecimento ou rejeição da denúncia, ou ainda no de absolvição, é facultado ao interessado, após o arquivamento definitivo do inquérito ou do trânsito em julgado da sentença, requerer a retirada da identificação fotográfica do inquérito ou do processo, desde que apresente provas de sua identidade civil.

No art. 96, caput, é afirmado que ao assistente será permitido propor meios de prova, formular perguntas às testemunhas, à vítima e ao acusado, requerer medidas cautelares reais, participar dos debates orais, formular quesitos ao exame pericial, requerer diligências complementares ao final da audiência de instrução, apresentar memoriais e arrazoar os recursos interpostos pelo Ministério Público ou por ele próprio, nas hipóteses de absolvição, absolvição sumária, impronúncia ou de extinção da punibilidade.

No art. 104, que trata sobre os direitos da vítima, o inciso V, alínea “d”, dispõe que deverá a vítima ser comunicada da condenação ou absolvição do acusado. Por sua vez, o art. 299 dispõe que não sendo hipótese de absolvição sumária, extinção da punibilidade, suspensão do processo decorrente de citação por edital ou não apresentação de resposta escrita pelo réu, o juiz designará dia e hora para a instrução ou seu início em audiência, a ser realizada no prazo máximo de noventa dias, determinando a intimação do órgão do Ministério Público, do defensor ou procurador e das testemunhas que deverão ser ouvidas.

O art. 340, caput, disciplina que aberta a audiência, será dada a palavra ao defensor para responder à acusação, após o que o juiz receberá, ou não, a denúncia. Havendo recebimento, e não sendo o caso de absolvição sumária ou de extinção da punibilidade, poderá ser oferecida proposta de suspensão condicional do processo. Não aceita a proposta, serão ouvidas a vítima e as testemunhas de acusação e defesa, interrogando-se a seguir o acusado, se presente, passando-se imediatamente aos debates orais e à prolação da sentença.

Já o art. 346, dispondo sobre o procedimento da ação penal originária, afirma que, apresentada a resposta, o relator designará dia para que o tribunal delibere sobre o recebimento da denúncia ou da queixa, se não for o caso de extinção da punibilidade ou de absolvição sumária, quando tais questões não dependerem de prova, nos limites e termos em que narrada a peça acusatória.

A seção II, do capítulo VI, trata sobre as decisões de pronúncia, impronúncia, absolvição sumária e desclassificação.  O art. 360 dispõe que, da sentença de absolvição sumária caberá apelação.

Na seção XIV, relativa a sentença no Tribunal do Júri, o art. 434, II, disciplina que o juiz presidente, no caso de absolvição, mandará colocar em liberdade o acusado, se por outro motivo não estiver preso, revogará as medidas restritivas provisoriamente decretadas e imporá, no caso de absolvição imprópria, a medida de segurança cabível.

O art. 450 traz importante mandamento ao dispor que o juiz proferirá sentença condenatória, nos estritos limites da peça acusatória. Manifestando-se o Ministério Público pela absolvição, não poderá o juiz condenar nem reconhecer agravante não alegada ou causa de aumento não imputada.

O art. 451 dispõe sobre as causas que geram a absolvição do acusado após a instrução, senão vejamos: I - estar provada a inexistência do fato; II - não haver prova da existência do fato; III - não constituir o fato infração penal; IV - estar provado que o réu não concorreu para a infração penal; V - não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal; VI - existirem circunstâncias que excluam a ilicitude ou que isentem o réu de pena (arts. 20 a 23, 26 e 28, § 1°, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência; VII - não existir prova suficiente para a condenação.

No parágrafo único, inciso III, do referido artigo, o Juiz deverá aplicar a medida de segurança no caso de absolvição imprópria.

O art. 513, parágrafo único dispõe que a apelação da acusação sobre a valoração das provas não poderá resultar em reforma da absolvição, mas, se for o caso, somente em sua anulação.

Já o parágrafo único, do art. 514, disciplina que não é passível de efeito suspensivo a apelação de decisão que impugna a absolvição ou de outros recursos ou ações que busquem, direta ou indiretamente, manter medidas cautelares.

O art. 609, ao tratar sobre quebramento de fiança, dispõe em seu parágrafo segundo que no caso de absolvição, o valor será integralmente devolvido a quem tenha prestado fiança.

