Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho
“Não é o braço que é injusto, mas a arma que é muito pesada – e alguns pesos são excessivos para a mão humana.” (Benjamin Constant).
O Juízo da 4a Vara Cível da Comarca de Santos (SP), em sede de cumprimento de sentença, determinou a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) do executado, além de condicionar a saída dele do País ao oferecimento de garantia para pagamento da dívida em execução.
Contra a decisão um habeas corpus foi impetrado junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo. Não houve, entretanto, a concessão da ordem sob o fundamento de que o remédio constitucional fora utilizado como sucedâneo recursal.
Interpôs-se então recurso ordinário perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ), e a Terceira Turma, no acórdão em pauta, depois de traçar um escorço histórico sobre o cabimento do habeas corpus, afastou prontamente a possibilidade do seu manejo contra decisões que suspendam habilitação para dirigir veículos automotores por não vislumbrar “situação de dano efetivo ou de risco potencial ao jus manendi, ambulandi, eundi ultro citroque”. Entretanto, no concernente à ordem de anotação, pela Polícia Federal, de restrição da saída do paciente-executado do País sem a oferta de garantia à execução, o desfecho que se seguiu foi diverso, isto é, decidiu-se em favor da necessidade de examinar se houve ou não abuso de poder ou ilegalidade da medida judicial capaz de, em tese, violentar ou coagir a liberdade de locomoção do paciente.
Ao fim e ao cabo, o STJ negou provimento ao recurso a partir dos seguintes argumentos:
- O juiz de base aplicou medidas indiretas ao pagamento sem observar contraditório e dever de motivação adequada. A falta de atendimento a essas exigências já seria suficiente para macular a validade do referido ato judicial.
- Na hipótese dos autos, contudo, em específico na impugnação ao cumprimento de sentença, não se atendeu a determinação contida no art. 805, parágrafo único, CPC/2015, que obriga o executado, sempre que arguir a eleição pelo exequente de medida executiva mais gravosa entre todas as possíveis, a indicar outros meios mais eficazes e menos onerosos, sob pena de manutenção dos atos executivos já determinados.
- Frente à não indicação de meio executivo menos gravoso e mais eficaz, a única solução aplicável ao caso concreto é a manutenção da medida restritiva, ressalvada a possibilidade de sua modificação superveniente pelo juízo competente na hipótese de ser apresentada sugestão de meio alternativo.
- Como esse dever de boa-fé e cooperação, insculpido no citado parágrafo único do art. 805, foi desatendido, não se caracterizou a manifesta ilegalidade ou abuso de poder a ser reconhecido pela via do habeas corpus, razão pela qual a ordem pretendida não deve ser concedida.
Além disso, da leitura do acórdão colhem-se premissas argumentativas pouco convincentes, bastante controvertidas e até paradoxais. Algumas delas, sobretudo as mais impactantes, juntamente com os fundamentos centrais do julgamento em tela, serão enfrentados ponto por ponto ao longo deste ensaio.[2]
A determinação judicial para suspender Carteira Nacional de Habilitação: ofensa direta e imediata à liberdade de locomoção
Uma primeira crítica é respeitante à posição que recrudesce a excepcionalidade do habeas corpus.
É óbvio que esse remédio é mesmo excepcional, de natureza subsidiária, como se depreende da própria Constituição de 1988, cujo teor autoriza a concessão de ordem em mandado de segurança “para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições de Poder Público” (CF/88, art. 5o, LXIX). Pois havendo no ordenamento constitucional brasileiro a previsão do mandado de segurança, em moldes normativos bastante amplos, sobrou para o habeas corpus a função típica de proteger o indivíduo contra medidas restritivas a sua liberdade de ir e vir – nas palavras do constituinte, “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder” (CF/88, art. 5o, LXVIII).
Entretanto, a Carta Magna não autoriza interpretações em socorro do agravamento dessa restrição, a ponto de conferir ao habeas corpus feição de manejo extremamente problemática porque atrelada sobremaneira à subjetividade do órgão julgador. Indo ao que interessa: nada em absoluto justifica a conclusão albergada pela Terceira Turma do STJ no sentido de que, em matéria cível, a utilização do habeas corpus contra ato judicial deve ser tanto ou mais limitada que em matéria penal. É que pouco importa de onde ou de qual autoridade proveio a decisão restritiva, sendo suficiente a configuração da ameaça ou do atentado por ilegalidade ou abuso de poder à liberdade de locomoção. Recorde-se, aliás, que a boa doutrina, afinada ao texto constitucional e à própria ideia de proteção aos direitos fundamentais, é firme em sustentar que “[a] liberdade de locomoção há de ser entendida de forma ampla, afetando toda e qualquer medida de autoridade que possa em tese acarretar constrangimento para a liberdade de ir e vir”.[3]
Contudo, essa premissa limitante teve, no contexto do acórdão, sua razão de ser: foi com apoio nela, e também no argumento do uso do remédio constitucional como sucedâneo recursal, que a Turma Julgadora decidiu que a suspensão de CNH não implicaria ofensa direta e imediata à liberdade de locomoção. Optou-se pela resposta mais cômoda, uma “saída pela tangente” que transparece, em primeiro lugar, despreocupação com as particularidades do caso em julgamento. Era mesmo indispensável essa atenção à facticidade, vale dizer, a destinação que o paciente impunha ao veículo, se empregado para fins irrelevantes ou para atender necessidades do dia a dia (ida e volta do trabalho ou da escola, mobilidade dos filhos em suas atividades diárias, condução de uma mãe doente, viagens profissionais, etc.). Sem tal cuidado, jamais se poderia afastar o habeas corpus como meio apropriado e eficiente para combater ato decisório que suspendeu CNH.
Não só: o julgado insufla indiferença e falta de sensibilidade à complexa tessitura da realidade, uma vez que se vive hodiernamente numa sociedade na qual o Estado optou, décadas a fio, por uma política de priorização do automóvel. As cidades, pouco a pouco, sofreram adaptações em razão de novos padrões de densidade, zoneamento e transporte, e se antes, quando surgiram, o que se tinha eram espaços feitos para encontros e interações entre pessoas, hoje verifica-se uma inversão, ou seja, as cidades para pessoas transformaram-se em cidades para carros.[4]
Nessa linha, o entendimento exarado pela literatura especializada:
“No século XX, o que se vê é a priorização quase que absoluta dos espaços para os veículos. O planejamento das cidades se dá, por conseguinte, em torno de questões referentes a viadutos, construção e alargamento de vias, sinalização de trânsito e estacionamentos: se entende os veículos como meio prioritário de circulação. Para consolidar essa nova forma de perceber e organizar o espaço urbano, foi necessário cindir veículos e pedestres, sendo construídos espaços próprios para aqueles que circulam a pé: as calçadas. Assim, quando o automóvel surgiu como veículo prioritário, as vias já estavam organizadas, de forma que este veículo pôde circular livremente nas malhas viárias. A emergência do automóvel e seus privilégios levaram-no ao topo da cadeia tecnológica.”[5]
Disso derivaram muitos problemas (congestionamentos em função do acúmulo de veículos, poluição, estresse no trânsito, mortes por acidentes, aposentadorias precoces por invalidez e diminuição da riqueza pela perda da produtividade das pessoas acidentadas, aumento dos gastos com a saúde pública), e a política pública atual claramente sinaliza-se para caminhos alternativos (adoção de parquímetros, redução do uso de carros, limitação de estacionamentos nas ruas, pedágios urbanos, melhoria nos sistemas de transportes públicos, conscientização popular, semáforos que favoreçam andar a pé e de bicicleta). De todo modo, impossível desprezar o conjunto de ideias que hoje alimenta o imaginário das pessoas e, por conseguinte, forja hábitos e capitaneia suas decisões. Porque as liberdades individuais devem ser encaradas de maneira amplíssima, e ainda considerando que a maioria absoluta dos indivíduos não adquire veículos apenas por status e sim em função de necessidades intimamente relacionadas com a garantia constitucional de ir e vir, é que não se mostra adequada a jurisprudência que se vem formando no sentido de obstar a utilização do habeas corpus para derrubar ordens judiciais que suspendem CNHs.
Um adendo final a este tópico. Na definição de qual das medidas restritivas é a mais eficaz em inibir o direito de ir e vir do homem médio, a razão faz crer que a suspensão da CNH subjuga em larga distância ressalvas ao direito de viajar para o exterior. É óbvio que atos judiciais endereçados à apreensão de passaportes ou similares restringem, para mais ou para menos, a liberdade de locomoção. Entretanto, a verdade é que viagens para o exterior, a trabalho ou a passeio, são feitas por uma minoria de brasileiros, ao passo que é muito superior o número de cidadãos habilitados para dirigir e que diariamente colocam veículos automotores em circulação com os mais variados objetivos.[6]
Confusão entre medidas coercitivas e punitivas: atentado à ordem jurídica vigente
Há múltiplas estratégias de subversão da obra legislativa. À guisa de exemplos, pode-se fazê-lo de modo destemido, por intermédio de decisões que desprezem sem cerimônia o direito positivo em favor de soluções compromissadas tão só à particular ideia de justiça daquele que interpreta. Às vezes, argumentos são engenhosa e sutilmente construídos com o intento de moldar, à maneira de argila úmida, uma premissa decisória que em nada reverbera o texto interpretado, perseverando ao final pelo vigor de seu apelo moral, emotivo, filosófico, sociológico e ou político. Têm-se outrossim as “interpretações-ilha”, fruto do agrilhoamento do ator interpretante a tal ou qual dispositivo legal, e que obnubilam a visão para a totalidade do direito legislado e suas minúcias.[7] Seja como for, o apego a vertentes teóricas ideologicamente progressistas (para ilustrar: Neoconstitucionalismos e Instrumentalismo do Processo), a dificuldade em suspender os próprios pré-conceitos, o exercício de analogias e distinções inexatas entre figuras jurídicas, o mau uso de princípios e sua criação inflacionária sem alicerce normativo, o fetiche por regramentos abertos anunciados por setores da doutrina como revolucionários e até mesmo o comodismo avultam-se como formidáveis inimigos a entorpecer a mente de quem julga e a desviá-lo do caminho da legalidade.
