Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese
No final da década de 1980, os ventos da democracia sopravam no nosso Brasil, fazendo movimentos, organizações sociais e artistas questionarem a sociedade conservadora, ainda fortemente marcada pela Ditadura Civil-Militar. Neste cenário, os poetas Cazuza e Arnaldo Brandão nos brindaram com a memorável canção “o tempo não para”. Depois de décadas e no cenário de reflexão sobre os 31 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente - onde diferentes (e)ventos emergem - proponho que esta canção embale este ensaio, convidando-nos a (re)pensar a trajetória histórica do Estatuto, por meio de uma canção nos faz refletir sobre o tempo.
Olhar para o passado para analisar o presente me faz perceber que o tempo social é produzido por mudanças, mas também por permanências, e elas também desafiam os nossos horizontes de expectativas. Depois de 31 anos de sua promulgação, os defensores do Estatuto enfrentam diferentes obstáculos para sua efetividade. Para além da onda conservadora, marcada pelo questionamento dos princípios dos direitos humanos contra hegemônicos, o “museu de grandes novidades” se materializa por uma sociedade marcada por grupos conservadores que reivindicam o retorno dos comissários de menores, clamam pela redução da maioridade penal e apelam pela educação domiciliar.
O sentimento é que o passado do Código de Menores e da Funabem/Febem permanece presente nessas reivindicações, que negam os princípios e as conquistas estabelecidas a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente. A onda conservadora em si representa um retrocesso, uma vez que quando as “ideias não correspondem aos fatos”, elas tendem a negar a ciência, a produção de dados e informações, fundamentando-se em diferentes fundamentalismos.
Mas, como o “tempo não para”, nos últimos anos, vivenciamos outro desafio ainda mais radial, uma vez que a humanidade viveu nos últimos dois anos Pandemia do Covid 19, que no meu entender marca um divisor histórico no campo das políticas públicas voltadas para as crianças e adolescentes e sua efetividade. A Pandemia mudou os cenários sociais e econômicos em todo território nacional, afetando diretamente o cotidiano de meninos e meninas.
As pesquisas científicas que se debruçam sobre os impactos nas Pandemia no cotidiano de crianças e adolescentes trazem dados alarmantes do aumento da pobreza e da extrema pobreza, das violências sexuais e dos maus-tratos, pelas estatísticas que apontam a elevação e dos casos de adoecimento socioemocional. Este cenário ainda é marcado pelos órfãos da Covid, onde meninos e meninas perderam um dos seus responsáveis, onde muitos além de viver da dor da perda são levados a evadirem da escola e se encaminharem para o mundo do trabalho para contribuírem com o orçamento familiar.
A crise sanitária é também política e humanitária. Importante ressaltar que em meio ao isolamento social provocado pela Pandemia crianças e adolescentes foram mortos pela violência. A pequena Agatha, João Pedro, Miguel... De acordo com reportagem publicada pela Folha de São Paulo, “em três anos, policiais mataram ao menos 2.215 crianças e adolescentes no país”, sendo os estados do “Rio de Janeiro, São Paulo e Pará lideram ranking”. Na reportagem, percebe-se que esta violência tem cor e classe, uma vez que 69% das vítimas são negras e pobres.
Mas, como o tempo não para, a História não se repete. Viver os 31 anos do Estatuto é reorganizar estratégias de mobilização em defesa da vida. Nesta rearticulação a defesa do Estatuto, como dispositivo legal de controle frente ao conservadorismo ceifador de vidas, é necessário e urgente. Se o Estatuto foi criado para defender a vida e produzir políticas de vida, os seguidores do Estatuto devem enfrentar radicalmente as políticas que arquitetam a morte ou como diz o historiador e cientista político africano Achille Mbembe, os que produzem a necropolítica.
E como diz a letra da música de Arnaldo Brandão e Cazuza: “eu não tenho data para comemorar”. É precioso (re)penar, de (re)articular, de (re)visitar os princípios dos idealizadores do Estatuto, na década de 1990. Nunca a História foi tão urgente e necessária. Mas, é muito bom afirmar que não estamos derrotados. Importante que saibam que “ainda estão rolando os dados”, uma vez que “o tempo não para”.
Assim como a canção que embala este ensaio, o Estatuto é fruto da democracia. Nos 31 anos do Estatuto é urgente da defesa do Artigo 227 da Constituição Federal de 1988, do Estatuto da Criança e do Adolescente e das legislações e normativas jurídicas e políticas correlatas. A defesa do Conanda e dos conselhos estaduais, distrital e municiais. A defesa da sociedade civil e o fortalecimento dos movimentos sociais que lutam pelas diferentes infâncias. A luta ainda se torna mais radial, uma vez que sem o Estado Democrático de Direito não há sustentação para efetivação do Estatuto e sim para o menorismo nas suas diferentes facetas. Desse modo, a luta é para que “o futuro não repita o passado”.
Notas e Referencias
Pauluze, Thaiza. Folha de São Paulo. Rio de Janeiro, 14.dez.2020 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/12/em-tres-anos-policiais-mataram-ao-menos-2215-criancas-e-adolescentes-no-pais.shtml.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
BRANDÃO, Arnaldo e CAZUZA. O tempo não para. PolyGram; Universal Music, 1989.
Imagem Ilustrativa do Post: four children standing on dirt // Foto de: Ben Wicks // Sem alterações
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