#49 - MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS E PROCESSO JUSTO: Duas deturpações

17/02/2020

Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho

 

 

 

 

Em seus comentários aos artigos que regem a execução por título executivo extrajudicial, Hermes Zaneti Jr. apresenta como uma de suas premissas para a defesa das medidas atípicas executivas que ela é decorrência da “cláusula constitucional do processo justo”. Segundo ele, no Estado Democrático Constitucional, o processo serve à tutela dos direitos. Em virtude da força normativa da Constituição, o próprio direito processual, como direito fundamental, sofre alteração para atender à tutela dos direitos como foco e finalidade do processo. O processo deixa de ser pensado como “ready-to-wear” ou “one-size-fits all” para se tornar “made-to-measure”. Consequentemente, para cada tipo de caso, é imprescindível o processo mais conveniente. Para se chegar ao resultado “processo justo”[1] (que, no caso da execução da obrigação pecuniária, é aquele que satisfaz o crédito), o procedimento deve ser plástico nas mãos do juiz, que está no centro da busca por essa adequação, por essa conveniência.

O juiz, a depender do comportamento das partes, do direito material subjacente, da complexidade da causa (que pode, inclusive, ser revelada no curso do processo), afere, caso a caso, se o procedimento previsto pelo legislador infraconstitucional é adequado, efetivo e tempestivo para alcançar o resultado pretendido: o processo justo. Se não o for, isso significa dizer que a regra prevista é um obstáculo para a efetivação do interesse do credor e do processo.

Então, esse juiz bom, cônscio de sua missão, corajoso, que busca a melhor solução, a “decisão ótima”, estará “colaborando” para alcançar o processo justo.

Chega-se, com isso, à possibilidade de aplicação das medidas executivas atípicas nas obrigações de prestação pecuniária. A atipicidade das medidas executivas nas obrigações pecuniárias viria ao encontro, portanto, do “processo justo”. O poder se centraliza no juiz, para que ele molde o procedimento para alcançar o resultado “justo”, ou seja, a satisfação do crédito. Para tanto, deve o juiz afastar a regra procedimental prevista pelo legislador infraconstitucional em virtude de sua aparente inconstitucionalidade e passar a desenhar um novo procedimento, mais adequado para o caso concreto.

É possível concluir, a partir das premissas trazidas por Zaneti Jr, que o dispositivo constitucional violado pela inadequação do procedimento no caso concreto é o art. 5º, LIV, da CF/88, inobstante não haja essa afirmação expressa em suas lições.

Acontece que referido dispositivo não trata de “processo justo”! Ele traz como garantia fundamental o devido processo legal, sem o qual ninguém será privado de seus bens e de sua liberdade.

Toda construção do “processo justo” pressupõe a deturpação semântica da cláusula do devido processo legal. Tenha-se em mente que o “processo justo” decorre de uma idealização do procedimento com alta carga valorativa em determinado sentido. Aposta-se em um juiz bom, “corajoso”, sábio, dotado de capacidade intelectual anormal, que corrige o direito a partir de critérios subjetivos.

Na verdade, essa posição é tributária de uma concepção ativista e neoprocessualistas (ou formalista-valorativa, ou cooperativista, ou figuras afins agitadas pela doutrina que defende essa aplicação) que pretende ver na “justiça” a saída para todos os dilemas da sociedade. Assim, o juiz estaria autorizado, segundo seus critérios pessoais de justiça, a estabelecer o procedimento mais adequado.

Como sustenta Bruno Torrano – falando sobre a generalidade dos casos de ativismo, mas que se aplica como uma luva para esse situação –, os “magistrados rejeitam posturas que consideram formalistas justamente porque não querem ou não veem incentivos para aplicar a solução exigida pelo ponto de vista jurídico – seja porque, alheios a quaisquer discussões mais aprofundadas, simplesmente se sentem mais confortáveis fazendo o que pensam ser mais justo, seja porque (adivinhem!) algum ‘pós-positivista’ incutiu-lhes por anos a ideia de que o direito é um sistema que tem como objetivo ‘fazer justiça’.”[2]

Por outro lado, a cláusula constitucional do devido processo legal encerra a visão do processo como instituição de garantia contrajurisdicional, verdadeira proteção para ambas as partes como forma de limitar o poder do Estado. O processo é uma tutela contrajurisdicional; é um escudo contra os excessos que eventualmente possam ser cometidos pelo Estado ao prestar a jurisdição. Deste modo, o processo visto como uma instituição de garantia – e não como um instrumento a serviço do Estado – protege o indivíduo contra o(s) (excessos do) poder jurisdicional. Ainda, ele é matéria-prima para a atividade legislativa[3], que estabelece o procedimento.

É a garantia do devido processo legal que torna o procedimento rígido tal qual cerâmica nas mãos do juiz, que serve de anteparo e, portanto, impede que o procedimento se plasticize. A plasticidade procedimental por iniciativa judicial viola o disposto no art. 5º, LIV, da CF/88 e o seu conteúdo de proteção.

Atenha-se mais alguns instantes neste ponto. Apenas às partes é garantia da plasticidade do procedimento para a dedução de seus conflitos. Isso pode ser realizado através das convenções processuais típicas e atípicas (art. 190, do CPC), nomeadamente porque a microgarantia do procedimento previsto em lei aproveita às partes e somente elas poderão alterá-lo.