O art. 646 disciplina que a indisponibilidade cessará automaticamente se a ação penal não for proposta no prazo de cento e vinte dias após a decretação e nas hipóteses de extinção da punibilidade ou absolvição do réu.

Na hipótese de absolvição, nos moldes do art. 660, a quantia apurada em leilão, que será depositada em conta judicial remunerada, será levantada após a sentença absolutória.

O art. 735 trata, no caput, sobre a possibilidade do Estado requerente solicitar quaisquer medidas assecuratórias admitidas pela lei brasileira através do pedido passivo de auxilio direto. No parágrafo segundo desse artigo, existe disposição no sentido de que a repatriação antecipada é condicionada a caução e ao compromisso de retorno dos bens, direitos ou valores, na hipótese de eventual de absolvição.

Explorada a aparição do termo absolvição lato sensu no novo CPP, importante analisar especificamente a aparição da espécie absolvição sumária.

O art. 292, I, traz importante disposição no sentido de que caberá ao magistrado, a qualquer tempo, absolver sumariamente o acusado. Além disso, no inciso III, dispõe que igualmente ocorrerá a extinção do processo, com resolução de mérito, em qualquer tempo e grau de jurisdição, quando ocorrer o julgamento antecipado do mérito no procedimento sumário.

O art. 300, por sua vez, disciplina que, decorrido o prazo de resposta, prescindindo da fase de instrução, o acusado será absolvido sumariamente caso seja reconhecida a existência de: I - causa excludente da ilicitude do fato; II - causa excludente da culpabilidade, salvo quando cabível a imposição de medida de segurança; III - atipicidade do fato, nos termos e limites em que exposto na denúncia.

Nota-se, inicialmente que não há menção expressa e específica a outra possibilidade de absolvição sumária se não aquela na qual não houve o início da instrução, tornando difícil, na prática, a constatação e efetivação da absolvição sumária ao ser iniciada/finalizada, por exemplo, a oitiva das testemunhas de acusação, mesmo diante da cláusula genérica dispondo sobre a qualquer tempo e grau de jurisdição presente no art. 292.

Ademais, o julgamento antecipado de mérito, nos moldes do art. 292, III, somente será possível, em tese, nos delitos que permitam o processamento mediante o procedimento sumário.

O art. 308 dispõe que caberá o requerimento do julgamento antecipado de mérito e a aplicação imediata da pena nos crimes que não estejam submetidos ao procedimento sumaríssimo e cuja sanção máxima cominada não ultrapasse oito anos.

Diante de todo o arcabouço normativo trazido, juntamente com os tempos de tramitação médios dos processos criminais na primeira instância, seja na esfera federal, seja na esfera estadual e atentos não apenas à perspectiva daquele que será condenado como, e principalmente, daquele que, em que pese estar respondendo a uma ação penal, não será condenado, por que não ampliar as hipóteses de absolvição presentes no art. 451 para antes do encerramento da instrução penal?

A seguinte indagação (e consequente irresignação) pode ser visualizada com o seguinte exemplo: ação penal envolvendo 10 (dez) ou mais acusados, oitiva das testemunhas da acusação não apresentou qualquer elemento para condenação, muito menos razões para manter a ação penal em face de 3 (três) acusados.

Seria proporcional/razoável manter a marcha processual em face dessas três pessoas, ensejando maiores custos para a máquina judiciária (com intimações de testemunhas e dos próprios acusados, maior número de audiências, por exemplo) e para os próprios acusados (custos maiores com advogados, deslocamentos, etc)?

Para nós, não. Em sentido contrário, a disposição expressa a respeito da absolvição quando encerrada a produção probatória por parte da acusação permite aperfeiçoar o sistema processual penal dentro da marcha democrática citada linhas acima.

Não apenas isso, a presente reflexão permite o respeito à dignidade da pessoa humana que, muitas vezes alçada a condição de acusada, se vê obrigada a responder a todo um processo penal que, encerrada a produção probatória por parte da acusação, já não contemplaria o binômio geral de necessidade-utilidade, ensejando severos malefícios sociais (estigmatização, por exemplo) e pessoais (afetação de sua psique, desdobramentos nas esferas familiares e profissionais, etc).

Fora isso, do ponto de vista estatístico, cuja incidência não pode ser desconsiderada, a absolvição de acusados na hipótese citada acima permite o aumento de processos baixados.

