30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente: a influência dos movimentos internacionais de proteção na criação do Estatuto

03/08/2020

 Coluna Empório Descolonial / Coordenador Marcio Berclaz

O cenário devastador do fim da Primeira Guerra Mundial acabou por revelar a necessidade urgente, dentre todas as outras geradas pela guerra, de promover a proteção de um grande número de crianças e adolescentes, que haviam se tornado órfãos, ou que, por todos outros motivos, estavam entregues à própria sorte[1]. Assim, a recém-criada Liga das Nações, oriunda do tratado que pôs fim à grande guerra, institui, em 1919, o Comitê de Proteção da Infância, mesmo ano em que a Organização Internacional do Trabalho institui, em convenção, limite de idade para o exercício do trabalho infantil, bem como a proibição do trabalho no turno noturno.

Todavia, foi a Declaração dos Direitos das Crianças, de 1924, o primeiro instrumento internacional[2], que buscou traçar parâmetros mínimos de proteção e direitos às crianças, fomentando aos Estados-membros da Liga a criação de mecanismos que garantissem tais proteções e direitos.

A Declaração de Genebra, como tratamos no ponto anterior, ficou conhecida por trazer à baila a necessidade de “proteção especial às crianças” abandonadas e órfãs, assentando no primado da proteção independente de “qualquer consideração de raça, nacionalidade ou crença, deve ser auxiliada, respeitando-se a integridade da família, e deve ser colocada em condições de se desenvolver de maneira normal, quer material, quer moral, quer espiritualmente”[3].

No entanto, foi após os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, em que se reviveram os horrores das crianças órfãs e abandonadas por seus pais, que a Organização das Nações Unidas cria a UNICEF (United Nations International Child Emergency Fund), que teve relevante papel em socorrer as crianças vítimas da guerra[4].

A Declaração Universal de Direitos Humanos, proclamada em 1948 pela Assembleia das Nações Unidas, institui uma série de direitos ao indivíduo com o cerne na construção da dignidade humana, demonstrando todo o acúmulo histórico das conquistas humanas, através das lutas que emergem de sua própria emancipação[5]. Deste modo, a Declaração, como define Norberto Bobbio, representa a “consciência histórica” dos valores fundamentais da humanidade, em um mundo pós-guerra, influenciado pela Revolução Francesa e Revolução Soviética que não se contém, como aduz o autor, em “tábuas gravadas de uma vez para sempre”, mas em uma “síntese do passado e uma inspiração para o futuro”[6].

Constitui, deste modo, a DUDH, o grande marco na proteção de direitos fundamentais, servindo de inspiração para a proclamação dos Direitos das Crianças, o que veio ocorrer em 20 de novembro de 1959.

A Declaração dos Direitos da Criança (DDC) é considerada por Bobbio um “gradual amadurecimento” da Declaração Universal, na necessidade de mantê-la viva, através de um crescimento “a partir de si mesmo”[7]. Para justificar seu pensamento, o autor observa que o preâmbulo da Declaração de Direitos da Criança se refere à Declaração Universal, apresentando o direito da criança como uma “especificação” daquela dada aos direitos do homem. Tal ideia, continua o autor, parte da consideração de que as crianças necessitam de “uma proteção particular e de cuidados especiais”, justificando o ius singulare do direito da criança, em face ao ius commune dos direitos humanos. Essa especificidade se dá através de “um processo de especificação genérico”, em “respeito à máxima suum cuique tribuere[8].

Assim, a Declaração de 1959, consolida a necessidade de se reafirmar os direitos da criança, bem como a sua proteção por parte dos Estados que a ratificaram, avançando no paradigma de ser objeto para ser de direitos. O reconhecimento, por parte das crianças, de serem detentoras de direitos civis, é o primeiro passo para a consagração final de sujeitos de direitos, desvinculados da figura autoritária paterna, necessária para formalizar qualquer reconhecimento na antiguidade. A criança surge como detentora, em especial, de direitos à proteção e cuidado[9], antes e depois do nascimento, consolidando-se a ideia de desenvolvimento sadio e integral, que abarca as dimensões físicas, intelectuais, morais, espirituais e sociais, “numa condição de liberdade e dignidade, e, na adoção de leis para este fim, o interesse superior da criança deve ser a consideração determinante”[10].

