Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Luciana Carvalho e Antonio Carvalho
À Dri Pegini
À medida que a Garantística Processual se faz conhecida, os seus oponentes entoam em coro a seguinte pergunta: como os garantistas do processo enfrentam o problema da «tutela do direito material»? Como inter-relacionam o direito processual e o direito material? Qual metodologia eles aportam para que o processo se possa adequar casuisticamente à realização do direito material aplicável? Que contribuição podem dar à «materialização do processo»? Ora, quase sempre é uma pergunta retórica. É frase formulada como uma interrogação, mas que constitui, de fato, uma afirmação. Isso porque ela não visa obter uma resposta, senão enfatizar com a sua formulação a ideia de que os garantistas do processo têm negligenciado o problema, ou comungam de um modelo teórico incapaz de solucioná-lo. Entretanto, não se trata de negligência nem de incapacidade, mas da mais absoluta e plácida despreocupação. Para os garantistas do processo, o «problema» da relação entre o direito processual e o direito material não é simplesmente um problema. Ponto final. Decerto é um problema para outras ciências de relevância processual; contudo, não para a específica episteme que cultuam. Daí por que não pré-ocupa a mente dos garantistas do processo; em consequência, não lhes pós-ocupa o tempo. Em todo caso, ainda que vez por outra haja sinceridade na pergunta, invariavelmente se esconde por trás dela algum grau de desconhecimento sobre o objeto e o estatuto epistemológico da Garantística Processual. Afinal, uma vez conhecidas uma coisa e outra, a pergunta deixa por completo de fazer sentido. Por isso, a missão deste pequeno artigo é singela: condensar alguns argumentos que já desenvolvi em textos anteriores e, com isso, mostrar que a «materialização do processo» per se sempre esteve longe de ser um dos leitmotiven da Garantística Processual. Na verdade, para os garantistas do processo, o real problema reside em saber a quem compete essa materialização. Reside em saber se o poder formativo de constituir uma «técnica adequada» é atribuído ao legislador, ao juiz ou às partes. Aqui sim há uma questão de significação constitucional.
É preciso frisar - mais uma vez e sempre - que a Garantística Processual é uma dogmática jurídica constitucional (obs.: prefere-se a expressão «garantística processual», que exprime a dogmática constitucional do processo como garantia, à expressão «garantismo processual», que exprime o movimento de política jurídica em favor do processo como garantia). É uma constitucionalística superespecializada na garantia contrajurisdicional do processo (o «devido processo legal»). Como já expliquei alhures, a constituição é, em essência, a limitação jurídico-normativa do poder político do Estado. Assim, a constituição é basicamente uma garantia (garantia = tutela contra o arbítrio estatal). Por conseguinte, os garantistas são os constitucionalistas em seu sentido mais fundamental. São os constitucionalistas par excellence. Por esse ângulo, a garantística é o núcleo duro da constitucionalística; o garantismo, o núcleo duro do constitucionalismo. Contra o exercício arbitrário do subpoder jurislativo se armam as garantias constitucionais contrajurislativas [ex.: publicidade, proporcionalidade, mandado de injunção, ação direta de inconstitucionalidade], que são estudadas pela Garantística Contrajurislativa. Contra o exercício arbitrário do subpoder administrativo se armam as garantias constitucionais contra-administrativas [ex.: licitação, concurso público, impessoalidade, mandado de segurança], que são estudadas pela Garantística Contra-administrativa. Contra o exercício arbitrário do subpoder jurisdicional se armam as garantias constitucionais contrajurisdicionais [ex.: advocacia, imparcialidade judicial, reclamação ao CNJ, processo ou «devido processo legal»], que são estudadas pela Garantística Contrajurisdicional. Pois nada impede que a Garantística Contrajurisdicional se concentre tão apenas na garantia contrajurisdicional do processo («do devido processo legal»), fazendo-se Garantística Contrajurisdicional Processual, Garantística Processual ou, simplesmente, Processualística. Daí se dizer que o autêntico processualista é um constitucionalista que se especializou na cláusula do «devido processo legal».