                        Para finalizar, é preciso que se atente para a necessidade premente de reforma do nosso CPP. Como se sabe, o atual código surgiu em pleno Estado-Novo[11], traduziu de certa forma a ideologia de então, mesmo porque “las leyes son e deben ser la expresión más exacta de las necesidades actuales del pueblo, habida consideración del conjunto de las contingencias históricas, en medio de las cuales fueron promulgadas” (grifo nosso).[12] À época tínhamos em cada Estado da Federação um Código de Processo Penal, pois desde a Constituição Republicana a unidade do sistema processual penal brasileiro fora cindida, cabendo a cada Estado da Federação a competência para legislar sobre processo, civil e penal, além da sua organização judiciária.

                        Segundo Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “a questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitório. (...) Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de Mussolini, Vincenzo Manzini, camicia nera desde sempre, foi quem escreveu o projeto do Codice com a cara do regime (...) ”[13]

                        Como notara o mestre Frederico Marques, “o golpe dado na unidade processual não trouxe vantagem alguma para nossas instituições jurídicas; ao contrário, essa fragmentação contribuiu para que se estabelecesse acentuada diversidade de sistemas, o que, sem dúvida alguma, prejudicou a aplicação da lei penal.[14]

                        Até que em 03 de outubro de 1941 promulgou-se o Decreto-Lei nº. 3.689, que entraria em vigor a partir de 1º. de janeiro do ano seguinte; para resolver principalmente questões de natureza de direito intertemporal, promulgou-se, também, o Decreto-Lei nº. 3.931/41, a Lei de Introdução ao Código de Processo Penal.

                        Este Código, elaborado, portanto, sob a égide e “os influxos autoritários do Estado Novo”, decididamente não é, como já não era “um estatuto moderno, à altura das reais necessidades de nossa Justiça Criminal”, como dizia Frederico Marques. Segundo o Mestre paulista, “continuamos presos, na esfera do processo penal, aos arcaicos princípios procedimentalistas do sistema escrito (...) O resultado de trabalho legislativo tão defeituoso e arcaico está na crise tremenda por que atravessa hoje a Justiça Criminal, em todos os Estados Brasileiros. (...) A exemplo do que se fizera na Itália fascista, esqueceram os nossos legisladores do papel relevante das formas procedimentais no processo penal e, sob o pretexto de por cobro a formalismos prejudiciais, estruturou as nulidades sob princípios não condizentes com as garantias necessárias ao acusado, além de o ter feito com um lamentável confusionismo e absoluta falta de técnica.”[15]

                        Assim, se o velho Código de Processo Penal teve a vantagem de proporcionar a homogeneidade do processo penal brasileiro, trouxe consigo, até por questões históricas, o ranço de um regime totalitário e contaminado pelo fascismo, ao contrário do que escreveu na exposição de motivos o Dr. Francisco Campos, in verbis: “Se ele (o Código) não transige com as sistemáticas restrições ao poder público, não o inspira, entretanto, o espírito de um incondicional autoritarismo do Estado ou de uma sistemática prevenção contra os direitos e garantias individuais.”

                        É bem verdade que ao longo dos seus 60 anos de existência, algumas mudanças pontuais foram marcantes e alvissareiras como, por exemplo, o fim da prisão preventiva obrigatória com a edição das Leis de nºs. 5.349/67, 8.884/94, 6.416/77 e 5.349/67; a impossibilidade de julgamento do réu revel citado por edital que não constituiu advogado (Lei nº. 9.271/96); a revogação do seu art. 35, segundo o qual a mulher casada não poderia exercer o direito de queixa sem o consentimento do marido, salvo quando estivesse separada dele ou quando a queixa contra ele se dirigisse (Lei nº. 9.520/97); modificações no que concerne à prova pericial (Lei nº. 8.862/94); a possibilidade de apelar sem a necessidade de recolhimento prévio à prisão (Lei nº. 5.941/73); a revogação dos artigos atinentes ao recurso extraordinário (Lei nº. 3.396/58), etc.