Como se observa, a Declaração é, sem sombra de dúvidas, o maior avanço do início do século XX, mas atravessa a mesma problemática de sua antecessora, a Declaração de Genebra, por não “ser vinculativa e ter apenas um cariz simbólico”[11]. Nesse aspecto, de fato, a Declaração é a base para o entendimento moderno do Direito da Infância e Juventude, mas não criou instrumentos de vinculação[12], até o surgimento da Convenção sobre os Direitos das Crianças, em 1989.

Entre a proclamação da DDC de 1959 e a Convenção sobre Direitos das Crianças de 1989, outros importantes acontecimentos na seara internacional se sucederam, como bem salienta Angélica Barroso Bastos: o Congresso Pan-Americano, de 1963, que teve sede em Mar Del Plata, na Argentina, foi cenário de forte debate sobre a definição de Proteção Integral da Criança[13]. Em 1969, ocorre a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, mais conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, onde se fortaleceu a tríade família-sociedade-Estado, ficando definido no seu art. 19, que “toda criança tem o direito de proteção que a sua condição de menor requer, por parte da família, da sociedade e do Estado”[14]. Ainda, continua a autora, os Pactos Internacionais dos Direitos Civis e Políticos e os dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotados na XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, de 1966, também reforçam a proteção dos direitos das crianças.

O artigo 24 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos[15] estabelece que toda criança, sem discriminação alguma, em respeito à sua condição de menor, deve receber proteção da sua família, da sociedade e do Estado, possuindo o direito de ser registrada após o nascimento, bem como usufruir de um nome. Também tem a criança o direito de adquirir uma nacionalidade.

Todos esses avanços[16], no âmbito dos Direitos Humanos das Crianças, chamam a atenção da comunidade internacional, sendo proclamado pela ONU o ano de 1979, como o Ano da Criança.

Os estudos realizados na década seguinte ao Ano da Criança, chefiados pela Polônia, esbarraram em questões internacionais delicadas, no auge da chamada Guerra Fria. Assim, os regimes soviéticos eram acusados de prestigiarem os direitos econômicos, sociais e culturais, sendo que a ambição do projeto apresentado em 1978 pela comissão polaca esbarrou na falta de adesão dos Estados-membros a uma série de prestações sociais previstas pelo projeto[17]. O lento processo para que todos chegassem a um consenso universal só foi possível em 20 de novembro de 1989, no 30º aniversário da Declaração de Direitos da Criança.

A Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) nasce como instrumento internacional de maior aceitação entre os Estados-membros[18]. Desse modo, a CDC se torna o primeiro tratado universal a combinar direitos econômicos, sociais e culturais, bem como civis e políticos, possuindo uma visão abrangente na proteção, promoção e afirmação de direitos[19].

Assim, volvidos trinta anos da Declaração de Direitos da Criança, a Convenção sobre os Direitos das Crianças se diferencia das obrigações de natureza moral que se impunham na Declaração de 1959, uma vez que ocorre a vinculação jurídica dos Estados que nela são partes, os responsabilizando pela materialização e concretização dos direitos previstos pela Convenção[20].

Reis Monteiro leciona que os direitos da criança podem ser sintetizados em Três Ps[21]: a) Prestação; b) Proteção, e; c) Participação.

A CDC não trouxe somente direitos emancipatórios, mas também redigiu diretrizes principiológicas para sua fundamentação, como conteúdo normativo, como assinalam Paulo Guerra e Helena Boleiro[22]; Princípio da não discriminação; Princípio de que a criança tem direito à vida, à sobrevivência e ao desenvolvimento; Princípio do respeito pelas opiniões da criança; Princípio do interesse superior da criança.

