Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho
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Hoje seria o dia de tratar da responsabilidade patrimonial e da responsabilidade pessoal na execução para demonstrar o equívoco das interpretações que retiram do art. 139, IV, do CPC, em maior ou menor medida, a possibilidade de aplicação das medidas indutivas e coercitivas atípicas na execução da prestação pecuniária. Sei que o tema é urgente e indispensável e garanto que o retomarei em breve.
No entanto, em razão do frisson causado por Igor Raatz no ensaio #6[2] desta coluna, publicado na última segunda-feira, 01/04, tornou-se premente apresentar ao grande público um pequeno manual prático com a finalidade de instruir o leitor sobre o debate que vem sendo desenvolvido pelos garantistas processuais sobre as ideias dos instrumentalistas (e correntes afins).
A alteração de paradigma e de visão de mundo implementada pelo garantismo processual acarreta, obviamente, conclusões totalmente diversas do instrumentalismo processual e da cooperação processual em suas mais variadas matizes. Não raro a produção garantista vem acompanhada de preconceitos e crítica rasa do establishment doutrinário processual, que vociferam acusações, tais como: “falta de contextualização das ideias do passado”; “má representação do pensamento atual”; atuação com “hipergarantismo”; “postura privatista do processo”; “defesa do juiz-boca-da-lei” etc.
O presente ensaio é, ao mesmo tempo, uma explanação iniciática sobre as premissas do processo como garantia de liberdade (de primeira geração) e da visão da jurisdição republicana. Para facilitar a tarefa do leitor, apresentamos a visão do instrumentalismo sobre determinados temas e na sequência a visão garantista de forma bastante didática.
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A diferença fundamental e inconciliável entre o garantismo processual e o instrumentalismo processual (e suas sub-correntes, tais como neoprocessualismo, formalismo-valorativo, colaboração e cooperação processual) é muito simples de ser entendida e está no plano pré-positivo. Explico.
O instrumentalismo tenta analisar todo o fenômeno processual a partir da perspectiva do exercício do poder e manieta o processo para que sirva aos propósitos eleitos pelo soberano (o Poder Judiciário). Não por outro motivo, o instrumentalismo prega que o processo seja um instrumento da jurisdição. A sua base de atuação é a necessidade de pacificação social com justiça a partir do sentimento social captado pelo juiz(-antena). É, portanto, uma doutrina de dominação e aprisionamento da sociedade em nome de um juiz acima de qualquer suspeita moral e dotado de inabalável privilégio cognitivo.
O garantismo, por outro lado, enxerga o fenômeno processual da perspectiva da sociedade em relação ao Estado. O processo passa a ser visto a partir de sua substancialidade ôntica de garantia contra o exercício do poder do Estado, de acordo com o desenvolvimento teórico do devido processo legal. A sua base de atuação é a necessidade de limitar o exercício do poder do Estado para que não haja arbitrariedades. É, portanto, uma doutrina de liberdade e resistência legítima às forças estatais.
A instrumentalidade vê o juiz como o “legítimo canal através de que o universo axiológico da sociedade impõe as suas pressões destinadas a definir e precisar o sentido dos textos, a suprir-lhes eventuais lacunas e a determinar a evolução do conteúdo substancial das normas constitucionais”[3]. Entende-se no ato de interpretar uma liberdade judicial para o exercício do poder para a resolução do caso do modo que a sociedade espera, mesmo que ao arrepio da lei, tudo em nome de uma suposta pacificação com justiça (“escopo social do processo”). “Isso significa, sim, que a instrumentalidade do sistema processual é alimentada pela visão dos resultados que dele espera a nação”[4]. Essa é a descrição, grosso modo, da metáfora do juiz-antena produzida por José Renato Nalini, a partir da inspiração dinamarquiana: “Um poder que sempre levou muito a sério a harmonia, em detrimento da independência, é agora conclamado a atender com eficiência às demandas sociais. Da criatividade do juiz, de suas antenas sensíveis, voltadas à satisfação das pretensões dos destinatários da Justiça, dependerá a sobrevivência do sistema. Abandone-se a inércia, parta-se para a experimentação. Haverá erros? Com certeza. O erro maior, todavia, será persistir nesta imobilidade que necrosa e mata.”[5]
Na última segunda-feira, 1° de abril, em debate realizado na FGV Direito em São Paulo, o Ministro Luís Roberto Barroso disse que cabe ao STF interpretar a constituição em “sintonia com o sentimento social” (acesse a matéria aqui). Bom seria se o Ministro estivesse fazendo apenas uma blague pelo “dia da mentira”, mas, ao que parece, pelos seus posicionamentos na Corte Suprema, trata-se de uma triste verdade. E ao que tudo indica o insigne magistrado não leu o texto de Igor Raatz.