Pois foi o que sucedeu, retornando à análise do decidido, quando o juiz de origem determinou as citadas medidas restritivas em sede de cumprimento de sentença: a adulteração da lógica interna do ordenamento jurídico. De dentro para fora, o modus operandi interpretativo escorou-se em dispositivo legal cuja abertura aparentemente legitima pretensões às mais criativas (e perigosas) destinadas a materialização de atos práticos – espécie de “cavalo de Troia legislativo”, que autoriza a determinação de todas as medidas indutivas, coercitivas ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária (CPC/2015, art. 139, IV).[8] Em miúdos: o preenchimento judicante dessa cláusula legal de efetivação deu-se à revelia das minudências do ordenamento jurídico, como se estivesse o julgador diante de um deserto legislativo, e por consequência uma medida caracteristicamente penal metamorfoseou-se em ato direcionado a dobrar a vontade do executado. Por força alquímica, uma sanção penal assumiu natureza de medida coercitiva.
A alusão acima é específica à medida defenestrada pelo STJ sem exame de profundidade: a suspensão de habilitação para dirigir veículo automotor. Com isso não se pretende afirmar que a ordem judicial impeditiva do direito de viajar para o exterior seja pouco ou quase nada impactante. Afinal de contas, o Código de Processo Penal (CPP) a regula e lhe atribui natureza acautelatória, uma das alternativas legais à prisão preventiva (CPP, art. 320), cujo deferimento exige respeito ao contraditório somado às provas do fumus commissi delicti e periculum libertati. Não só, pois como ensinam Guilherme Carreira e Vinicius Caldas da Gama e Abreu, entrar num país e dele sair, inclusive de seu próprio, é uma das facetas mais evidentes da liberdade de ir e vir que, além de prevista no art. 5o da Constituição, é universalmente tão cara que há regramento específico sobre ela em diversas Convenções e Tratados internacionais (art. 12, Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; art. V, “d”, II, Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; art. 10, Convenção sobre os Direitos da Criança; art. 22, Pacto de San José da Costa Rica; art. 13, Declaração Universal de Direitos Humanos).[9]
No entanto, para o ordenamento jurídico pátrio, a primeira medida (= suspensão de CNH) é superior em gravidade porque prevista no art. 47, III, do Código Penal, entre as penas restritivas de direito (subespécie penas de interdição temporária de direitos), lado a lado das proibições (i) de exercer cargo, função, atividade pública ou mandato eletivo; (ii) de desempenhar profissão, atividade ou ofício que dependam de habilitação especial, de licença ou autorização do poder público; (iii) de frequentar determinados lugares; e (iv) de inscrever-se em concurso, avaliação ou exames públicos. Não bastasse, está positivada entre as penalidades aplicáveis aos chamados crimes de trânsito, com detalhamentos distribuídos em cinco artigos de lei (Lei 9.503/97, arts. 292 a 296).[10]
É ponto pacífico que o Direito Penal tem por finalidade a tutela de bens jurídicos cuja importância sobressai para assegurar uma convivência pacífica, livre e igualitária entre os homens quando isso não for possível por medidas de controle sócio-políticas menos gravosas.[11] Daí seu predicado subsidiariedade: à lei penal preferem-se outros mecanismos institucionais que incidam em pujança inferior, haja vista que a sanção penal, como resposta à prática ilícita, representa a mais grave e traumática intervenção do Estado na liberdade individual.
Pois bem. Elo por elo da corrente decisória, que culminou no acórdão objeto da presente análise, faltou aos julgadores atenção para a mensagem ressoada do direito legislado. Ninguém pode duvidar da complexidade que é o trabalho orientado à criação e disciplina de sanções penais, desembocando num cálculo intrincado que leva em conta elementos vários, como a proporção da severidade da pena em relação à gravidade do delito correspondente, o efeito pedagógico e dissuasório perante a sociedade, o impedimento de se atingir familiares ou pessoas estranhas à infração penal e a vedação de impor tratamento cruel ou degradante ao condenado. Não por acaso a doutrina de há muito se esforça no aperfeiçoamento de uma Teoria da Pena – entremeada de conceitos, classificações e categorias, preocupação com o aspecto histórico, análise de visões teóricas, demarcação de princípios e finalidades – a fim de contribuir e jogar alguma luz em toda essa problemática.
Daí a primeira dificuldade em aceitar-se legítimos atos judiciais que impliquem transferência ou deslocamento de sanções criminais para o âmbito de execuções civis. Se determinada medida está alocada no ordenamento jurídico na condição de pena restritiva de direito, parece inequívoco concluir que houve prévio empreendimento de engenharia legislativa, complexo como há de ser, com sopesamentos e raciocínios fundados na proporcionalidade, em atenção sobremodo a seu potencial retributivo-preventivo. Rememorando o dito popular: no caso em exame, o juiz quis matar mosca com tiro de canhão e assim desdenhou a diretriz normativa que atribui ao Direito Penal papel de um executor de reserva,[12] atuante apenas quando inexistentes meios menos contundentes e restritivos para a tutela de determinado bem jurídico.
Em segundo lugar, não se ignora que em matéria de Direito Penal vige o princípio da legalidade estrita que, afora o fato de imprimir a exclusividade da lei para a criação de delitos e penas (“não há crime sem lei que o defina, nem pena sem cominação legal”; CF/88, art. 5o, XXXIX), funciona como navalha descriminalizadora por auxiliar no programa deflacionário dos bens e proibições penais, idônea para excluir, quando injustificados, muitos tipos penais consolidados, e mesmo para restringir sua extensão por meio de mudanças estruturais (= princípio da lesividade).[13] Lembre-se: a Constituição de 1988, em face da alteração advinda pela Emenda Constitucional 35/2001, sequer admite a edição de medida provisória sobre matéria penal (CF/88, art. 22, I).[14]
Por afiançar postura judicial impondo a um cidadão-jurisdicionado sanção penal às avessas em sede de cumprimento de sentença, o STJ não apenas desatendeu o princípio da legalidade estrita senão suscitou questões que vão desde a ausência mesma de previsão legal específica, da sanção e do tipo penal correspondente, à própria (in)competência do juízo cível para assim atuar. Eufemismos ou trocas de nomenclaturas no máximo ocultam sob o tecido da linguagem o rigor restritivo da medida judicial, mas não têm a robustez de eliminá-lo ou apaziguá-lo. A realidade não compadece perante a candura das palavras...
Mais: o processo (= devido processo legal), em sua substancialidade constitucional, é instituição de garantia (regulado no Capítulo I do Título II, que cuida dos direitos fundamentais de primeira geração), não presta serventia ao poder estatal, e sim tem por papel a tutela da liberdade das partes em relação ao Estado-juiz, garantindo uma atuação jurisdicional controlada, distante de abusos ou excessos.[15] Ocorre que, no caso concreto, a medida restritiva de direitos foi aplicada sem a observância do devido processo legal, ausente procedimento jurisdicional específico atento às garantias fundamentais processuais que servissem de anteparo ao réu contra eventuais desvios e práticas autoritárias empreendidas pelo Estado-juiz.
A referência acima não é concernente ao desrespeito imprimido ao contraditório e ao dever de fundamentação ocorrido no bojo do procedimento de cumprimento de sentença, como registrou o próprio acórdão e que merecerá abordagem no tópico seguinte. Enfim, coisa alguma adianta argumentar que se tinha título executivo judicial e que, portanto, houve antes fase procedimental cognitiva, respeitados ampla defesa, contraditório e demais garantias contrajurisdicionais, pois ali se discutiu apenas e tão somente a condenação em dinheiro e os fundamentos de fato e de direito a ela inerentes, nada absolutamente sendo debatido sobre uma pretensão acusatória e sua consequente sanção criminal.
Por fim, como bem notado por Marcelo Abelha Rodrigues, não se ignore que, diferentemente do modelo anglo-americano, no qual aplicar medidas de coerção para promover a execução de ordens judiciais (coercitive power) e aplicar sanções (civil or criminal contempt) pelos atos de improbidade processual constituem exercício do contempt of court – do mesmo instituto deriva um poder que permite a imposição de sanções civis e criminais, além de medidas coercitivas sob o largo espectro do que lá se conhece como “ofensa à dignidade e autoridade da justiça” –, no Brasil, até por razões históricas e culturais, as duas figuras possuem regimes jurídicos distintos e diferentes finalidades.[16] Ou seja, por aqui os incisos III e IV do art. 139 do CPC/2015 definem as medidas punitivas e medidas executivas aplicáveis no âmbito dos procedimentos jurisdicionais cíveis, cada qual com objetivos bem delineados, as primeiras destinadas a sancionar atos de improbidade processual, as últimas voltadas a viabilizar (direta ou indiretamente) o cumprimento de ordens judiciais.[17] Bom ou ruim este é o modelo brasileiro, e a ele o Judiciário deve tributo.
A Constituição Federal interpretada à luz da lei infraconstitucional
Até aqui o esforço teve por foco evidenciar que as ordens judiciais de suspensão de CNHs e apreensão de passaportes em execuções civis são inconstitucionais por malferir, em proporções maiores ou menores, a liberdade de ir e vir.[18] É até ingenuidade argumentar a fim de tentar purgar a pulsão de gravidade inerente a ambas as medidas, pois é essa sua característica que as torna tão atraentes àqueles cuja pretensão é satisfazer obrigações civis. Aliás, conforme visto, uma e outra foram aproveitadas pelos Direitos Penal e Processual Penal precisamente em razão de seu potencial restritivo, retributivo e ou preventivo.
Avance-se, agora, com o intenção de desvelar outra inadequação que igualmente depõe contra o raciocínio responsável pela negativa da ordem postulada em habeas corpus.