Nesse sentido, o processo - sendo garantia do jurisdicionado contra eventuais arbítrios do Estado-jurisdição [CF/1988, art. 5º, LIV] - é um instituto de direito constitucional e, portanto, de direito material. Integra o seleto rol das garantias fundamentais do cidadão. Tem materialidade própria. É uma realidade substantiva per se. Opera como interface de proteção na relação de poder entre o Estado e os cidadãos. Logo, no plano constitucional, a relação «direito processual-direito material» é um non sense. Ela tem razão de ser exclusivamente no plano infraconstitucional. O processo é uma unidade constitucional de garantia, que no plano infraconstitucional se desdobra em múltiplos procedimentos instituídos em função dos diferentes ramos do direito que regulam a relação jurídica discutida pelas partes (civil, penal comum, penal militar, trabalhista, eleitoral, administrativo, tributário etc.). Ou seja, existe não mais que o processo, puro e simples, sem adjetivos. Adjetiváveis são apenas os procedimentos, que o corporificam. Não existe o «processo civil», o «processo penal comum», o «processo penal militar», o «processo trabalhista» etc., mas o procedimento civil, o procedimento penal comum, o procedimento penal militar, o procedimento trabalhista etc. De todo modo, para o direito constitucional, somente importa que o processo e os seus desdobramentos procedimentais protejam as partes do arbítrio estatal. A um constitucionalista é indiferente a maior ou menor adequação do procedimento e do provimento ao ramo do direito que regula a relação jurídica discutida. Não se trata de problema de direito constitucional. Na realidade, se tanto é problema de direito procedimental. Interessa eventualmente aos juristas do direito procedimental civil, do direito procedimental penal comum, do direito procedimental penal militar, do direito procedimental trabalhista etc. (embora, de ordinário, interesse obsessivamente a procedimentalistas civis de inclinação hiperpublicista, os quais - ao fim e ao cabo - são jurisdicionalistas). Ao procedimentalista interessa porventura que o procedimento e o provimento sejam os mais adequados à realização do direito material. Ao garantista do processo, que é um constitucionalista especializado, só interessa que a realização não seja arbitrária.
Isso não significa que o garantista do processo nada tenha a dizer ao procedimentalista a respeito da «tutela do direito material». A especialização da «técnica» em função das particularidades da relação jurídica material discutida se pode dar tão só pela omnilateralidade objetiva da lei, não pela unilateralidade subjetiva do juiz. O legislador - e apenas o legislador - dispõe de amplíssimo espectro para criar in abstrato novas modalidades de procedimento e provimento. No final das contas, a cláusula constitucional do «devido processo legal» encerra, ao mesmo tempo, duas garantias contrajurisdicionais do cidadão: 1) a garantia do «processo devido» [= obrigatoriedade, ubiquidade, onipresença do processo na relação de poder entre jurisdição e jurisdicionado]; 2) a garantia do «processo legal» [= legalidade do procedimento e do provimento]. Sublinhe-se: o processo é legal, da lei, estabelecido pelo legislador. É a garantia constitucional da estrita legalidade do procedimento e do provimento, que os cursos, tratados, apostilas e manuais e livros de introdução tanto ignoram. Não existe «devido» processo extralegal, sublegal, infralegal, judiciogenético, do juiz. Assim, não pode haver especializações procedimental e provimental ope iudicis, senão ope legis. Defender essa especialização como artesania do juiz significa permitir que ele usurpe competência legislativa e reconfigure, sem autorização legal, o procedimento e o provimento instituídos oficialmente pelo Poder Legislativo. Significa permitir que o juiz faça vista grossa ao que lhe foi imposto pelos representantes eleitos democraticamente pelo povo. Significa livrar o juiz do pesado ônus de demonstrar expressamente a inconstitucionalidade de cada um dos dispositivos legais que definem o procedimento e o provimento. Significa permitir que a autoridade controlada (o juiz) capture e, ocasionalmente, despotencie in causa propria o meio de controle (o processo). Em verdade, admite-se a flexibilização in concreto do procedimento padrão meramente no âmbito civil, desde que por meio de negócio jurídico celebrado pelas partes [CPC, art. 190]. No Brasil, de uma vez por todas, especialização se faz ex lege vel voluntate partium, nunca ex voluntate iudicis.
De qualquer maneira, causa espanto a mitologia criada ao redor da especialização procedimental per officium iudicis. Os juízes e os tribunais brasileiros mal dispõem de tempo para customizar o iter processualis. Tanto menos em larga escala. Na era de litigância explosiva e massificada, a máquina judiciária é compelida a produzir fordisticamente. Por isso, as rotinas e os expedientes cartoriais têm baixa adaptabilidade. Para que todo e qualquer procedimento fosse invariavelmente impregnado pelo húmus substancial da relação jurídica discutida, seria preciso um homem de fôlego e de racionalidade ilimitados. Ao limiar de percepção desse juiz fictício - imperturbável pelo excesso de trabalho e pela pressão por produtividade - jamais escaparia qualquer dado relevante para a adequação correta do procedimento ao direito material aplicável. No entanto, esse supermagistrado é irreal. É uma idealização fantasiosa. Por conseguinte, na prática quotidiana forense, é o procedimento comum que reina soberano. Nesse mesmo sentido, são irretocáveis as palavras de JOSÉ JOAQUIM CALMON DE PASSOS: «A especialidade do procedimento deve ser [...] uma exceção, só justificável em face da absoluta necessidade de se atender a algo tão específico que seria disfuncional e até lesivo adotar-se na sua inteireza o procedimento ordinário. O que se impõe como técnica e politicamente correto é ter-se um procedimento ordinário excelente, porque ele é o meio a ser empregado na esmagadora maioria dos casos. Péssimo, política e tecnicamente, será optarmos por deixar inadequadamente regulado o que deve servir para a quase totalidade dos litígios e nos perdermos em elucubrações cerebrinas para institucionalizar excepcionalidades. Não devemos encorajar a ressurreição da crença arcaica de que para cada pretensão há um procedimento ideal, ou que seja conveniente agruparmos pretensões e tratá-las de um modo procedimental específico. Essa visão, data venia, cheira a um romanismo arcaico» (Teoria geral dos procedimentos especiais. Procedimentos especiais cíveis: legislação extravagante. Coord. Cristiano Chaves de Faria et al. São Paulo: RT, 2003, p. 3-10).