Mas há algum problema em julgar de acordo com o sentimento social? Para investigar esse ponto, apresento três questões para reflexão: (a) qual é o poder da república que recebe as pressões sociais e decide sobre as regras postas? (b) o julgamento com base no sentimento social quebra a neutralidade política do poder judiciário? (c) qual é a forma específica de recepção do sentimento social pelo juiz?
Pode parecer para o leitor menos acostumado com esse debate que essas perguntas são meramente retóricas, porém não é assim que se passa na doutrina processual.
Os garantistas preocupam-se por demais com esses questionamentos e, por isso, passo a responder as questões a partir desta perspectiva:
(a) O exercício do poder estatal na República Brasileira é cindido em órgãos diferentes (=separação de poderes), que exercem funções primordiais distintas (=divisão de funções). A função jurislativa de criação do direito, através da constituição e das leis, é exercida pelo Poder Legislativo. É ele, e apenas ele, que se comunica através dos congressistas com os mais diversos setores da sociedade buscando pela pluralidade o estabelecimento das regras jurídicas determinadas a partir da política, através do critério da majoritariedade. Apenas o Poder Legislativo é quem pode criar ou alterar regras jurídicas em decorrência dos influxos jurídicos. Muito embora os parlamentares não sejam dotados de “antenas”, o que representa uma metáfora risível, são eles responsáveis pela capilaridade democrática da consulta às bases. São exatamente essas bases, de acordo com a engenharia constitucional, que devem influir na tomada de decisão de cada um dos parlamentares, que, no conjunto de sua maioria ou na ausência dessa, determinam os limites políticos do direto;
(b) É óbvio que a tentativa de qualquer juiz em julgar de acordo com o suposto sentimento social quebra a indispensável neutralidade política do Poder Judiciário. A conclusão é comezinha. Os juízes julgam de acordo com a legalidade posta, ou seja, “secundum legis”. O seu trabalho já é bastante complexo, pois devem promover a busca da norma jurídica do caso concreto a partir das alegações e pedidos apresentados pelas partes envolvidas de acordo com o direito objetivo estabelecido. Não há dúvida, desde o giro ontológico-linguístico, que o juiz interpreta o direito objetivo de acordo com o contraste dos autos. Nessa ambiência é que reside a contramajoritariedade do Poder Judiciário, que pode ser verificada pela: (i) neutralização política por decorrência da submissão à hierarquia do direito criado pelo Poder Legislativo; (ii) irrelevância do sentimento da maioria em relação à decisão a ser tomada de acordo com o direito posto. Nesse último aspecto, o controle das regras (ou da falta delas) que ensejaram a tomada da decisão judicial em um sentido ou outro deve ser objeto de alteração legislativa.
(c) Para o garantista, a metáfora da antena é uma farsa, um disfarce para que o juiz julgue segundo os seus anseios pessoais ou a influência direta de seu grupo, nunca pela sociedade. A conclusão para isso é simples: não existe um meio seguro de aferição desses influxos sociais.
O “juiz-antena” foi concebido no momento em que o mainstream da mídia estava tomado pelos meios de telecomunicação, em especial o rádio e a televisão. A alusão à antena é para a captação das “ondas” do pensamento popular e processar a sua pluralidade para revelar, a partir daí, uma maioria, que deveria ser atendida. Nada mais fantasioso. A sua estruturação pressupõe um juiz com poderes cognoscentes sobre-humanos, em condições de realizar a façanha apresentada, como se fosse o “Professor Xavier” do “X-Men”, capaz de realizar uma operação metafísica e racional, como se fosse um “homo sapiens sapiens”. Com a queda da influência dos medias clássicos e o crescimento das redes sociais, talvez hoje o “juiz-antena” tenha migrado de ambiente e seja melhor definido como o “juiz-instagramer” ou o “juiz-facebooker”, um update da figura para a era digital. Passa-se do “juiz-antena” para o “juiz-conectado”.