Rememore-se, de entrada, um dado relevantíssimo, de cunho objetivo, constante do acórdão (e já trazido no início deste ensaio): o juiz de base aplicou “medidas coercitivas indiretas” sem observar o contraditório e o dever de fundamentação das decisões judiciais. E, logo na sequência, lê-se o registro de que “[a] falta de atendimento a essas exigências seria suficiente para macular a validade de referido ato processual e, por conseguinte, impedir a utilização desse meio de coerção indireta.” Mas então seguiu-se rumo inusitado, como se constata por apontamentos também extraídos da própria decisão: i) na impugnação ao cumprimento da sentença o paciente-executado não se atentou para a determinação constante do art. 805, parágrafo único, do CPC/2015; ii) sob a égide do CPC/2015, o executado não está autorizado a apenas alegar a invalidade dos atos executivos, sobretudo quando adotados meios que se mostrem exageradamente gravosos, devendo indicar proposta de adimplemento da obrigação que se lhe apresente menos onerosa e, ao mesmo tempo, mais eficaz a satisfação do crédito exequendo; e iii) por não terem sido observados os deveres de boa-fé e cooperação (CPC/2015, art. 805, parágrafo único), não se configurou manifesta ilegalidade ou abuso de poder a ser reconhecido pela via do habeas corpus, razão pela qual a ordem foi negada.
Abstraindo a questão da inconstitucionalidade do uso das medidas restritivas em epígrafe em prol da satisfação de obrigações cíveis, importa perceber que o STJ simplesmente validou atuação judicial arbitrária distinguida por uma decisão surpresa e não fundamentada. Suplantou-se, com apoio em regra de natureza infraconstitucional, uma nulidade de natureza constitucional explicitamente identificada pela Turma Julgadora. Cooperação e boa-fé processuais foram supervalorizadas a partir de uma leitura distorcida, desafinada da realidade adversarial que distingue a atuação dos litigantes no ambiente procedimental-jurisdicional, a ponto de sobrepô-las a garantias contrajurisdicionais do cidadão (contraditório e dever de fundamentação).
Precisamente, a Constituição de 1988 foi lida e interpretada à luz do Código de Processo Civil, e não o contrário. Nada além do velho e infelizmente usual gesetzkonforme Verfassungsinterpretation...[19]
Distorções decisórias, ilações apressadas e outros problemas interpretativos
Não fosse o bastante, a linha de raciocínio trilhada pelo Tribunal da Cidadania no assentamento de suas premissas, além de arriscar-se em terrenos movediços, culminou em muitos defeitos de interpretação que não sobrevivem a um exame analítico pouco mais penetrante.
Eram duas as questões, nulidade de decisão por afronta ao devido processo e desatenção ao disposto no parágrafo único do art. 805 do CPC/2015. Não se poderia baralhar as coisas, como se uma dependesse da outra, em especial pela imposição de uma descabida condicionante. A ratio que se pode extrair do acórdão dá o tom da absurdidade: o vilipêndio aos deveres da boa-fé e cooperação processual (CPC/2015, art. 805, parágrafo único) implica a validade de decisão judicial anterior que desatendeu as garantias do contraditório e da fundamentação (= gesetzkonforme Verfassungsinterpretation).
A liberdade de atuação das partes e de seus advogados no procedimento jurisdicional é assegurada pelas garantias contrajurisdicionais do processo. Se, conforme descrito no voto de relatoria, “medidas de apoio” foram ordenadas em desdém ao contraditório e à fundamentação das decisões judiciais, tem-se nisso a constatação inequívoca de que as partes (em especial o paciente-executado) tiveram sua liberdade processual tolhida em alguma extensão. A coirmandade entre contraditório, dever de fundamentação e liberdade, todos tutelados no rol de direitos e garantias fundamentais da Constituição de 1988 (art. 5o), não podia ter sido desprezada como reforço à tese desenvolvida em habeas corpus que apontou ilegalidade manifesta ou abuso de poder praticado pela autoridade coatora. Em resumo: a liberdade de ir e vir do paciente-executado foi restringida a partir da validação de ato judicial atentatório à liberdade de defesa em juízo (= atentado às garantias contrajurisdicionais à ampla defesa e ao contraditório).
Seguindo. Lê-se, no bojo do acórdão, a afirmação de que a “boa-fé alcança o magistrado e impõe-lhe o dever de aplicar medidas proporcionais e razoáveis, em respeito ao devido processo legal”. É o eco do que reza o art. 5o do CPC/2015: “Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”. Todavia, faltou explicar como e por que se considerou válida uma decisão judicial na qual a própria Turma Julgadora identificou insulto manifesto às garantias do contraditório e do dever de fundamentação. Sobrou a impressão assaz negativa de que, quando instado a deliberar entre a prevalência do desrespeito à boa-fé processual por conduta da parte ou por conduta do juiz, mesmo que possuam ordem hierárquica distinta (ilegalidade versus inconstitucionalidade), preponderará a posição favorável à autoridade exercente do poder estatal-jurisdicional. Entre liberdade contra-poder (= defesa de garantias contrajurisdicionais fundamentais do cidadão) e liberdade poder-estatal-discricionário (= defesa de interesses utilitaristas marcados pela concretização de uma jurisdição eficaz, efetiva e em tempo razoável), não é de hoje que o Judiciário tem demonstrado predileção pela derradeira.
Para o STJ a “única solução aplicável ao caso concreto” era a manutenção das medidas restritivas, uma vez que, com o advento do CPC/2015, não se pode mais apenas pretender a invalidade de atos executivos, sendo indispensável que se cumpra o parágrafo único do art. 805 (= indicação de meio menos gravoso e mais eficaz ao cumprimento da obrigação exequenda). Trata-se de intepretação em absoluto equivocada. O que há ali é um comando normativo dirigido ao executado que alega, no exercício de sua ampla defesa, ser a medida executiva determinada contra si a mais gravosa; nessa circunstância, a regra lhe impõe o dever de indicar outros meios mais eficazes e menos onerosos, sob pena de manutenção dos atos executivos já determinados. Nada há, no parágrafo único do art. 805, sobre arguições que o executado suscitar fundadas em invalidades de decisões por atentado ao devido processo legal. E nem poderia ser de outro modo, pois dispositivo legal com um tal conteúdo estaria mortalmente inflamado pela inconstitucionalidade!
Ou seja, a declaração de nulidade da decisão de origem era a única via aceitável pela simples razão de que contraditório e dever de fundamentação foram ulcerados (= lesão ao devido processo legal), pouco importando se o executado deixou de propor meio menos gravoso e mais eficaz ao cumprimento da obrigação. Aliás, trata-se de questão de alta gravidade, e por isso de ordem pública, que o próprio juiz de primeira instância poderia (e deveria) superar, independentemente de provocação.[20]
Há uma afirmação colhida do acórdão sobre o famigerado “princípio da cooperação” que, embora não concernente de modo direto à temática central objeto do debate, nem por isso deixa de impactar espíritos mais atentos até porque está longe de representar ponto pacífico no campo doutrinário. Vale dizer: para a Terceira Turma do STJ a cooperação processual representaria “substancial e destacada revolução (...), em vista de uma maior proteção dos direitos fundamentais dos envolvidos no processo e da própria sociedade, pois acarreta a superação do modelo adversarial até então vigente”.
Essa perspectiva de visão já é motivo de estranhamento só pelo fato de que o modelo adversarial tem raízes profundamente fincadas na Constituição Federal, que diferente de incitar os atores processuais a cooperarem entre si para que se obtenha decisão de mérito justa e efetiva, atribui aos litigantes direitos atinentes ao contraditório e à ampla defesa (CF/88, art. 5o, LV). Mais que isso: a Convenção Americana sobre Direitos Humanos estabelece o direito de toda pessoa a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza (CADH, art. 8.1 c/c CF/88, art. 5o, §2o).
Eis, portanto, o retrato de uma estrutura procedimental na qual contraditores com interesses antagônicos debatem entre si, exercem sua liberdade de litigância argumentando e produzindo provas; à autoridade judicial cumpre, por sua vez, a resolução das questões postas, o que deve ser feito com independência e imparcialidade (= desinteresse do órgão julgador pela causa e não atuação como se parte fosse).[21] Fica a indagação: como uma regra infraconstitucional poderia ter força suficiente para sobrepujar regramentos hierarquicamente superiores?
Ademais, há uma inversão perigosa no raciocínio desenvolvido, pois a estrutura adversarial do procedimento não é nociva às partes, traduzindo a garantia de que juízes e tribunais exercerão sua atividade sem desvairos e arbitrariedades. Importante recordar que o due process ganhou força num contexto político-ideológico inegavelmente liberal, compromissado quer com a limitação das ações estatais, quer com o reforço da lei como ordem geral e abstrata. Ou seja, o motor ideológico tinha por matriz direitos fundamentais de resistência (primeira dimensão), fruto das revoluções liberais francesa e norte-americana, por meio das quais a burguesia reivindicava o respeito às liberdades individuais e consequentes limitações aos poderes até então absolutos do Estado. Nessa fase inaugural do constitucionalismo ocidental, ansiava-se por pretensões de caráter negativo, cujos titulares eram os indivíduos. Dito de outro modo: é preciso ter claro que o devido processo legal apresenta, em sua identidade essencial, o papel garantístico de preservação da liberdade do cidadão; assim foi outrora e permanece sendo hoje, mesmo diante dos influxos evolutivos que recebeu ao longo das quadras pelas quais permeou a história.[22]
Daí por que é preocupante o arremate do STJ no sentido de que o modelo adversarial foi superado. E o pior: superado pelo tal “modelo cooperativo de processo” que, conforme estudo inspirador desenvolvido por Igor Raatz – ilustrado por constatações extraídas da visitação feita em ordenamentos jurídicos estrangeiros (Portugal, Inglaterra, Alemanha e França) –, está umbilicalmente atrelado ao modelo inquisitório.[23] Portanto, revolução (para ficar com a expressão utilizada no voto de relatoria) haverá, no seu pior sentido, se efetivamente o Judiciário quebrar a longa escadaria que se subiu através de décadas e décadas de civilização liberal,[24] isto é, se der abrigo a essa miragem míope que nega a própria realidade, confere a uma lei infraconstitucional importância sobreposta ao texto constitucional e limita a liberdade de litigância das partes em favor da suplementação incontinenti da autoridade judicial.
