Por Rosivaldo Toscano Jr. – 06/10/2016
No dia em que a Constituição completa 28 anos, ganha um presente de grego do seu Guardião. A nova decisão do STF acerca da presunção de inocência, proferida nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade – ADCs – de nºs 43 e 44, mais uma vez subverte a Constituição. Quis transformar um princípio constitucional em um pan-princípio.[1] Mas, tão somente, criou um homônimo impostor. Ou seria um órfão normativo? Esse suposto princípio comete uma falsidade ideológica hermenêutica.
Como há muito ensina Lenio Streck, aperfeiçoando a construção de Friedrich Müller, há uma diferença ontológica entre regra e princípio. Mas isso também importa dizer que não existe regra sem princípio nem princípio sem regra. Só podem ser compreendidos dentro dessa diferença. Um princípio sem regra perde toda sua densidade normativa e passa a se tornar um mero conceito assertório, solto no espaço da vontade de poder e do arbítrio. Uma regra sem princípio é invalida. Isto é, o que o STF usou como argumento não é o princípio jurídico decorrente do art. 5º, LVII, da Constituição.
Sendo mais claro acerca da diferença ontológica entre regras e princípios – os verdadeiros, os princípios pragmáticos ou problemáticos,[2] e não esse embuste retórico ad-hoc criado discursivamente –, regras e princípios são diferentes, mas não estão cindidos. Os princípios são a inserção do mundo prático no direito. Não são uma “abertura da interpretação”, como querem os neopositivistas. Isso significa que não se aplicam princípios isoladamente (ou o que seria do direito se o juiz pudesse julgar sempre com base no princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, diretamente?), como está fazendo o STF. Nem as regras são aplicadas diretamente. Isso porque não há uma regra válida que não tenha um princípio constitucional ou convencional que a sustente normativamente. Toda regra só pode ser entendida a partir da existência de um princípio instituidor. E os princípios são sempre considerados sob a ótica constitucional. [3] Princípios validam ou invalidam regras. Sendo assim, não existem, dentro de uma ideia de Estado de Direito, princípios que não tenham um fundamento na Constituição e nos Tratados internacionais incorporados à nossa ordem jurídica, como ressaltamos.
Não há como, dentro de uma atribuição de sentido autêntica (Heidegger), dentro da tradição (Gadamer), dizer qual o alcance do princípio da presunção de inocência, sem considerar a redação do art. 5º, LVII, que diz que “LVII - ninguém será considerado culpado até o TRÂNSITO EM JULGADO de sentença penal condenatória;”.
Que tal a redação expressa do art. 283 do CPP, com redação de 2011?
“Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de SENTENÇA CONDENATÓRIA TRANSITADA EM JULGADO ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.”
A atribuição de sentido precisa ser autêntica no respeito aos constrangimentos semânticos e à tradição em que está inserido o ator jurídico. Isto significa uma dupla limitação: a) não pode julgar por critérios outros[4] que não o normativo, nos termos acima; b) não pode produzir sentidos corrompidos, fora da verdade como experiência, como produção de um sentido intersubjetivamente compartilhado e aceito como autêntico.
Quer dizer, há constrangimentos semânticos invencíveis, dentro de uma atribuição intersubjetiva de sentido autêntica. Há, como diz Lenio Streck, “uma entificação minimamente compreensível no plano do imaginário dos juristas”. Há conceitos compartilhados pela comunidade que não autorizam (a autoridade da tradição – Gadamer) a que se entenda que a expressão “trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, contida no art. 5º, LVII, da Constituição, que dá a densidade normativa do verdadeiro princípio constitucional da presunção de inocência, levem à conclusão de que pode o magistrado determinar o início do cumprimento da pena, tratando alguém como culpado enquanto pende ainda recurso.
A construção discursiva da decisão do STF pode ser assim sintetizada: retirou-se a densidade normativa do princípio da presunção de inocência, que se encontra no art. 5º, LVII, da Constituição, destruindo-o, porque, como visto, não há princípio pragmático (como os princípio constitucionais) sem regra. O homônimo impostor, então, colocado em seu lugar como se princípio constitucional fosse, revogou o artigo do Código de Processo Penal cuja parte repete quase que literalmente – “de trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, do art. 5º, LVII, da CF, para “sentença condenatória transitada em julgado”, do art, 283 do CPP – o texto constitucional que dá densidade normativa ao verdadeiro princípio da presunção de inocência.
A vontade de poder põe em seu vazio ético razões de utilidade – que podem ser expressas ou ocultas por meio da interpretação forçada (inautêntica).[5] Ativismo judicial, atribuição inautêntica de sentidos, construção de princípios ad-hoc, conceitos assertórios e ponderação/razoabilidade, estão todos aí. E por falar em princípios, ao contrário do que o senso comum teórico alardeia, eles não promovem uma abertura da interpretação. Não há como usá-los para fins de libertinagem normativa. Os princípios só podem ser vistos em sua diferença ontológica com as regras adjacentes.
O guardião da Constituição não tem cheque em branco para reformar a Constituição e revogar cláusula pétrea. Muito menos para interpretar em tiras, desprezando a expressão nuclear de um inciso da Constituição que trata exatamente da questão em julgamento.
O mais grave. Esse caso não é nem um hard case. Trata-se de um soft case elementar, mas transformado em lost case diante da vontade de poder. Estamos vivendo tempos difíceis. Há um estado de exceção hermenêutico em franca expansão. Esse ativismo judicial é ativismo prejudicial à normatividade, aos direitos fundamentais e à integridade da ordem jurídica.
Enfim, em tempos de utilitarismo e pragmatismo importando de Miami, mas sem pagar o imposto da compatibilização com a nossa tradição, pode-se tudo. Pra quê hermenêutica jurídica? Meu receio agora é que o STF revogue a lei da gravidade. Será o dia do Juízo Final. Salve-se quem puder!
Notas e Referências:
[1] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito, op. cit., p. 102-103.
[2] Cf. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisão judicial e o conceito de princípio: a hermenêutica e a (in)determinação do direito, op. cit., 2008, p. 50.
[3] E diz Streck “Por isso, todo ato interpretativo (portanto, aplicativo) é ato de jurisdição constitucional. Mesmo quando o problema parece estar resolvido mediante a aplicação da regra, deve o intérprete – e se trata de um dever constitucional que tem a sua dimensão ditada pelo nível de seus pré-juízos legítimos (ou ilegítimos) – verificar se o princípio que subjaz à regra não aponta em outra direção (quando não se está diante de simples análise paramétrica, em que a regra afronta princípios ou preceitos constitucionais).” (STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas, op. cit., p. 315).
[4] Como por razões de utilidade, valores pessoais ou ideologia.
[5] SANTOS JÚNIOR, Rosivaldo Toscano dos. Controle Remoto e Decisão Judicial: quando se decide sem decidir. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 169.
. Rosivaldo Toscano Jr. é Doutor em Direitos Humanos pela UFPB, mestre em direito pela UNISINOS, membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, membro da Associação Juízes para a Democracia – AJD e juiz de direito em Natal, RN. .
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