O garantismo processual lida com a figura do juiz, ou como diria Glauco Gumerato Ramos, com a pessoa exercente da função jurisdicional, com a completude e a complexidade de sua humanidade, em sua definição de homo sapiens demens, tal como defendido por Mateus Costa Pereira em sua brilhante tese de doutoramento[6]. Não por acaso, a excelente tese de doutoramento de Eduardo José da Fonseca Costa (acesse aqui) preocupou-se com o rompimento da imparcialidade judicial a partir dos estudos de Kahneman e Tversky na seara da “Behavioral Law and Economics”. Deste modo, deve haver um cisalhamento entre o órgão estatal e a pessoa exercente do poder. Este deve entender que o atuar jurisdicional na conformação republicana lhe impõe deveres e limites próprios que não o tornam livre. As convicções pessoais, as paixões e os impulsos do exercente do poder devem dar lugar à serenidade do julgador. O órgão estatal está submetido aos grilhões da legalidade e não pode escapar deles, por ser um dos remédios de sua óbvia humanidade. É necessário rechaçar o experimentalismo judicante naliniano e seu equivalente funcional da plasticidade procedimental presente no instrumentalismo, no neoprocessualismo, no cooperativismo e no colaboracionismo, segundo a qual o juiz deve adaptar o procedimento às peculiaridades do caso concreto – o batido argumento de que o juiz o fará cooperativamente, dialogando em contraditório com as partes, não convence, pois à mingua de critérios jurídico-positivos das margens de adaptação há sempre o incontrolável risco de arbítrio judicial. O processo, enquanto instituição de garantia contrajurisdicional de liberdade das partes, é inerentemente anti-experimentalista e procedimentalmente rígido. Deveras, nada é mais humano que o julgamento imediato, sumário, sem contraditório, sem prova, sem imparcialidade. O processo refreia essas animalidades ancestrais, para ficar na expressão de Eduardo José da Fonseca Costa. A finalidade precípua do processo é conter a intuição do Estado-Juiz, e não dar azas à sua imaginação.
Essa noção não se assemelha em absolutamente nada com a metáfora do juiz “boca da lei”, uma vez que o garantismo se baseia no princípio hierárquico fundacional do sistema jurídico do estado, no qual a constituição se coloca em posição de superioridade com relação às leis. Deste modo, julgar conforme a legalidade pressupõe o exercício permanente de constitucionalidade das leis (judicial review). No entanto, o juiz republicano (=aquele que adota as premissas garantistas processuais) não lê a Constituição em tiras, não faz apreciações de ocasião para retoricamente descobrir “inconstitucionalidades” elásticas para satisfazer as suas “certezas”. É a própria Constituição quem estabelece o modelo garantista de processo e de juiz republicano. Assim, este juiz não mistura direito com política no seu mister de julgar. Tem plena consciência de suas limitações, não podendo substituir as demais forças do Estado por sua simples vontade, sob pena de subversão da engenharia constitucional, que nada mais faz do que positivar conquistas de liberdade sedimentadas durante o tempo.
Deste modo, o juiz do modelo garantista é aquele que presta reverência à separação dos poderes e à divisão das funções estatais como uma conquista social indispensável para o equilíbrio do estado, prestando “fidelidade canina à constituição e às leis”[7]. Este magistrado se enxerga imerso no ambiente de soberania popular, no qual impera a democracia republicana. Não se permite atuar fora dos limites apresentados, sob pena de transmutar-se em um aristocrata. Nada mais coerente do que chamá-lo de “juiz cumpridor da lei”. E isso deveria ser motivo de loas, não de ironias.