Em outra passagem assaz problemática, a Terceira Turma pontificou que “(...) a coerção psicológica sobre o devedor agora é a regra geral da execução civil, pelo que se pode enunciar que, na ordem do CPC/2015, vige o princípio da prevalência do cumprimento voluntário, ainda que não espontâneo, da obrigação.” Aqui é suficiente, para demonstrar a inconsistência da tese, apontar delineamentos do estudo elaborado por Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini: i) a via executiva por quantia certa particulariza-se pela existência de todo um detalhamento normativo (CPC/2015, arts. 513 a 535 e 824 a 913) em relação a diversas providências sub-rogatórias e, pontualmente, também por medidas coercitivas atípicas, de modo que o modelo regrado distancia-se da mera atribuição ao juiz de um poder geral de adoção de medidas sub-rogatórias e coercitivas atípicas; ii) a proposta de criação de um modelo relativamente atípico de execução por quantia foi apresentada na ocasião do processo legislativo que culminou com o CPC/2015, porém rejeitada; iii) “não há sentido em supor que o art. 139, IV, pura e simplesmente aniquilaria, tornaria inútil, faria tabula rasa daquele sistema detalhadamente disciplinado nas regras dedicadas à execução. É insustentável a ideia de que todas aquelas regras deveriam ser deixadas de lado, com o juiz estando liberado para adotar providências atípicas”; iv) não é aleatória a adoção de diferentes modelos para a execução genérica (pagamento de quantia) e para a tutela específica (fazer, não fazer e entrega de coisa). Especificamente na execução para pagamento de quantia, o emprego da atividade sub-rogatória pode demandar tempo e ser custosa, mas isso não significa que o emprego generalizado de medidas coercitivas seja necessariamente a providência adequada; v) se o executado está insolvente (p. ex., tem patrimônio em valor inferior ao da dívida), cabe declarar-se judicialmente essa situação, submetendo-o à execução concursal (falência ou insolvência civil), extinguindo-se a execução individual sem que caiba o emprego de medida coercitiva; vi) se, por outro lado, o executado dispõe de dinheiro em montante suficiente para satisfazer a dívida, em espécie e não ocultado (p. ex., em aplicações financeiras), a apreensão direta do numerário é a maneira mais simples e eficiente de realizar-se a execução, não havendo se falar em manejo de medida coercitiva; e vii) se o executado é solvente (p. ex., tem patrimônio em valor superior ao da dívida), mas não tem liquidez, ou seja, não possui dinheiro em espécie que seja suficiente para saldar o débito, seus bens precisarão antes ser transformados em dinheiro, o que deve ser feito não por intermédio de adicionais medidas coercitivas (em execuções por quantia, o executado já se submete a medidas coercitivas típicas, a saber: multa do art. 523 §1o e pagamento de juros) e sim diretamente, mediante os vários meios executivos expropriatórios previstos em lei.[25]
Epílogo
Seguem-se as conclusões do principal somadas a considerações gerais atinentes à temática abordada e aquilo a ela, de um modo ou de outro, relacionado:
- Malgrado o habeas corpus seja mesmo um remédio excepcional, de natureza subsidiária, cuja função se circunscreve à tutela do indivíduo contra atos restritivos a sua liberdade de locomoção, há um abismo intransponível em, a partir dessa inferência, sustentar a tese de que em matéria cível sua utilização contra ato judicial deve ser tanto ou mais limitada que em matéria penal. Não é relevante de onde ou de qual autoridade proveio o ato coator e sim determinar se houve ou não atentado por ilegalidade ou abuso de poder ao direito de ir e vir.
- A liberdade de locomoção, a exemplo das demais garantias fundamentais que demarcam linhas fronteiriças para debelar o esmagamento do homem pela mão pesada do poder,[26] deve ser compreendida sempre de forma dilatada, sendo inaceitáveis interpretações limitativas que carregam em si a potencialidade de fazer imperar excessos e arbítrios.
- Destaque especial merece ser atribuído à medida judicial suspensiva de CNH, sobretudo pelo descaso que se nota acerca dela no acórdão examinado. Negar sua potencialidade de solapar direta e imediatamente a liberdade de locomoção é advogar posição que, além de afrontosa à dignidade da pessoa humana, se mostra impermeável à realidade, em desprezo à política de priorização do automóvel adotada por muito tempo no Brasil e no mundo. Se as pessoas fazem uso de veículos assim o é não por mera comodidade, mas em função de uma necessidade atrelada à garantia constitucional de ir e vir. Aliás, se confrontadas ambas as medidas restritivas em evidência neste estudo, a razão impõe concluir que, em termos de inibição da liberdade de locomoção, a suspensão da CNH supera vastamente ressalvas ao direito de viajar para o exterior. É claro que atos judiciais voltados à apreensão de passaportes (ou coisa similar) são limitantes e autoritários, afrontosos a toda uma gama de tratados e convenções dos quais o Brasil é signatário; porém, não se pode negar que apenas uma minoria de brasileiros pratica viagens para o exterior, enquanto é muito superior o número de indivíduos habilitados a dirigir e que, cotidianamente, circulam em veículos pelas cidades e estradas do País com os mais diferentes propósitos.
- O acórdão analisado assinala uma tomada de empréstimo: medidas restritivas, previstas no âmbito do CP e CPP, foram judicialmente apropriadas para uso em procedimento executivo endereçado a satisfação de uma obrigação pecuniária. De um lado, a previsão da ordem impeditiva de viagens para o exterior, de natureza acautelatória penal, uma das alternativas legais à prisão preventiva (CPP, art. 320), cujo deferimento se condiciona à observância do contraditório e à demonstração do fumus commissi delicti e periculum libertati. De outro, e ainda pior em termos de gravidade, a medida suspensiva de CNH, sanção penal prevista entre as penas restritivas de direito (subespécie penas de interdição temporária de direitos) (CP, art. 47, III) e entre as penalidades aplicáveis aos chamados crimes de trânsito (Lei 9.503/97, arts. 292 a 296). Logo, não há que se falar propriamente em atipicidade de medidas.
- São inúmeros os problemas desse empréstimo anômalo, supostamente autorizado pelo inciso IV do art. 139 do CPC, desembocando sobretudo na dificuldade de aceitar-se legítima a utilização de meios punitivos e acautelatórios transportados do universo penal – destinado apenas à tutela de bens jurídicos de elevada importância social e que, por isso, não podem ser disciplinados de modo apropriado por mecanismos menos impactantes – para procedimentos executivos civis. Para além disso, pontuem-se outras questões: i) desatenção ao complexo empreendimento de engenharia legislativa que desaguou na positivação de medidas com potencial retributivo-preventivo (= desdém a uma interpretação sistemática); ii) transgressão ao princípio da legalidade estrita – “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”; CF/88, art. 5o, XXXIX; iii) desobediência ao devido processo legal – “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”; CF/88, art. 5o, LIV; iv) diferenças sensíveis entre os modelos de justiça anglo-americano e brasileiro.
- O acórdão padece de outros vícios: i) baralhamento de questões de ordem hierárquica distintas – nulidade de decisão por menosprezo ao devido processo e desconsideração ao disposto no parágrafo único do art. 805 do CPC/2015 –, que culminou na validação, com justificativas enraizadas em regras infraconstitucionais, de uma decisão judicial maculada pela ofensa à Constituição Federal (= gesetzkonforme Verfassungsinterpretation). Criou-se, no fundo, uma condicionante absurda: em sede de cumprimento de sentença, argumentos de defesa, fundados em lesão ao devido processo legal, somente serão enfrentados caso o executado cumpra o disposto no parágrafo único do art. 805 do CPC/2015; ii) restrição à liberdade de ir e vir de um cidadão mediante ato judicial atentatório à liberdade de ampla defesa em juízo – afinal, as medidas restritivas foram determinadas em atropelo a garantias constitucionais cuja finalidade era assegurar sua liberdade de litigância no âmbito procedimental-jurisdicional; iii) embora se tenha atestado corretamente que a boa-fé alcança também o magistrado, a quem cumpre observar o devido processo legal, o fecho decisório seguiu justamente o caminho oposto, visto que uma nulidade manifesta por ofensa à ordem constitucional, assinalada pela inobservância às garantias do contraditório e da fundamentação, foi suplantada para fazer imperar intepretação escorada unicamente em lei infraconstitucional (= gesetzkonforme Verfassungsinterpretation); e iv) não há na redação do parágrafo único do art. 805, e nem poderia ser diferente sob pena de inconstitucionalidade, nada sobre arguições que o executado porventura suscitar fundadas em invalidades de decisões por preterição ao devido processo legal – que aliás, por corresponderem a questões de ordem pública, independem de provocação da parte interessada.
- Sem nenhuma substância a justificativa oferecida pela Terceira Turma do STJ sobre tema correlato: “Não se deve confundir a natureza jurídica das medidas de coerção psicológica, que são apenas medidas executivas indiretas, com sanções civis de natureza material, essas sim capazes de ofender a garantia da patrimonialidade da execução por configurarem punições ao não pagamento da dívida. A diferença mais notável entre os dois institutos acima enunciados é a de que, na execução de caráter pessoal e punitivo, as medidas executivas sobre o corpo ou a liberdade do executado substituem, se sub-rogam, na dívida patrimonial inadimplida, o que não ocorre na execução indireta”. Se o Estado-juiz ameaça amputar tantos dedos do devedor quantos sejam necessários até que adquira ele o brio de cumprir sua obrigação civil, ninguém por óbvio se convencerá que se estaria diante de uma decisão de cunho meramente coercitivo; e nada importará esclarecimentos no sentido de que a implementação da medida não terá o efeito de substituir a dívida inadimplida. Em outros termos: da mesmíssima forma que não se pode escravizar, amputar, crucificar, torturar ou matar em favor da tutela de obrigações civis, haja vista a regra que desvincula a pessoa do devedor das dívidas que possui, não pode o Estado-juiz valer-se de medidas afrontosas à liberdade de ir e vir, ao direito de trabalhar, ao lazer ou à intimidade alheia.[27] Ainda que se possa graduá-los axiologicamente, a partir das preferências de cada um, para a Constituição de 1988 todos esses bens têm idêntico status jurídico – vale dizer: são direitos e garantias fundamentais (CF/88, art. 5o). Trocas de rótulos, de sanções penais para medidas executivas atípicas, fazem no máximo ocultar linguisticamente o autoritarismo judicial que se implementou, jamais possuindo a força de esvaecer seu rigor ofensivo e punitivista.