Deste modo, a soma de direitos humanos gerais e direitos da criança especiais[23] (manutenção de laços familiares, reconhecimento da imaturidade, dependência, vulnerabilidade e necessidades de desenvolvimento, proteção contra formas de negligência, violência e exploração; necessidades das crianças com limitação física ou psíquicas, ou daquelas colocadas em instituições alternativas aos lares, e crianças imigrantes, refugiadas, em conflito com a lei; e direito à recreação) firma de vez, a grande transformação dos Direitos das Crianças, e consequentemente a mudança de paradigma de sujeitos objetos de proteção para sujeitos detentores de direitos – sujeitos autônomos de direito; numa aquisição que torna as questões da infância primordiais aos Estados-partes, fazendo do princípio-guia a grande ferramenta de busca pela efetividade dos direitos infantis.

Outras regras foram criadas, no âmbito internacional, sobre a instalação e administração das justiças especializadas nos direitos da criança, as Regras de Beijing de 1985, que estabelecem uma série de direitos e garantias de matéria processual, bem como indica que a Justiça de Menores deve primar pela “proteção dos jovens e a manutenção da paz e da ordem na sociedade”, associando-se ao desenvolvimento nacional de cada país[24].

As Diretrizes de Riade foram criadas em 1990, constituindo princípios orientadores da ONU sobre a prevenção da delinquência juvenil. O conjunto de princípios busca a promoção global pela prevenção à criança e jovens em situações de vulnerabilidade: abandonados, negligenciados, maltratados, explorados, expostos a abusos e às drogas, e à vulnerabilidade social[25].

 

Notas e Referências

[1]   BASTOS, 2015, p. 38.

[2]   Neste sentido, GUERRA, Paulo; BOLEIRO, Helena. A Criança e a família: uma questão de direito(s). Coimbra: Editora Coimbra, 2014, p. 13; BASTOS, 2015, p. 38-39; MONACO, Gustavo Ferraz de Campos. A Declaração Universal dos Direitos das Crianças. Coimbra: Editora Coimbra, 2004, p. 103. Vale lembrar, conforme assevera Reis Monteiro (2010), “a palavra ‘direito’ só apareça no seu título (declaração), não criou propriamente direitos, nem vinculou seus Estados-membros, servindo apenas de carta motivadora”.

[3]   GUERRA; BOLEIRO, op. cit., p. 13.

[4]   BASTOS, 2015, p. 39. Monteiro (2010, p. 30) salienta que em 1946 foi criado o International Children’s Emergency Fund (ICEF), adquirindo seu estatuto permanente em 1953, quando assumiu a nomenclatura UNICEF.

[5]   BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 20.

[6]   Bobbio explica que “a comunidade internacional se encontra hoje diante não só do problema de fornecer garantias válidas para aqueles direitos, mas também de aperfeiçoar continuamente o conteúdo da Declaração, articulando-o, especificando-o, atualizando-o, de modo a não deixá-lo cristalizar-se e enrijecer-se em fórmulas tanto mais solenes quanto mais vazias” (Ibidem, p. 21).

[7]   BOBBIO, 2004, p. 21.

[8]   Ibidem.

[9]  No que tange ao superior interesse, é observado no Princípio 2º: “A criança gozará de uma protecção especial e beneficiará de oportunidades e serviços dispensados pela lei e outros meios, para que possa desenvolver-se física, intelectual, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade. Ao promulgar leis com este fim, a consideração fundamental a que se atenderá será o interesse superior da criança”. O Princípio 3º traz os direitos sobre nome e nacionalidade: “A criança tem direito desde o nascimento a um nome e a uma nacionalidade”. Já no que diz respeito ao direito à saúde, o Princípio 4ª: “A criança deve beneficiar da segurança social. Tem direito a crescer e a desenvolver-se com boa saúde; para este fim, deverão proporcionar-se quer à criança quer à sua mãe cuidados especiais, designadamente, tratamento pré e pós-natal. A criança tem direito a uma adequada alimentação, habitação, recreio e cuidados médicos” (ONU. Declaração de Direitos da Criança. 1959. Disponível em: <http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/ tidhuniversais/dc-declaracao-dc.html>. Acesso em: 17 jan. 2017).