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Os instrumentalistas, em suas mais variadas vertentes, defendem, a partir do desenvolvimento teórico amplo da teoria do “acesso à justiça”, e em razão de todas as suas ondas, que o processo deve ser “justo”. Essa noção que foi sendo burilada durante os anos 70 ganhou corporificação clara no início dos anos 2000 com o desenvolvimento teórico do neoconstitucionalismo e do neoprocessualismo, bem como do formalismo-valorativo. Seus defensores apostam que o “processo justo” decorre do direito que o cidadão possui a uma “ordem jurídica justa”, razão pela qual há necessidade de “superação do excesso de formalismo”, a partir do controle jurisdicional realizado em função do “bloco de princípios e garantias fundamentais assegurados ao indivíduo e à coletividade, proclamados como desdobramento necessário para se obter uma justa composição da lide, um acesso adequado à justiça. O justo processo é o que se compõe de garantias fundamentais de justiça.”[8] A partir deste momento, o devido processo legal é substituído por um pretenso “direito fundamental ao processo justo”, que seria sinônimo do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, célere e adequada, em razão do caráter publicista da constitucionalização do processo. Assim, “[o] processo está voltado à tutela de uma ordem superior de princípios e valores que estão acima dos interesses controvertidos das partes (ordem pública) e que, em seu conjunto, estão voltados à realização do bem comum”[9].
Uma das principais iniciativas dessa corrente é a “construção de técnicas processuais adequadas à tutela dos direitos materiais (instrumentalidade do processo e efetividade processual)”[10]. Destaca-se, em particular, o desenvolvimento de uma teoria a respeito da possibilidade de flexibilização procedimental pelo juiz, como forma de possibilitar o ajuste do procedimento às necessidades específicas de cada caso, uma vez que “o art. 5º, LIV, da Constituição Federal não determina que o processo siga à risca as normas procedimentais estabelecidas em lei, mas sim que seja oportunizado às partes o direito a um processo justo, isto é, onde lhe seja assegurado o respeito às garantias constitucionais (contraditório, isonomia, juiz natural etc.) e às oportunidades previstas na norma processual, algo que pode ser perfeitamente alcançado ainda que com um procedimento que se adapte judicialmente à realidade”[11]. Essa noção é a principal inspiração para a defesa da ampla aplicabilidade das medidas indutivas atípicas na execução pecuniária, com base no art. 139, IV, do CPC, como se pode ver pela manifestação de um dos seus maiores entusiastas, que o processo serve à tutela dos direitos. O processo deixa de ser pensado como “ready-to-wear” ou “one-size-fits all” para se tornar “made-to-measure”. Consequentemente, para cada tipo de caso, é imprescindível o processo mais conveniente, chegando-se, assim, ao resultado “processo justo”[12]. Por consequência, o procedimento deve ser plástico nas mãos do juiz.
Como já referido alhures, o garantista processual prefere manter os pés fincados na terra e conviver com a natureza mundana de sua própria existência. Entende que a cláusula do devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF) não comporta a leitura apresentada pelos instrumentalistas, pelo contrário, ela deve ser lida como sinônimo de processo na perspectiva de garantia de liberdade contrajurisdicional. Ou seja, representa a qualificação do “ser constitucional” do processo, que impinge conteúdo para a definição da legalidade procedimental. É, pois, a “matéria-prima” para o estabelecimento do procedimento através do Poder Legislativo.
O devido processo legal é visto com substancialidade constitucional (e histórica), o que não pode ser substituído por qualquer outra cláusula ao bel prazer do intérprete. Assim, alterar devido processo legal para “processo justo” representa uma deturpação de seu significado e substância. O garantista vê no devido processo legal, tanto na sua feição procedimental como material, a conformação de todo o fenômeno garantístico que estabelece os limites para a atuação da jurisdição no caso concreto. Na cláusula constitucional em análise, o processo é “devido”, ou seja, vinculante e obrigatório, ensejando a sua aplicação por todos. Mais do que isso, ele também é o legalmente estabelecido, ou seja, é a lei que deve estabelecer o procedimento a partir da matriz constitucional. O processo se qualifica apenas por “devido” e “legal”, jamais por “justo” ou qualquer outro adjetivo que se pretenda ao bel prazer do teórico[13]. Acrescente-se: insistir que o aplicador interprete o processo em razão do direito material discutido no caso concreto é permanecer no atoleiro autoritário forjado pelo instrumentalismo processual. O processo não é instrumento de realização do direito material, a jurisdição o é. Fenomenologicamente, a jurisdição não precisa do processo para realizar o direito material. O processo é imprescindível em termos de exercício legítimo do poder (art. 1º, parágrafo único, CF). O “instrumento” de realização do direito material é a instituição de poder chamada jurisdição, ao passo em que garantir que tal se dê sem abusos, desvios e excessos é a finalidade da instituição de garantia chamada processo. Insistir na noção ora criticada é dissolver alquimicamente o processo na jurisdição.