- Tem o STJ certa predileção pela criação de princípios (= panprincipiologismo), e o tem feito com preocupante frequência.[28] Pois assim sucedeu-se no julgamento em epígrafe, como se percebe pelo pronunciamento segundo o qual, com o advento do CPC/2015, prevaleceria, como “regra geral da execução civil”, o “princípio da prevalência do cumprimento voluntário, ainda que não espontâneo”. É afirmação carente de sustentação positivo-científica, a qual ignora todo o detalhamento normativo atinente à execução pecuniária, cujo ponto alto está justamente na preponderância das medidas sub-rogatórias típicas.
- Errou duplamente o acórdão ao propor que a cooperação processual, positivada no Brasil a partir do CPC/2015, teria superado revolucionariamente o modelo adversarial em vista de uma maior proteção dos direitos fundamentais dos envolvidos no litígio. Um acontecimento tal é impossível, uma vez que o arranjo adversarial, sedimentado sobre sólidas bases legadas pelo liberalismo, decorre de imposição constitucional. Superar o adversarialismo é virar as costas para as garantias que tonificam o devido processo legal e controlam o exercício da atividade judicial para que não descambe em arbitrariedades. De resto, pesquisas mostram que a cooperação processual possui íntima relação com o modelo inquisitorial. Sem a prudência, oriunda de uma interpretação restritiva e adequada do art. 6o do CPC/2015, ter-se-á, como demonstrou o julgamento analisado, exatamente o contrário do que sugeriu a Terceira Turma do STJ: a suplementação dos poderes da autoridade judicial em prejuízo à liberdade de litigância das partes no âmbito dos procedimentos jurisdicionais.[29]
- Carecem de legitimidade posturas “interpretativas” com enfoque progressista (ou coisa que o valha), que apostam em rumos decisórios descompromissados com o direito legislado, seja por discordância pessoal dos valores nele embutidos, seja pelo fato de o interprete atribuir-lhe compreensão desatenta às minudências decorrentes de sua totalidade. Não é legítimo o uso do poder judicial com fins de promover “revoluções humanistas” ou implementar, à moda do custe o que custar, uma cultura de adimplemento.[30] Atuando assim, o Judiciário se deslegitima, extrapola limites legais e constitucionais, age de maneira discricionária (= ativismo judicial).[31] É o diagnóstico constatado pela leitura do acórdão: uma postura judicial ativista-discricionária, alheia às complexidades do sistema jurídico e, portanto, ilegal (= transposição de sanção criminal para um procedimento executivo no âmbito civil; pouco-caso ao regime caracteristicamente típico e sub-rogatório das execuções para pagamento em dinheiro; ausência de nexo entre meio e finalidade das medidas restritivas impostas[32]) e inconstitucional (= afronta à dignidade da pessoa humana, à garantia de liberdade de locomoção, ao princípio da legalidade estrita em matéria penal, ao contraditório e à fundamentação das decisões judiciais e, por fim, ao devido processo cujo respeito se impõe para a aplicação de sanções punitivas).[33]
- Um entusiasmo de viés instrumentalista-publicista parece ser a origem dos exageros que envolvem o tema medidas executivas atípicas.[34] Conquanto muitos de seus defensores mais animados justifiquem seu uso com fluidez e cuidado, não conseguem esconder certo ímpeto de as tratarem como aríetes da efetividade: um ferramental prontamente habilitado para colocar abaixo limites invioláveis à satisfação obrigacional, em especial o princípio da responsabilidade patrimonial e as regras de impenhorabilidade.[35] O Estado não pode apontar uma arma na cabeça dos devedores! A doutrina mais atenta já percebeu, com acerto irretorquível, que determinadas medidas restritivas, além de espezinharem o princípio da responsabilidade patrimonial (CC, art. 391),[36] trazem a reboque o efeito perverso de pressionar o devedor, em atentado a seu mínimo existencial (= dignidade da pessoa humana), a abrir mão daquilo que a lei impede lhe seja tomado à força (= regulação legal sobre a impenhorabilidade de determinados bens).[37]
- Há remédios que provocam novas doenças, curem ou não aquelas para as quais foram receitados.[38] Na ânsia de tratar uma “doença social” (= inadimplência sistêmica), aplica-se inadequadamente, a modo de terapia de combate, medidas de apoio e, como resultado, tem-se nada mais nada menos que o colapso de garantias fundamentais (= doença iatrogênica).
- Não se ignora a estratégia legislativa, muito em voga atualmente, que confere mais liberdade de manobra decisória à autoridade judicial (cláusulas legais abertas). Obviamente, há limites que podem ser indubitáveis como um muro de concreto ou mesmo não perceptíveis de imediato por um olhar incauto e menos penetrante. O ponto é que liberdades decisórias demandam controle pelo simples fato de que têm potencial para malograr liberdades fundamentais. Por isso, cautela é a palavra de ordem a clarificar o trabalho do julgador, não sendo outro o motivo pelo qual o sistema constitucional impõe a ele estrita observância, como fator legitimante do poder jurisdicional e do próprio resultado dele oriundo, às garantias processuais contrajurisdicionais do cidadão (contraditório e ampla defesa, fundamentação e publicidade das decisões, juiz natural e imparcialidade judicial).[39] Enfim, a finalidade dos regramentos abertos é permitir decisões mais ajustadas às particularidades fáticas dos casos concretos, jamais atribuir poder desmesurado para que juízes e tribunais atuem da maneira que lhes parecer mais justa e adequada. Os exemplos de medidas executivas atípicas que se têm verificado no cotidiano forense denunciam que a clareza de pensamento e a racionalidade estão a cada dia cedendo espaço para um utilitarismo pernicioso, no qual a efetividade jurisdicional parece justificar relativizações e invalidações de conquistas humanitárias que agregaram densidade à dignidade da pessoa humana.
- As apreensões diretas de valores monetários ou de bens penhoráveis, a decretação das fraudes do devedor na busca de patrimônio suficiente para satisfazer o crédito, a execução concursal (falência ou insolvência civil) e suas consequências, a suspensão do procedimento executivo em caso de ausência patrimonial e a prescrição intercorrente são respostas colhidas do CPC/2015 para situações concretas de inadimplência de obrigações pecuniárias. São elas, concorde-se ou não, que devem ser aplicadas; nunca soluções miraculosas inventadas à margem da lei e da Constituição.
- O inciso IV do art. 139, CPC/2015 deve ser interpretado com a prudência exigida na aplicação de dispositivos abertos; não representa um cheque em branco nas mãos de credores e juízes desconfortados com as dificuldades da execução civil. Funciona como aquela receita caseira que, depois de trazer um a um os ingredientes e esmiuçar o modo de preparo, arremata com a prescrição “sal a gosto”. Se, porém, a tampa do saleiro se romper, ou mesmo o cozinheiro de primeira viagem errar na quantidade, não haverá o que fazer senão destinar a comida à lixeira.
- Por fim, não se tem no inciso IV do art. 139, CPC/2015 base autorizativa para diretamente impor ao devedor de prestação pecuniária medidas de apoio voltadas ao próprio cumprimento da obrigação (o que dependeria de disciplina específica) senão para assegurar a prática dos atos executivos e o cumprimento das condutas elementares exigidas pela boa-fé (p. ex., apresentação do rol de bens penhoráveis, acesso ao bem penhorado, impedimento de esvaziamento patrimonial, permissão para que o bem seja buscado e apreendido depois de arrematado).[40]
Notas e Referências
[1] STJ, Recurso em Habeas Corpus n. 99.606-SP, Terceira Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, julgamento: 13/11/2018, disponível: .
[2] Para uma crítica pioneira e muito bem elaborada do acórdão examinado: HELLMAN, Renê. O caso e o ocaso (do devido processo legal): uma análise do julgado no RHC 99.606 do STJ. Empório do Direito. 24/04/2019. Disponível: . Acessado: 16/07/2019.
[3] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 503.
[4] Desestímulo ao uso do automóvel. Disponível: <www.itdpbrasil.org/programas/desestimulo-ao-automovel/>. Acessado em: 31/05/2019.
[5] CAVALCANTE, Sylvia; ELAI, Gleice; ELIAS, Terezinha Façanha; SOUZA PINTO, Heleni Santos Barreira de; COSTA ARAUJO, Ângela Maria da; CARVALHO, Mayara Pinho de; NOGUEIRA DE SOUZA, Olga Damasceno. O significado do carro e a mobilidade cotidiana. Revista Mal-Estar e Subjetividade, Fortaleza, vol. XII, n. 1-2, p. 359-388, mar./jun. 2012.
[6] Nas palavras de Guilherme Carreira e Vinicius Caldas da Gama e Abreu, “o direito de dirigir é reflexo do direito fundamental de liberdade positivado pelo art. 5o, caput, da Constituição da República de 1988. Cuida-se de direito especial de liberdade que, tal qual o direito ao livre exercício do trabalho, ofício ou profissão (art. 5o, XIII), sofre limitações por lei para que sua execução se dê de forma a não prejudicar terceiros”. (CARREIRA, Guilherme Sarri; GAMA E ABREU, Vinicius Caldas da. Dos poderes do juiz na execução por quantia certa: da utilização das medidas inominadas. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. Vol. 11. Coordenadores: Eduardo Talamini e Marcos Youji Minami. Salvador: Editora Jus Podivm, 2018. pp. 241-274). Em semelhante sentido: CÂMARA, Alexandre Freitas. O princípio da patrimonialidade da execução e os meios executivos atípicos: lendo o art. 139, IV, do CPC. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. Vol. 11. Coordenadores: Eduardo Talamini e Marcos Youji Minami. Salvador: Editora Jus Podivm, 2018. pp. 231-240.