[10]  GUERRA; BOLEIRO, 2014, p. 14.

[11]  TOMÁS, Catarina. Há muitos mundos no mundo. Cosmopolitismo, participação e direitos da criança. Porto: Edições Afrontamento, 2011.

[12]  Neste ponto, não podemos sequer falar em efetividades de direitos, mas na quebra de paradigmas e a construção do conceito moderno de direito da criança, fora nas palavras de Reis Monteiro, “um documento revolucionário” (MONTEIRO, 2010, p. 30).

[13]  BASTOS, 2015, p. 40.

[14]  Disponível em: <http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>. Acesso em: 17 jan. 2017.

[15]  Disponível em: http://www.cne.pt/sites/default/files/dl/2_pacto_direitos_civis_politicos.pdf. Acesso em: 17 jan. 2017.

[16]  Vale conhecer a observação feita por Gustavo Ferraz de Campos Mônaco, ao lembrar a Conferência de Haia de Direito Internacional Privado, de 1951, além da Organização dos Estados Americanos, regulamentando uma série de situações da vida privada da criança, como a alimentação, atribuição da guarda de filhos, tutela, sequestro de filhos e adoção (MÔNACO, 2004, p. 105).

[17]   Sobre as nuances dos estudos, a obra raiz deste trabalho, da autoria de A. Reis Monteiro (2010, p. 30-33).

[18]    BASTOS, 2015, p. 42.

[19]  WOLFGANGBENEDEK (Ed.). Direitos humanos da Criança. Compreender os Direitos Humanos: manual de educação para os direitos humanos. Traduzido e disponibilizado em E-book pelo Instituto Ius Gentium Conimbrigae, Centro de Direitos Humanos, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal. European Training and Research Centre for Human Richts and Democracy (ETC). Graz, Áustria, p. 310. Disponível em: <http://www.fd.uc.pt/hrc/manual/index.html>. Acesso em: 01 mar. 2017.

[20]  GUERRA; BOLEIRO, 2014, p. 15. Neste mesmo sentido, Maria João Gonçalves e Ana Isabel Sani lecionam que a CDC abandona o caráter não vinculativo e passa “a ser um documento em que todos os Estados-partes teriam uma posição ativa, adaptando para isso as suas legislações em conformidade com a Convenção. A CDC tem força imperativo legal em todos os países signatários, num total de 192 países (com exceção dos EUA e da Somália), ou seja, passa a integrar o ordenamento jurídico dos Estados-signatários” (GONÇALVES, Maria João; SANI, Ana Isabel. Instrumentos Jurídicos de Proteção às Crianças: do passado ao presente. E-Cadernos CES, n. 20, p. 189-190, 2013. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2017.

[21]    MONTEIRO, 2010, p. 40.

[22]  Ibidem, p. 16-17. Neste mesmo sentido, ALBUQUERQUR, Catarina. Ação Formativa: Avanços e Desafios na Defesa dos Direitos da Criança. O princípio do interesse superior da criança. 2014. Disponível em: <www.cnpcjr.pt/preview_documentos.asp?r=4924&m=DOC>. Acesso em: 20 fev. 2017.

[23]  MONTEIRO, 2010, p. 40. Destaque feito pelo nobre autor, sobre os direitos especiais exigidos para as crianças, formulados pela CDC.

[24]   GUERRA; BOLEIRO, 2014, p. 20-21.

[25]   Ibidem, p. 21.

 

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