A «necessidade de materialização do processo» não é um problema de direito processual. Não se dá no plano jurídico-constitucional. Tampouco é um problema de direito procedimental. Não se dá no plano jurídico-infraconstitucional. Na verdade, é um problema de política legislativa. Dá-se no plano pré-jurídico. Portanto, não interessa propriamente ao jurista dogmático. Quando muito lhe ocupa os discursos de lege ferenda, não de lege lata. Noutros termos: entrevendo aqui e ali a oportunidade e a conveniência de novos formatos procedimentos e de novos tipos de provimento jurisdicional para a melhor efetivação do direito material, pode o doutrinador sugeri-los ao legislador. Todavia, nunca pode sugerir que o juiz os manufature nas causas que processa e julga, como se fosse um legislador casuístico. A acomodação dos procedimentos e dos provimentos a particularismos jurídico-materiais há de ser obra de uma coletividade organizada de parlamentares, não do tirocínio atomizado de um único juiz. Enfim, a ponte entre o direito material e o direito procedimental é construída de modo geral e abstrato pelo Poder Legislativo, não de modo individual e concreto pelo Poder Judiciário. É no curso vagaroso do processo legislativo que deputados e senadores, agrupados em comissões e assessorados por técnicos, podem conscientizar-se dos reclamos político, moral, econômico ou científico por uma menor abstração do direito procedimental. E, conscientizando-se, podem promover - mediante lei ordinária federal [CF, art. 22, I] - uma maior aproximação das formas ao direito substancial. À ágora parlamentar é que se devem aportar subsídios extrajurídicos para o debate democrático em torno da eventual necessidade de «técnicas mais adequadas à tutela do direito material». A investidura do juiz não obedece ao percurso eleitoral da democracia representativa; logo, não tem ele legitimidade mínima para se antenar à volonté générale e conceber essas «técnicas» parapsicologicamente. O juiz é um aristocrata aprovado em concurso público ou nomeado politicamente, que integra uma burocracia técnica e que só ganha legitimidade democrática mantendo-se fiel às leis aprovadas pelos representantes eletivos do povo.
Há quem sustente que o poder formativo do juiz de constituir procedimentos e provimentos inovadores decorreria do «princípio da tutela jurisdicional adequada», que seria um corolário do «princípio da inafastabilidade da jurisdição» [CF/1988, art. 5º, XXXV: «a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito»]. Sem razão, porém. Nenhuma colisão há entre a garantia da inafastabilidade da jurisdição e a garantia do processo legal. Como cediço, os direitos fundamentais de primeira dimensão ou geração são direitos subjetivos de liberdade. Consubstanciam pretensões negativas contra o Estado. Têm como objeto uma conduta estatal omissiva. São, em suma, posições jurídicas ativas de status negativus titularizadas pelo cidadão. Na pretensão ao processo legal, exige-se do Estado-juiz que não atue sem a intermediação de um procedimento em contraditório sub lege, regulado always under law. Por sua vez, na pretensão à inafastabilidade da jurisdição, exige-se do Estado-legislador que não edite norma que pré- ou pós-exclua situação jurídica conflituosa da apreciação jurisdicional. Como se vê, as duas regras constitucionais - regras, não princípios - têm âmbitos de proteção absolutamente distintos entre si, que jamais se entrechocam. Ademais, a incidência dessas regras faz nascer para o cidadão uma pretensão de abstenção(que é posição jurídica ativa) e, correlatamente, para o Estado um dever de abstenção (que é posição jurídica passiva). Pudera: direitos fundamentais de liberdade são direitos de defesa ou resistência do cidadão contra o Estado [Abwerrechte]. Daí ser despropositado extrair posições ativas para o Estado a partir de direitos individuais. Trata-se de excesso de objetivação, que desvirtua por completo a justificativa das chamadas «liberdades civis». Entre imunizar o jurisdicionado contra leis excludentes e atribuir à jurisdição poderes criativos, existe uma distância abismal, só transponível por um salto interpretativo tão excêntrico quanto autoritário. A garantia da inafastabilidade da jurisdição serve para livrar os cidadãos de determinado poder, não para assujeitá-los. Com isso se nota que a «tutela adequada do direito material» é somente mais um mantra para empoderar os juízes e, assim, enfraquecer a separação de poderes.
Imagem Ilustrativa do Post: Justice isn't blind, she carries a big stick // Foto de: Jason Rosenberg // Sem alterações
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