[7] Néstor Pedro Sagües, em interessante trabalho, enfrenta o tema manipulação constitucional, patologia jurídica antiga e muito frequente, intimamente vinculada à hermenêutica e ainda pouco explorada pelos constitucionalistas. SAGÜES, Néstor Pedro. Reflexiones sobre la manipulación constitucional. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, n. 6, p. 205-2019, jul./dez. 2005.
[8] Semelhantemente, o CPC/2015 prevê outras cláusulas gerais de efetivação, a saber: art. 297 (“O juiz poderá determinar as medidas que considerar adequadas para efetivação da tutela provisória.”, art. 400 (“Ao decidir o pedido, o juiz admitirá como verdadeiros os fatos que, por meio do documento ou da coisa, a parte pretendia provar se: I – o requerido não efetuar a exibição nem fizer nenhuma declaração no prazo do art. 398; II – a recusa for havida por ilegítima. Parágrafo único. Sendo necessário, o juiz pode adotar medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias para que o documento seja exibido.”), art. 403 (“Se o terceiro, sem justo motivo, se recusar a efetuar a exibição, o juiz ordenar-lhe-á que proceda ao respectivo depósito em cartório ou em outro lugar designado, no prazo de 5 (cinco) dias, impondo ao requerente que o ressarça pelas despesas que tiver. Parágrafo único. Se o terceiro descumprir a ordem, o juiz expedirá mandado de apreensão, requisitando, se necessário, força policial, sem prejuízo da responsabilidade por crime de desobediência, pagamento de multa e outras medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar a efetivação da decisão.”), art. 536 (“No cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento, para a efetivação da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente, determinar as medidas necessárias à satisfação do exequente. Para atender ao disposto no caput, o juiz poderá determinar, entre outras medidas, a imposição de multa, a busca e apreensão, a remoção de pessoas e coisas, o desfazimento de obras e o impedimento de atividade nociva, podendo, caso necessário, requisitar o auxílio de força policial.”) e art. 773 (“O juiz poderá, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias ao cumprimento da ordem de entrega de documentos e dados.”).
[9] CARREIRA, Guilherme Sarri; GAMA E ABREU, Vinicius Caldas da. Dos poderes do juiz na execução por quantia certa: da utilização das medidas inominadas. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. Vol. 11. Coordenadores: Eduardo Talamini e Marcos Youji Minami. Salvador: Editora Jus Podivm, 2018. pp. 241-274.
[10] Guilherme Carreira e Vinicius Caldas da Gama e Abreu são precisos: “As hipóteses autorizadoras de suspensão ou cassação do direito de dirigir estão previstas tanto na Lei n. 9.503/97, quanto no Código Penal Brasileiro. Todas elas configuram penas pelo uso inadequado do direito de dirigir. (...) Em ambos os casos, de suspensão ou cassação da CNH, administrativa ou decorrente de sentença penal condenatória, as sanções estão previstas em lei, são aplicadas em razão do mau uso do direito garantido ao indivíduo, através de procedimentos específicos, garantido o contraditório e a ampla defesa, e seu cumprimento está sujeito a prazos anteriormente fixados em lei. Ainda que haja indícios da existência de bens penhoráveis e que o devedor esteja lhes ocultando, ou seja, ainda que se trate do chamado “devedor ostentação”, a suspensão da CNH possui clara feição punitiva, uma vez que restringe ao indivíduo o exercício de direitos constitucionalmente garantidos não discutidos na relação processual. Ademais, há aí uma verdadeira criação judicial de hipótese de suspensão de licença, cuja definitividade é de sua essência, adicionando-se uma hipótese genérica às específicas existentes no Código de Trânsito e no Código Penal, campo exclusivo de reserva legal. Portanto, ainda que se trate do “devedor ostentação”, a utilização desta medida coercitiva não se apresenta viável, pelos fundamentos acima expostos. E repisa-se: se nem no caso do “devedor ostentação” a medida é cabível, de modo algum há de se pensar em sua utilização para os casos em que o devedor precisa da CNH para desempenhar sua atividade profissional, como o taxista e o motorista profissional.” (Guilherme Sarri; GAMA E ABREU, Vinicius Caldas da. Dos poderes do juiz na execução por quantia certa: da utilização das medidas inominadas. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. Vol. 11. Coordenadores: Eduardo Talamini e Marcos Youji Minami. Salvador: Editora Jus Podivm, 2018. pp. 241-274).
[11] ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Rio de Janeiro: RENOVAR, 2006. p. 31-53.
[12] A feliz expressão é de Cleber Rogério Masson: MASSON, Cleber Rogério. Direito Penal Esquematizado. Parte Geral. Rio de Janeiro: Método, 2008. p. 35.
[13] Ferrajoli, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. 2a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 438.
[14] É clássica a lição de Beccaria: “(...) só as leis podem fixar as penas de cada delito e que o direito de fazer leis penais não pode residir senão na pessoa do legislador, que representa toda a sociedade unida por um contrato social. Ora, o magistrado, que também faz parte da sociedade, não pode com justiça infligir a outro membro dessa sociedade uma pena que não esteja estatuída pela lei; e, do momento em que o juiz é mais severo do que a lei, ele é injusto, pois acrescenta um castigo novo ao que já está determinado.” (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2006).
[15] COSTA, Eduardo José da Fonseca. O processo como instituição de garantia. Revista Consultor Jurídico. 16/11/2016. Disponível: . Acessado: 16/07/2019. Em idêntico sentido: DELFINO, Lúcio. Como construir uma interpretação garantista do processo jurisdicional? Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 25, n. 98, p. 2017-222, abr./jun. 2017.
[16] RODRIGUES, Marcelo Abelha. O que fazer quando o executado é um “cafajeste”? Coleção Grandes Temas do Novo CPC. Vol. 11. Coordenadores: Eduardo Talamini e Marcos Youji Minami. Salvador: Editora Jus Podivm, 2018. pp. 75-92.
[17] WAMBIER, Luiz Rodrigues; RAMOS, Newton. Ainda a polêmica sobre as medidas executivas atípicas previstas no CPC. Revista Consultor Jurídico. 30 de maio de 2019. Disponível: Acessado: 06/06/2019.
[18] Como acentuou Araken de Assis em palestra realizada na sede do Conselho Federal da OAB: “Sou contra os poderes atípicos dos juízes porque seu exercício redunda em simples arbitrariedades. É evidentemente inconstitucional diante do princípio da dignidade da pessoa humana tirar o passaporte, carteira de habilitação. Que tem isso com dívidas? (...) Isso é simples vingança, simples punição.” E mais: “Numa sociedade como a nossa, sedenta por punição, não me surpreende que essas ideais sejam encaradas com naturalidade. Mas é preciso rejeitá-las em nome de princípios.” Por fim, completou: “No Brasil e em qualquer outro lugar do mundo, não é possível colocar o devedor de cabeça para baixo.” (Professor Araken de Assis afirma ser totalmente contrário aos poderes executórios atípicos. Migalhas. 19/04/2018. Disponível: . Acessado: 10/07/2019). Em idêntico sentido, o entendimento da Associação Brasileira de Direito Processual – ABDPro, em manifestação técnica apresentada na condição de amicus curiae, no âmbito da ação direta de inconstitucionalidade n. 5.941/DF – pleiteia-se, ali, a declaração de nulidade do art. 139, IV, CPC, sem redução do texto, diante da sua afronta aos incisos II, XXXIX e LIV do art. 5o da Constituição Federal.
[19] Sobre o tema: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 2a ed. Coimbra: Almedina, 1998, p. 1106.
[20] A resposta interpretativa perfilhada abriu caminho certeiro para a arbitrariedade discricionária. Afinal, o que se fez foi condicionar absurdamente o exame de invalidades por atentado a garantias fundamentais ao cumprimento do parágrafo único do art. 805. Se o executado age de modo diverso, por não pretender impugnar a maior onerosidade da medida e sim, exclusivamente, sua inconstitucionalidade, nada lhe restará senão sofrer as consequências da decisão restritiva, independentemente de seu conteúdo. Visto que é livre o labor criativo, e valendo-se de exemplos hiperbólicos para reforçar o contrassenso da conclusão a que chegou o acórdão, é de se imaginar como atuaria o STJ frente a “medidas de apoio” por si altamente degradantes à pessoa humana (ameaças de amputações, castrações, crucificações, etc.).
[21] Na lição de Glauco Gumerato Ramos, o Processo (= garantia), “que necessariamente pressupõe a Ação [sem esta aquele não se inicia], desenvolve-se a partir de um arquétipo garantístico constitucional de cariz adversarial (= acusatório), já que alguém pede alguma providência jurídica contra outrem para que um terceiro independente, imparcial e impartial (= que não pode atuar como se parte fosse) resolva qual das pretensões antagônicas deve prevalecer.” (RAMOS, Glauco Gumerato. Nota sobre o Processo e sobre a “presunção” de inocência que lhe habita. Empório do Direito. 20/05/2019. Disponível: . Acessado: 09/07/2019. Vale lembrar que até mesmo cooperativistas frisam a essência litigiosa ínsita ao fenômeno que se desenvolve no procedimento jurisdicional. Nessa toada, Marinoni e Mitidiero, em crítica ao então “Projeto de novo CPC” apresentado ao Senado, assinalaram que é “a própria estrutura adversarial ínsita ao processo contencioso que repele a ideia de colaboração entre as partes”. (MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 73).
[22] DELFINO, Lúcio. Como construir uma interpretação garantista do processo jurisdicional? Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 25, n. 98, p. 207-222, abr./jun. 2017.
[23] Leciona Igor Raatz: “A colaboração processual está longe de ser um tema que merece ser ignorado pela doutrina. O simples fato de ser objeto de abordagens apaixonadas tanto no Brasil quanto em outros países já revela a sua importância. Isso, porém, não significa que se trate de uma temática imune às críticas, as quais, a propósito, podem ser elaboradas em diversas perspectivas. É possível, tendo como base o direito constitucional positivo, criticar a existência de um ‘modelo cooperativo’ de processo, o qual não passaria de uma versão mitigada do modelo inquisitório – para não dizer que se trata de uma nova etiqueta para o modelo com diversos traços inquisitoriais. A experiência do direito inglês e do direito português, inclusive, tendem a confirmar essa hipótese, sem contar os testes que podem ser realizados cotejando a cooperação processual com a garantia da imparcialidade.” (RAATZ, Igor. Revisitando a “colaboração processual”: ou uma autocrítica tardia, porém necessária. Estudo ainda não publicado – aprovado para publicação na Revista de Processo –, cedido gentilmente pelo autor).