As medidas atípicas nas obrigações pecuniárias judicialmente impostas não possuem qualquer consonância com as premissas do processo como instituição de garantia contrajurisdicional. O juiz não tem poder para escolher o procedimento “ótimo” para as partes, tampouco para fixá-lo em defesa de uma delas, no caso o credor. Aqui, a regra é a contenção em relação ao previsto em lei.

Um adendo é essencial. A aplicação de medidas atípicas nas obrigações específicas de fazer, não fazer e entrega se justifica, exclusivamente, pela adoção da responsabilidade pessoal executiva limitada ao estímulo da vontade da parte no adimplemento da obrigação, justamente porque essa vontade é relevante para o adimplemento.

Construiu-se uma teoria da decisão para aplicação dessas medidas na responsabilidade pessoal, tais como as astreintes. Deste modo, entende-se que a medida deve ser adequada, necessária e proporcional. A adequação possui relação de meio e fim. O meio (medida) utilizado deve almejar a satisfação (fim). Em outras palavras, deve-se utilizar um meio executivo tal que possibilite o estímulo da vontade do devedor para o adimplemento da obrigação. A necessidade, por sua vez, refere-se à circunstância imperativa para a aplicação da medida. A proporcionalidade corresponde à intensidade dessa medida e sua direção ao estímulo da vontade do devedor.

Nesta quadra de ideias, o estado de renitência do devedor deve levar ao acréscimo da intensidade da medida ou sua alteração ou ainda, nos estados de inadimplência, tidos como aqueles de inadimplemento absoluto[4], a obrigação se resolve em perdas e danos, ou seja, em obrigação pecuniária. E por que é assim? Justamente porque a responsabilidade pessoal executiva é limitada, ela não pode representar sanção, pena ao executado. Trata-se, pois, de política processual.

Na obrigação pecuniária, de outro turno, temos a responsabilidade patrimonial do devedor. Ele responde exclusivamente com seu patrimônio por suas dívidas, tanto que sua “vontade” é desprezada, nomeadamente porque o procedimento expropriatório é estruturado, via de regra e salvo as exceções legais (como na possibilidade de protesto, que se trata de medida coercitiva típica), por medidas sub-rogatórias típicas.

Aí poder-se-ia indagar: e quando as medidas sub-rogatórias típicas não são suficientes para a satisfação? Quando não há bens, seja por pobreza ou por “cafajestagem” do devedor, o que fazer? Mesmo na derrocada das medidas típicas, não se pode utilizar as medidas atípicas? Será que neste caso não seria aplicável o art. 139, IV, na sua parte final visando a satisfação nas obrigações pecuniárias?

Mesmo com a previsão do art. 139, IV, do CPC, a responsabilidade da obrigação pecuniária continua sendo patrimonial e isso não mudou com o dispositivo em comento. Aliás, o art. 789 do CPC não deixa dúvidas de que o devedor responde com seus bens, presentes e futuros, pelo cumprimento de suas obrigações. Persiste, portanto, a escolha legislativa pela responsabilidade patrimonial.

Não há espaço constitucional para que o juiz preencha com sua criatividade medidas para estimular a vontade do devedor neste procedimento.

Todas as medidas atípicas indutiva propriamente ditas e coercitivas pensadas até o momento, tais como suspensão de CNH, apreensão de passaporte, cancelamento de cartão de crédito e quaisquer outras restrições dessa ordem representam, em última análise, graves punições ao comportamento de não adimplemento do devedor ou pela falta ou ocultação de patrimônio. Elas são verdadeiras penas análogas às penas restritivas de direito impostas aos devedores, sem previsão legal e sem tipo penal correspondente. Nenhuma delas se volta àquela tríade da adequação, necessidade e proporcionalidade, pois não são adequadas para o alcance da satisfação, tampouco são indispensáveis, vez que o sistema possui outras soluções possíveis, e violam frontalmente a proporcionalidade por encerrarem simplesmente sanções.

A vigorar esse entendimento, produto da visão do processo justo, seria mais adequado ao devedor que a simples mora ou então o não pagamento da execução fosse crime, com a previsão de tais medidas restritivas como pena. Pelo menos assim, haveria o exercício por parte do acusado do contraditório e da ampla defesa, bem como da segurança em conhecer o tipo penal e a implicação prévia de responder pela sanção em casos de transgressão.

A caracterização das medidas coercitivas atípicas na obrigação pecuniária como sanção demonstra sua inconstitucionalidade por violação ao devido processo legal.

E mesmo se se vai para o plano da pragmática, verifica-se que tais medidas não têm surtido qualquer efeito na satisfação dos créditos, o que reforça o argumento de que são simples sanções pessoais ao executado.

A prática mostra, na verdade, que os credores pouco ou nada fazem na busca de bens. Raramente atuam na revelação de fraudes à execução ou contra credores e mais raramente realizam o passo seguinte para a decretação da falência da empresa devedora ou da insolvência civil da pessoa.

 

Notas e Referências

[1] ZANETI JR, Hermes. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. XIV, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2016, p. 91.

[2] TORRANO, Bruno. Pragmatismo no direito, Rio de Janeiro, Lumen Juris, p. 92 e 93.

[3] COSTA, Eduardo José da Fonseca. ABDPRO #8 – Ciência processual, ciência procedimental e ciência jurisdicional, disponível em https://goo.gl/xn5gDT, consulta realizada em 14.01.2019.

[4] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, vol. 4, São Paulo, Malheiros Editores, 2003, p. 170.

 

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