Nesta senda, o garantista processual entende por inconstitucional e por ilegal qualquer flexibilização judicial do procedimento. Apenas as partes têm o poder para ajustarem o procedimento às especificidades de sua causa (presente ou futura), através dos negócios jurídicos processuais típicos ou atípicos (art. 190, do CPC). Para o juiz, no entanto, o procedimento é sempre pré-estabelecido, ou pela lei ou pelas partes. A sua atividade criativa para alteração do procedimento é completamente vazia, já que o procedimento posto pela lei (ou pelas partes) é rígido tal qual cerâmica em suas mãos, não admitindo qualquer dobra sem sua quebra. Por consequência, visões plasticizantes do procedimento por iniciativa judicial são flagrantemente autoritárias, pois desrespeitam a constituição e a lei, uma vez que a “garantia ex lege dá lugar a uma pseudo-garantia ex voluntate iudicis. O contra-jurisdicional se corrompe num pró-jurisdicional. Em outras palavras: a garantia do cidadão é capturada e desnaturada pelo Estado”[14].
O art. 139, VI, do CPC não autoriza a ampla flexibilização procedimental pelo juiz, ao contrário, a ampliação de prazos processuais somente é possível antes do término do prazo e somente pode incidir para concretizar o princípio do contraditório e da paridade de armas, na perspectiva de dar à parte atendida pela ampliação igualdade de oportunidade e audiência em relação à parte adversa. A alteração da ordem de produção das provas também possui limites claros. A regra deve ser lida no sentido de que a topologia das regras sobre as provas em espécie não condiciona a ordem de sua realização no procedimento, no entanto, não pode o juiz, de ofício, alterar o momento processual para a produção da prova antes da fase instrutória, ou mesmo modificar a ordem da oitiva das testemunhas sem a anuência expressa das partes neste particular (art. 456, parágrafo único, do CPC).
Ainda sobre o “processo justo”, é indispensável lançar mais uma observação: pela influência flagrante do desenvolvimento teórico do direito processual brasileiro pela doutrina italiana, os adeptos da visão do “justo processo” tomaram, como numa tradução literal, a cláusula “giusto processo”, constante do art. 111 da Constituição Italiana, e passaram a utilizá-la como se prevista na Constituição Brasileira com o conteúdo que eles bem entenderam. Ignoraram as limitações previstas no nosso texto constitucional e também no italiano. Tanto isso é verdade que as referências à cláusula italiana sequer são completas, esquecendo-se que o texto respectivo se refere à submissão da jurisdição ao “giusto processo regolato dalla legge”[15]!
A tradução do termo sem a devida adequação linguística prega peças com efeitos práticos gravíssimos. A expressão “giusto” na língua italiana possui significado polissêmico, sem que o significante “justo” em língua portuguesa atenda de modo correspondente. Como demonstra Nelson Nery Jr., a partir da lição de Vincenzo Vigoriti, o art. 111 da Constituição italiana inspirou-se diretamente na cláusula do due process of law anglossaxão, sendo que o termo “due” sugere as ideias de processo regular ou correto, razão pela qual deveria ser traduzido para o italiano como “giusto”[16].