[24] A frase foi adaptada das lições de Pontes de Miranda: “Dar ao juiz o direito de ordenar produção de testemunhas que as partes não ofereceram, ou mandar que se exibam documentos, que se acham em poder da parte, e não foram mencionados pela parte adversa, ou pela própria parte possuidora, como probatórios de algum fato do processo, ou deliberar que uma das partes preste depoimento pessoal, é quebrar toda a longa escadaria, que se subiu, através de cento e cinquenta anos de civilização liberal.” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. 3a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977. t. II. P. 514).
[25] WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. Execução. Vol. 3. 16 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 194-197. Manifestando posição semelhante, Fredie Didier Jr, Leonardo Carneiro da Cunha, Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria: “(...) a execução para pagamento de quantia deve observar, primeiramente, a tipicidade dos meios executivos, sendo permitido, subsidiariamente, o uso de meios atípicos de execução, com base no art. 139, IV, CPC.” (JR., Fredie Didier; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Diretrizes para a concretização das cláusulas gerais executivas dos arts. 139, IV, 297 e 536, §1o, CPC. Revista de Processo – RePro, São Paulo, n. 267, p. 272-227, maio 2016).
[26] “Para Constant, Mill, Tocqueville e para a tradição liberal a que pertenciam, nenhuma sociedade é livre exceto se governada, de uma maneira ou de outra, por dois princípios interrelacionados: primeiro, que nenhum poder (mas apenas direitos) pode ser considerado absoluto, de forma que todos os homens, não importa o poder que os governe, tenham um direito absoluto de se recusarem a agir desumanamente; e, segundo, que há áreas limitadas, não traçadas artificialmente, onde os homens devem ser invioláveis, e cujos limites são definidos segundo regras há tanto tempo e tão extensamente aceitas, que observá-las já constitui participar da concepção do que seja um ser humano normal e, portanto, do que seja agir de maneira desumana ou insana; regras de que seria absurdo dizer, por exemplo, poderem ser ab-rogadas por algum procedimento formal da parte de alguma corte ou de algum corpo soberano. Quando falo de um homem como ser normal, parte do que quero dizer é que ele não poderia quebrar essas regras facilmente sem uma esgar de repulsa. Quebram-se regras como essas quando um homem é declarado culpado sem julgamento ou quando é punido por uma lei retroativa; quando crianças são obrigadas a denunciar os pais, amigos uns aos outros, soldados a usar métodos de barbarismo; quando homens são torturados ou assassinados, ou minorias massacradas por irritarem a maioria ou o tirano. Esses atos, ainda que tornados legais pelo soberano, causam horror, mesmo hoje em dia, isso ressalta do reconhecimento da validade moral – a despeito das leis de alguns obstáculos absolutos à imposição da vontade de um homem sobre o outro. A liberdade de uma sociedade, de uma classe ou de um grupo, nesse sentido de liberdade, é medida pela força desses obstáculos e pelo número e importância dos caminhos deixados abertos para seus membros – se não para todos, pelo menos para um grande número deles.” (BERLIN, Isaiah. Quatro Ensaios sobre a Liberdade. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981. p. 165-166).
[27] Adverte Igor Raatz: “Alguns anos atrás, a afirmação de que uma decisão judicial poderia determinar a retenção do passaporte ou a suspensão da carteira de motorista de um inadimplente, inevitavelmente causaria espanto. Sem dúvida, seria impensável transformar obrigações pecuniárias – consistentes no pagamento de quantia – em obrigações de fazer, desconsiderando o milenar princípio da responsabilidade patrimonial, previsto nos artigos 391 do CC e 789 do CPC, que remonta à Lex Poetelia Papiria, de 326 a.C., e ao conhecido brocardo “pecuniae creditae bona debitoris, non corpus obnoxium esse”. (RAATZ, Igor. Devedor é proibido de sair de casa nos finais de semana; fake news? Consutor Jurídico. 06/07/2019. Disponível: . Acessado: 11/07/2019).
[28] Para uma crítica ao panprincipiologismo: STRECK, Lenio. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 6a ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
[29] Em estudos anteriores, já havia manifestado minha preocupação sobre o mau uso da cooperação processual e até propus interpretação que me parece mais ajustada ao ordenamento jurídico brasileiro – admiti-la, tendo por base unicamente os deveres de boa-fé. Conferir: DELFINO, Lúcio. ROSSI, Fernando F. Juiz contraditor? Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 21, n. 82, p. 229-254, abr./jun. 2013; STRECK, Lenio Luiz; DELFINO, Lúcio; DALLA BARBA, Rafael Giorgio; LOPES, Ziel Ferreira. O “bom litigante” - Riscos da moralização do processo pelo dever de cooperação do novo CPC. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 23, n. 90, p. 339-354, abr./jun. 2015; DELFINO, Lúcio. Cooperação processual no novo CPC pode incrementar o ativismo judicial. Revista Consultor Jurídico. 02/05/2016. Disponível: Acessado: 15/07/2019; DELFINO, Lúcio. Cooperação processual: inconstitucionalidades, excessos argumentativos – Trafegando na contramão da doutrina. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 24, n. 93, p. 149-168, jan./mar. 2016. Sobre o tema cooperação processual, também segundo uma visão crítica, sugere-se: SOUSA, Diego Crevelin de. O caráter mítico da cooperação processual. Empório do Direito. 06/12/2017. Disponível: . Acessado: 15/07/2019; SOUSA, Diego Crevelin. Do dever de auxílio do juiz com as partes ao dever de auxílio do juiz com o processo: um giro de 360o. Empório do Direito. 17/06/2019. Disponível: . Acessado: 15/07/2019; RAATZ, Igor. Revisitando a “colaboração processual”: ou uma autocrítica tardia, porém necessária. Estudo ainda não publicado – aprovado para publicação na Revista de Processo –, cedido gentilmente pelo autor.
[30] Por óbvio não pretendo defender a concepção de que o processo é “coisa das partes”, crítica a mim dirigida recentemente por Marcelo Pichioli da Silveira (conferir: SILVEIRA, Marcelo Pichioli. Um debate com adeptos do garantismo processual. Empório do Direito. 10/07/2019. Disponível: . Acessado: 15/07/2019). Meu crítico chegou a essa conclusão por sua conta e risco; e foi no mínimo desatento uma vez que não há, no artigo de minha autoria que ele indica, a menor sombra dessa afirmação. E nem poderia ser de outro modo, pois estou de pleno acordo com a lição de Eduardo José da Fonseca Costa – quem também recebeu críticas injustas e até imprudentes – de que o processo é “coisa para as partes” (não “coisa das partes”, portanto). Que fique claro: “(...) o processo é coisa para as partes (como quer o garantismo processual); não “das” partes (como quer uma teoria anárquico-esportiva do processo); tampouco “do” ou “para” o juiz (como quer o instrumentalismo processual).” (COSTA, Eduardo José da Fonseca. É preciso desfazer imagem eficientista do juiz como agente regulador. Revista Consultor Jurídico. 13/01/2018. Disponível: <...>. Acessado: 15/07/2019). E mais: “Um genuíno garantista não confunde o público com o pró-estatal; por isso, divisa no processo a res publica que serve às partes e, por correlação, desserve ao Estado quando este exerce com arbítrio a função jurisdicional. Daí por que o garantismo não se reconhece na oposição diametral «privatismo vs. publicismo». O «privado» do processo é a sua função: privado é sinónimo de particular, do latim particularis, adjetivo derivado de partícula, diminutivo de pars, partis, que significa parte; portanto, o processo cumpre a sua função «privatista» quando atende às partes, protegendo-as. Por sua vez, o «público» do processo é a sua estrutura: ele se concretiza num procedimento em contraditório, de instauração obrigatória, instituído por normas editadas pelo Poder Legislativo (daí a expressão «devido processo legal»).” (COSTA, Eduardo José da Fonseca. Garantismo, Liberalismo e Neoprivatismo. Empório do Direito. 11/06/2019. Disponível: . Acessado 14/07/2019). Portanto, a crítica não se resumiu a um mero “jogo de palavras”; tem a força de me arrastar para onde não estou e jamais pretendi estar. Com a devida vênia, não sabe sobre o que fala aquele que enxerga no garantismo processual, que hoje se desenvolve no Brasil, um movimento direcionado à mera tentativa de resgate do privatismo processual.
[31] Eduardo José da Fonseca Costa, em interessante e sugestivo estudo, ensina: i) embora a representatividade popular de juízes e tribunais seja eletiva ou imediata (= “o sistema brasileiro de recrutamento judicial é um misto de seleção técnica e nomeação política”), traduz-se ainda assim em autêntica representação, tanto que diversas constituições mundo afora “prescrevem que juízes e tribunais (os representantes) devem administrar a justiça em nome do povo (o representado)”; ii) o subsistema constitucional jurisdicional contém um quid de aristocraticidade (“quase um mal necessário”), que impede a degradação do Judiciário por um “despotismo eleitoreiro”, evitando que juízes e tribunais se desvistam da imparcialidade e da independência a ponto de se curvarem à pressão e opinião imponderada de eleitores em lugar de aplicarem corretamente o direito positivo; iii) o Poder Judiciário não ganha democraticidade diretamente de seu modo de composição (= legitimidade estrutural), e sim indiretamente, de seu modo de atuação (= legitimidade funcional), “compensa sua aristocraticidade organizativa com a democraticidade da Constituição e das leis” (= “uma fidelidade canina à Constituição e às leis”) – em outros termos, juízes e tribunais compensam sua aristocraticidade organizativa “com a democraticidade da lex populi emitida pelo Poder Legislativo, não da vox populi emitida pelas ruas”. (COSTA, Eduardo José da Fonseca. O Poder Judiciário diante da soberania popular: o impasse entre a democracia e a aristocracia. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 27, n. 106, p. 351-363, abr./jun. 2019). Em linha de reforço, Carlos Maria Cárcova: “... las nuevas democracias ostentam un grave déficit de legalidade. Porque cuando, en un sistema democrático, un poder del Estado se arroga facultades o competências que la ley no le atribuye, conspira contra un pilar básico del sistema que es de la división de poderes y, al mismo tiempo, pone en crisis la noción misma de soberania popular, so capa de atender a la lógica de la ‘razón de Estado’ que, como há señalado Bobbio siguiendo a Spinoza, es precisamente la antíteses del Estado racional (...). Y cuando las decisiones son procesadas y ‘sancionadas’ en âmbitos que no son los que prevé el ordem jurídico, aquella soberania popular resulta expropriada y, en consecuencia, aquel orden subvertido.” (CÁRCOVA, Carlos Maria. Derecho, política y magistratura. Buenos Aires, 1996. p. 99-100).