                        Por outro lado, leis extravagantes procuraram aperfeiçoar o nosso sistema processual penal, podendo citar as que instituíram os Juizados Especiais Criminais (Leis nºs. 9.099/95 e 10.259/01), e que constituem, indiscutivelmente, o maior avanço já produzido em nosso sistema jurídico processual, desde a edição do Código de 1941. Há, ainda, a que disciplinou a identificação criminal (Lei nº. 12.037/2009); a proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas (Lei nº. 9.807/99); a que possibilitou a utilização de sistema de transmissão de dados para a prática de atos processuais (Lei nº. 9.800/99); a lei de interceptações telefônicas (Lei nº. 9.296/96); a Lei nº 8.038/90, que disciplina os procedimentos nos Tribunais, e tantas outras, algumas das quais, é bem verdade, de duvidosa constitucionalidade.

                        Pois bem. Este é o quadro atual. Além de algumas alterações pontuais, seja no próprio texto consolidado, seja por intermédio de leis esparsas, nada mais foi feito para modernizar o nosso diploma processual penal, mesmo após a nova ordem constitucional consagrada pela promulgação da Carta Política de 1988.

                        E, assim, o atual código continua com os vícios de 60 anos atrás, maculando em muitos dos seus dispositivos o sistema acusatório, não tutelando satisfatoriamente direitos e garantias fundamentais do acusado, refém de um excessivo formalismo (que chega a lembrar o velho procedimentalismo), assistemático e confuso em alguns dos seus títulos e capítulos (bastando citar a disciplina das nulidades[16]).

                        Destarte, podemos apontar como finalidades precípuas desta reforma que ora se avizinha a modernização do velho código e a sua adaptação ao modelo acusatório, com os seus consectários lógicos, tais como a distinção nítida entre o julgador, o acusador e o acusado, a publicidade, a oralidade, o contraditório, etc.

                        Sobre o sistema acusatório, assim escreveu Vitu: “Ce système procédural se retrouve à l’origine des diverses civilisations méditerranéennes et occidentales: en Grèce, à Rome vers la fin de la Republique, dans le droit germanique, à l’époque franque et dans la procédure féodale. Ce système, qui ne distingue pás la procédure criminelle de la procédure, se caractérise par des traits qu’on retrouve dans les différents pays qui l’ont consacré. Dans l’organisation de la justice, la procédure accusatoire suppose une complète égalité entre l’accusation et la défense.”[17]

                        Aliás, “el Derecho procesal penal de los países latinoamericanos, observado como conjunto, ingresó, a partir de la década del’80, en un período de reformas totales, que, para el lector europeo, puede compararse con la transformación que sufrió el Derecho procesal penal de Europa continental durante el siglo XIX. No se trata, así, de modificaciones parciales a un sistema ya adquirido y vigente, sino, por lo contrario, de una modificación del sistema según otra concepción del proceso penal. Descrito sintéticamente, se puede decir que este proceso de reformas consiste en derogar los códigos antiguos, todavía tributarios de los últimos ejemplos de la Inquisición – recibida con la conquista y la colonización del continente -, para sancionar, en más o en menos, leyes procesales penales conformes al Estado de Derecho, con la aspiración de recibir en ellas la elaboración cumplida en la materia durante el siglo XX.[18]

                        Pode-se, portanto, inferir que as reformas processuais penais já levadas a cabo em vários países da América Latina e por virem em tantos outros, são frutos, na verdade, de modificações no sistema político destes países que foram, paulatinamente, saindo de períodos autoritários para regimes democráticos. É como se a redemocratização impulsionasse o sistema processual do tipo inquisitivo para o sistema acusatório. Aliás, é inquestionável a estreita ligação entre o sistema processual penal de um país e o seu sistema político. Um país democrático[19] evidentemente deve possuir, até porque a sua Constituição assim o obriga, um Código de Processo Penal que adote o sistema acusatório, eminentemente garantidor. Ao contrário, em um sistema autoritário, o processo penal, a serviço do Poder, olvida os direitos e garantias individuais básicos, privilegiando o sistema inquisitivo, caracterizado, como genialmente escreveu Ferrajoli, por “una confianza tendencialmente ilimitada en la bondad del poder y en su capacidad de alcanzar la verdad”. O sistema inquisitivo, portanto, “confía no sólo la verdad sino también la tutela del inocente a las presuntas virtudes del poder que juzga”.[20]