A expressão “processo justo” representa um fosso de vaguidão hermenêutica, dentro dele tudo é possível, já que não existem limites para sua caracterização. Em nome da “justiça da decisão”, da “efetividade processual”, do “clamor popular” ou de qualquer outro ardil argumentativo, plasmam-se ao juiz poderes implícitos de flexibilização procedimental, para a tutela “DO” interesse de uma das partes, dando perfeição ao ideal instrumentalista de utilização do processo como “ferramenta oficial do Estado para a consecução de finalidades extragarantísticas”[17].
Nessa perspectiva, o termo “processo justo” é utilizado para a demarcação dos atos purificadores do Summo Pontifice judicial, em termos mais atuais seria como uma “lacração” (no sentido da gíria mesmo) do julgador frente às “injustiças”. Não passa de um mero recurso linguístico para autorizar o despertar do vírus autoritário do juiz, sem descrever o seu conteúdo diante da inexistência de normatividade.
Conforme as lições de J. L. Austin, o “processo justo” não passa de um enunciado performático[18], pois não pode ser submetido a testes de validade, uma vez que não são verificáveis como verdadeiros ou falsos, diante da falta de descrição ou de registro de algo (ao contrário do que acontece com os enunciados constatativos). Sua função é simplesmente realizar algo, mesmo com conteúdo zero. Trata-se de uma velha estratégia daqueles que buscam conferir ares de juridicidade para aquilo que é simplesmente panfletário. “Os termos frequentemente utilizados com função performática são interesse público, conveniência e oportunidade, livre convencimento motivado, proporcionalidade, vontade da lei, princípio republicano e justiça. Em regra, esses conceitos são usados para conferir verniz normativo a decisões ativistas. Julga-se de acordo com a subjetividade do intérprete e, para mascarar esse voluntarismo, os enunciados performáticos são lançados como elemento de suposta normatividade ao decisum.”[19]
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Não poderia terminar esse texto sem antes tratar de uma acusação que os instrumentalistas sempre fazem aos garantistas processuais: a imputação de que o garantismo é um “privatismo” ou um “neoprivatismo”.
Foi Barbosa Moreira quem pela primeira vez tratou dessa malfadada hipótese. Pelo fato do garantismo atacar o modelo de juiz tipicamente instrumentalista, que exacerba os limites da lei e toma para si o discurso publicista para realizar aquilo que bem entende, como demonstrei em alguns exemplos neste pequeno manual, o ilustre processualista carioca assevera que o garantismo “ressuscita de sua sepultura” o modelo privatista de processo pré-bulowniano, tratando-o como “coisa das partes”, razão pela qual merece ser chamado de “neoprivatismo”[20].
Está claro, pela leitura do texto bastante irônico de Barbosa Moreira, que a imputação não passa de uma provocação, uma blague aos seus maiores antagonistas (em especial Juan Montero Aroca, Adolfo Alvarado Velloso e Franco Cipriani), certamente por terem questionado duramente os fundamentos sobre os quais o pensamento dele estava assentado.
No entanto, um exame meramente superficial pelas bases do garantismo processual demonstra o desacerto absoluto de Barbosa Moreira e de todos os que passaram a segui-lo neste ponto.
A base normativa do garantismo processual é a Constituição, vendo na conformação do processo uma substancialidade constitucional, que serve de matéria-prima ao legislador para o desenvolvimento do procedimento, como alhures afirmei. O processo é tratado com uma garantia fundamental para a limitação do poder estatal, nomeadamente da jurisdição. Presta-se respeito à teoria política da separação dos poderes e divisão das funções, entendendo o papel republicano contramajoritário de neutralidade política do Poder Judiciário, sendo que apenas o Legislativo e o Executivo exercem funções majoritárias, nomeadamente em razão de sua eleição por sufrágio universal. Deste modo, como uma teoria dessas pode ser chamada de “privatismo”?
Eduardo Costa é preciso no ponto: “Um genuíno garantista não confunde o público com o pró-estatal; por isso, divisa no processo a res publica que serve às partes e, por correlação, desserve ao Estado quando este exerce com arbítrio a função jurisdicional. Daí por que o garantismo não se reconhece na oposição diametral ‘privatismo vs. publicismo’. O ‘privado’ do processo é a sua função: privado é sinônimo de particular, do latim particularis, adjetivo derivado de particula, diminutivo de pars, partis, que significa parte; portanto, o processo cumpre a sua função ‘privatista’ quando atende às partes, protegendo-as. Por sua vez, o ‘público’ do processo é a sua estrutura: ele se concretiza num procedimento em contraditório, de instauração obrigatória, instituído por normas editadas pelo Poder Legislativo (daí a expressão ‘devido processo legal’)”[21]
Assim, o garantismo rompe com o dualismo de processo como “coisa das partes” ou “coisa do estado” e avança em seu desenvolvimento metodológico para lê-lo como garantia de acordo com a melhor tradição republicana, na perspectiva da sociedade para o Estado. Deste modo, garantismo é, antes de tudo, LIMITE AO PODER ESTATAL.
Daí o desacerto de Barbosa Moreira, segundo contundente observação de Eduardo Costa: “JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA é impreciso quando chama o garantismo processual de «neoprivatismo» (v. O neoprivatismo no processo civil. RePro, v. 30, n. 122, p. 9-21, abr. 2005). O termo obscurece, porquanto indevidamente associa o garantismo ao ordo iudiciorum privatorum romano e, em consequência, a algo ruínico e démodé; por exclusão, associa o instrumentalismo processual – apelidado de «publicismo» – a la dernière mode à Paris, à coqueluche do momento. Tudo como se o mundo «evoluísse» do privado ao público. Como se o Estado fosse a causa finalis da história. É o próprio HEGEL proclamando que «Der Staat ist göttlicher Wille als gegenwärtiger, sich zur wirklichen Gestalt und Organisation einer Welt entfaltender Geist» (Grundlinien der Philosophie des Rechts. § 270) (tradução livre: ‘O Estado é a vontade divina como espírito presente ou atual que se desenvolve na formação e organização de um mundo’)”[22].
Penso que Barbosa Moreira já sabia disso e a provocação decorreu de sua verve literária. O problema é que quem repete a imputação hoje em dia demonstra a plenitude de sua ignorância a respeito das lições mais basilares do desenvolvimento teórico do garantismo processual brasileiro.
Poderia avançar o texto para outros assuntos importantes, no entanto o tempo não me permite maiores digressões, a edição do Empório está fechando e eu já extrapolei o prazo.
Mas ressalto que a causa foi “justa”!
Notas e Referências
[1] Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP); Mestre em Processo Civil pela Universidade de Coimbra; Especialista em Direito Internacional Público e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra e Instituto Ius Gentium Conimbrigae; Professor de Direito Processual Civil em cursos de especialização; Parecerista “ad hoc” da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro); Membro-Fundador e Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) triênio 2019-2022; Diretor Executivo da Associação dos Magistrados do Paraná (AMAPAR); Juiz de Direito no TJPR; e-mail: antoniocarvalho@triunfare.com.br
[2] RAATZ, Igor. O juiz defensor da moral, o juiz defensor da verdade e o juiz defensor da lei: instrumentalismo, cooperativismo e garantismo processual, disponível aqui, acesso realizado em 01/04/2019.
[3] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instrumentalidade do processo, 5.ed.. São Paulo : Malheiros Editores, 1996, p. 41
[4] Idem, p. 151.
[5] NALINI, José Renato. A rebelião da Toga [livro eletrônico] 1.ed., São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2015, item 3.4 Ser proativo e experimentalista
[6] PEREIRA, Mateus Costa. Eles, os instrumentalistas, vistos por um garantista: achegas à compreensão do modelo de processo brasileiro. Recife : UNICAP, 2018, p. 139 e seguintes (original cedido gentilmente pelo autor)
[7] COSTA, Eduardo José da Fonseca. ABDPro #71 – O poder judiciário diante da soberania popular: O impasse entre a democracia e a aristocracia.
[8] MELO, Gustavo de Medeiros. O acesso adequado à justiça na perspectiva do justo processo, in FUX, Luiz; NERY JR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord). Processo e Constituição: Estudos em homenagem ao professor José Carlos Barbosa Moreira, São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 684.
[9] CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo, in FUX, Luiz; NERY JR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord). Processo e Constituição: Estudos em homenagem ao professor José Carlos Barbosa Moreira, São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 674.