                        Assim, a “uniformidade legislativa latino-americana – na verdade compreendendo agora a comunidade cultural de fala luso-espanhola – apoiada em bases comuns e sem prejuízo das características próprias de cada região, é uma velha aspiração de muitos juristas do nosso continente. Além disso, ela foi o sonho de alguns grandes homens, fundadores de nossos países ou de nossas sociedades políticas. Em nossos países, geralmente, a justiça penal tem funcionado como uma ‘caixa-preta’, afastada do controle popular e da transparência democrática. O apego aos rituais antigos; As fórmulas inquisitivas, que na cultura universal já constituem curiosidades históricas; a falta de respeito à dignidade humana; a delegação das funções judiciais; o segredo; a falta de imediação; enfim, um atraso político e cultural já insuportável, tornam imperioso começar um profundo movimento de reforma em todo o continente.”[21]

                                                                                                                                                 

Notas e Referências

[1] Média realizada em relação a todas as áreas de atuação. Vide: Relatório Justiça em Números 2017, p.134. Disponível em:< http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/12/b60a659e5d5cb79337945c1dd137496c.pdf>. Acesso em: 10.jul.2018.

[2] MOURA JÚNIOR, Sebastião Raul. O tempo subjetivo e as emoções negativas na duração do processo penal. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3462, 23 dez. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23107>. Acesso em:10 jul. 2018.

[3] Código de Processo Penal, Vol. II, Rio de Janeiro: Forense, 7ª. ed., 1960, p. 157.

[4] Comentários ao Código de Processo Penal Brasileiro, Vol. IV, 1943, p. 178.

[5] Curso de Direito Judiciário Penal, Vol. II, São Paulo: Saraiva, 1958, p. 377.

[6] Apud Abelardo Romero, “A Origem da Imoralidade no Brasil”, Rio de Janeiro: Conquista, 1967. Nesta obra, este grande jornalista e escritor sergipano informava que já no século XIX “quase todos se queixavam da morosidade da justiça, uma das causas e o principal efeito de seu aviltamento.” (p. 221).  

[7] Elementos de Direito Processual Penal, Vol. IV, Campinas: Bookseller, 1ª. ed., 1998, págs. 370/371.

[8] Código de Processo Penal Comentado, Vol. II, São Paulo: Saraiva, 6ª. ed., 2001, p. 460.

[9] Exemplificativamente, vide a seguinte notícia: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/555918-RELATOR-APRESENTA-SUBSTITUTIVO-AO-PROJETO-DO-NOVO-CODIGO-DE-PROCESSO-PENAL.html. Acesso em: 10.jul.2018.

[10] Para maiores detalhes quanto ao andamento do procedimento perante a Câmara dos Deputados, vide: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=490263. Acesso em: 10.jul.2018.

[11] Período que abrange parte do governo de Getúlio Vargas (1937 – 1945) que encomendou ao jurista Francisco Campos uma nova Constituição, extra-parlamentar, revogando a então Constituição legitimamente outorgada ao País por uma Assembléia Nacional Constituinte (1934).

[12] Fiore, Pascuale, De la Irretroactividad e Interpretación de las Leyes, Madri: Reus, 1927, p. 579 (tradução do italiano para o espanhol de Enrique Aguilera de Paz).

[13] O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 11.

[14] Marques, José Frederico, Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 104.

[15] Ob. cit. p. 108.

[16] Comentando a respeito do Título que trata das nulidades no processo penal, o saudoso Frederico Marques adverte que “não primou pela clareza o legislador pátrio, ao disciplinar o problema das nulidades processuais penais, pois os respectivos artigos estão prenhes de incongruências, repetições e regras obscuras, que tornam difícil a sistematização coerente de tão importante instituto. (...) Ainda aqui, dá-nos mostra o CPP dos grandes defeitos de técnica e falta de sistematização que pululam em todos os seus diversos preceitos e normas, tornando bem patente a sua tremenda mediocridade como diploma legislativo” (ob. cit., Vol. II, p. 366/367).

[17] Vitu, André, Procédure Pánale, Paris: Presses Universitaires de France, 1957, p. 13/14.

[18] Maier, Julio B. J.. e Struensee, Eberhard, Las Reformas Procesales Penales en América Latina, Buenos Aires: Ad-Hoc, 2000, p. 17.

[19] Norberto Bobbio assinala, muito a propósito,  que “Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais”, in A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992, p. 1.

[20] Ferrajoli, Luigi, Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 3ª. ed., 1998, p. 604.

[21] Exposição de Motivos do Projeto de Código Processual Penal-Tipo para Ibero-América, com a colaboração dos Professores Ada Pellegrini Grinover e José Carlos Barbosa Moreira, in Revista de Processo, nº. 61, p. 111.

 

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