[10] WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna, in GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (coord.). Participação e processo, São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 1988, p. 135.
[11] GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Flexibilização procedimental: um novo enfoque para o estudo do procedimento em matéria processual, de acordo com as recentes reformas do CPC, São Paulo : Atlas, 2008, p. 102.
[12] ZANETI JR, Hermes. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. XIV, São Paulo : Ed. Revista dos Tribunais, 2016, p. 91.
[13] Cf. COSTA, Eduardo José da Fonseca. ABDPro 15 – Breves meditações sobre o devido processo legal. Disponível aqui, acesso em 05/04/2018.
[14] Ibidem.
[15] Segue o texto completo do art. 111 da Constituição da República Italiana:
Art. 111. La giurisdizione si attua mediante il giusto processo regolato dalla legge.
Ogni processo si svolge nel contraddittorio tra le parti, in condizioni di parità, davanti a giudice terzo e imparziale. La legge ne assicura la ragionevole durata.
Nel processo penale, la legge assicura che la persona accusata di un reato sia, nel più breve tempo possibile, informata riservatamente della natura e dei motivi dell’accusa elevata a suo carico; disponga del tempo e delle condizioni necessari per preparare la sua difesa; abbia la facoltà, davanti al giudice, di interrogare o di far interrogare le persone che rendono dichiarazioni a suo carico, di ottenere la convocazione e l’interrogatorio di persone a sua difesa nelle stesse condizioni dell’accusa e l’acquisizione di ogni altro mezzo di prova a suo favore; sia assistita da un interprete se non comprende o non parla la lingua impiegata nel processo.
Il processo penale è regolato dal principio del contraddittorio nella formazione della prova. La colpevolezza dell’imputato non può essere provata sulla base di dichiarazioni rese da chi, per libera scelta, si è sempre volontariamente sottratto all’interrogatorio da parte dell’imputato o del suo difensore.
La legge regola i casi in cui la formazione della prova non ha luogo in contraddittorio per consenso dell’imputato o per accertata impossibilità di natura oggettiva o per effetto di provata condotta illecita. Tutti i provvedimenti giurisdizionali devono essere motivati [132 , 142 , 152 , 213 ].
Contro le sentenze e contro i provvedimenti sulla libertà personale [13], pronunciati dagli organi giurisdizionali ordinari o speciali, è sempre ammesso ricorso in Cassazione per violazione di legge [1373 ]. Si può derogare a tale norma soltanto per le sentenze dei tribunali militari in tempo di guerra [1033 , VI2 ].
Contro le decisioni del Consiglio di Stato e della Corte dei conti il ricorso in Cassazione è ammesso per i soli motivi inerenti alla giurisdizione [1031, 2].
[16] Nelson Nery Jr. Princípios do Processo na Constituição Federal [livro eletrônico], 2. ed. em e-book baseada na 12. ed. impressa, São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2016, item 8.1. O direito ao devido processo legal.
[17] COSTA, Eduardo José da Fonseca. ABDPro 15 – Breves meditações sobre o devido processo legal. Disponível aqui, acesso em 05/04/2018.
[18] J. L. Austin, How to do things with words, Harvard University Press, 1975, p. 6.
[19] ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro [livro eletrônico], 2. ed., São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, item 10.2.7. Ativismo judicial se manifesta por meio de enunciados performáticos. Neste mesmo sentido: ABBOUD, Georges; SANTOS, Maira Bianca Scavuzzi de Albuquerque. A relativização da coisa julgada material injusta: um estudo à luz da teoria dos enunciados performativos de Jonh L. Austin, in: Revista de Processo vol. 284/2018, São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, out. 2018, p. 77/113.
[20] MOREIRA, José Carlos Barbosa. El neoprivatismo en el processo civil, in: MONTERO AROCA, Juan. Proceso civil e ideologia, Valencia : Tirant lo Blanch, 2006, p. 215.
[21] COSTA, Eduardo José da Fonseca Costa. Garantismo, Liberalismo e Neoprivatismo, Disponível aqui, acesso em 05/04/2019.
[22] ibidem.
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