[32] Veja-se, sobre o ponto, a lição precisa de Luiz Wambier e Newton Ramos: “Em relação às medidas de coerção – que não se confundem (...) com medidas sancionatórias –, há que se ter em conta que a expressão para assegurar o cumprimento da ordem judicial revela a natureza instrumental da medida. Significa dizer que deve haver um liame necessário, lógico e razoável de instrumento e fim entre a medida coercitiva e o cumprimento da determinação judicial. Imposição de medidas que não obedecem a esse nexo etiológico mais se aproxima das medidas punitivas – que sempre obedecem à regra da tipicidade, em vista de seu caráter sancionatório – do que de medidas coercitivas – elencadas exemplificativamente pelo legislador.” (WAMBIER, Luiz Rodrigues; RAMOS, Newton. Ainda a polêmica sobre as medidas executivas atípicas previstas no CPC. Revista Consultor Jurídico. 30 de maio de 2019. Disponível: Acessado: 12/07/2019).
[33] Confira-se a pertinente crítica de Araken de Assis: “Resta verificar se o art. 139, IV é compatível com o art. 5o., LIV, da CF/1988. (...) Ocorre que os termos elásticos da redação do art. 139, IV, sugeriu coisa completamente diferente. A fértil imaginação das pessoas investidas na função judicante, exasperadas por execuções que não progridem, amontoadas nos cartórios de espaço exíguo e embaladas pela cultura do autoritarismo, disseminada na literatura processual, concebeu as maiores arbitrariedades, visando compelir o executado a cumprir a obrigação ou o direito exequendo: (a) o recolhimento da carteira nacional de habilitação, tornando ilícita a condução de veículos automotores; (b) o recolhimento do passaporte, impedindo o executado de viajar para o exterior; (c) a proibição de o executado participar em licitações ou de contratar empregados; (d) o cancelamento de cartão de crédito; e assim por diante. Falta pouco para tomar o passo decisivo: prender o executado, sob o fundamento que descumprimento de ordem judicial, não é “prisão por dívidas”. (...) Por óbvio, as medidas “atípicas” arroladas (...) são direta ou indiretamente inconstitucionais. Indiretamente que seja, recorrer a carteira nacional de habilitação ou o passaporte interferem no direito de ir, vir e ficar; por sinal, a proibição de contratar com as pessoas jurídicas de direito público, participando de licitações, é pena civil (art. 12, I, II e III, da Lei 8.429/1992) para o ilícito de improbidade administrativa, de ordinário subordinada ao trânsito em julgado, e, em todo caso, observando o princípio da proporcionalidade, totalmente descabida como medida incidente no cumprimento da sentença. E, diretamente, as medidas objetivam premir o executado por meio não legalmente prefixado e sem devida correlação instrumental com a finalidade da atividade executiva, ferindo, e por dois motivos autônomos, o art. 5o, LIV, da CF/1988. São tão inidôneas para satisfazer o exequente quanto a vetusta contrainte par corps, igualmente meio de intimidação, e não devem ser toleradas por idênticas razões. Não é por acaso que, invocando a prisão do devedor da obrigação alimentar – única exceção constitucional a medida dessa natureza –, sustenta-se a possibilidade de a execução recair sobre a pessoa do executado, desde que não lhe restrinja integralmente a liberdade de locomoção; em última análise, retorno às formas mais primitivas de execução pessoa, abstraindo o princípio da dignidade da pessoa humana.” (ASSIS, Araken. Cabimento e adequação dos meios executórios “atípicos”. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. Vol. 11. Coordenadores: Eduardo Talamini e Marcos Youji Minami. Salvador: Editora Jus Podivm, 2018. pp. 111-134). É esse também o entendimento de Cassio Scarpinella Bueno: “É correto o entendimento de que as técnicas a serem empregadas pelo magistrado com vistas à concretização da tutela jurisdicional não podem interferir em direitos do executado legitimamente titularizados por ele e que não guardam nenhuma relação com a circunstância de ele ser reconhecido como devedor ou não. Como todo o dever a ser empregado por autoridades constituídas em um modelo de Estado Constitucional, há limites, ainda que não expressos, no sistema, que não podem ser ultrapassados ainda que para atingimento da finalidade que o justifica. É nesse contexto que ganha interesse o quanto discutido no âmbito da ADI 8.941/DF perante o Supremo Tribunal Federal, de iniciativa do Partido dos Trabalhadores, que pretende o reconhecimento de nulidade sem redução do texto daquele dispositivo para excluir dele qualquer interpretação que resulte em apreensão de Carteira Nacional de Habilitação e ou suspensão de dirigir, apreensão de passaporte, proibição de participar de concurso público e proibição de participar de licitação.” (BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual. Teoria Geral do Direito Processual Civil. Parte Geral do Código de Processo Civil. 9a ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2018. P. 588).
[34] Para uma crítica à corrente doutrinária Instrumentalismo do Processo: DIETRICH, William Galle. Observações lógicas sobre o instrumentalismo processual. Empório do Direito. 15/07/2019. Disponível: . Acessado: 15/07/2019. COSTA, Eduardo José da Fonseca. A natureza jurídica do processo. Empório do Direito. 22/04/2019. Disponível: . Acessado: 15/07/2019. PEREIRA, Mateus Costa. Da Teoria «Geral», à Teoria «Unitária» do Processo: um diálogo com Eduardo Costa, Igor Raatz e Natascha Anchieta; em resposta a Fredie Didier Jr. Empório do Direito. 10/06/2019. Disponível: . Acessado: 15/07/2019. RAATZ, Igor. Da ausência de um estatuto epistemológico dos princípios o direito processual brasileiro e o projeto instrumentalista de recrudescimento do Poder Jurisdicional. Empório do Direito. 06/05/2019. RAATZ, Igor. O juiz defensor da moral, o juiz defensor da verdade e o juiz defensor da lei: instrumentalismo, cooperativismo e garantismo processual. Empório do Direito. 01/04/2019. Disponível: . Acessado: 15/07/2019. Disponível: . Acessado: 15/07/2019. ANCHIETA, Natascha. Em busca da substancialidade constitucional do processo: os percalços do desenvolvimento histórico da ciência processual: da noção instrumental à noção substancial de processo. Empório do Direito. 15/04/2019. Disponível: . Acessado: 15/07/2019. FILHO, Antônio Carvalho. Pequeno manual prático para o debate instrumentalistas (e afins) vs garantistas processuais. Empório do Direito. 08/04/2019. Disponível: . Acessado: 15/07/2019. DELFINO, Lúcio. O processo é um instrumento de justiça? (Desvelando o projeto instrumentalista de poder). Empório do Direito. 28/04/2019. Disponível: . Acessado: 15/07/2019. DELFINO, Lúcio. A espetacularização do processo (uma preleção em família).
[35] Difícil fugir da sensação de que as tais medidas restritivas foram escolhidas unicamente em razão de sua potencialidade punitiva. Quis-se, e o objetivo foi conquistado, implodir fronteiras forjadas com a matéria-prima da qual são feitas as garantias fundamentais (cláusulas pétreas), que deveriam estar blindadas à atuação do poder estatal. O exemplo é perigoso, porque ressoado pela voz do Tribunal da Cidadania, e que decerto adjuvará na multiplicação de arbítrios por todo o País, no uso adicional das vias recursais e, por conseguinte, em mais trabalho para o Judiciário. Empório do Direito. 01/11/2017. Disponível: . Acessado: 15/07/2019.
[36] Como aponta Igor Raatz: “Tanto o Código de Processo Civil de 1973, quanto o Código de Defesa do Consumidor já previam o emprego de medidas executivas atípicas e, desse modo, conferiam ao juiz o poder para “determinar medidas necessárias” (v.g., art. 84, §5o, CDC, art. 461, §5o, CPC). No entanto, o entendimento majoritário era o de que referidas medidas estivessem restritas às obrigações de fazer, não-fazer e entrega de coisa. No tocante às obrigações pecuniárias, prevalecia ainda o respeito à garantia da responsabilidade patrimonial. Tudo leva a crer que o elemento central para a virada no entendimento sobre a matéria tenha sido a passagem “para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”, inserida no texto do art. 139, IV, do CPC.” (RAATZ, Igor. Devedor é proibido de sair de casa nos finais de semana; fake news? Consutor Jurídico. 06/07/2019. Disponível: . Acessado: 11/07/2019).
[37] Nesse sentido: CARREIRA, Guilherme Sarri; GAMA E ABREU, Vinicius Caldas da. Dos poderes do juiz na execução por quantia certa: da utilização das medidas inominadas. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. Vol. 11. Coordenadores: Eduardo Talamini e Marcos Youji Minami. Salvador: Editora Jus Podivm, 2018. pp. 241-274. ROCHA, Jorge Bheron; SILVA, Bruno Campos; SOUSA, Diego Crevelin de. Medidas indutivas inominadas: o cuidado com o fato Shylokiano do art. 139, IV, CPC. Empório do Direito. 26/09/2016. Disponível: <>. Acessado: 03/07/2019.
[38] BERLIN, Isaiah. Quatro Ensaios sobre a Liberdade. Trad. Wamberto Hudson Ferreira. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981. p. 17.
[39] É verdade que o legislador não pode predizer o futuro infalivelmente e que, portanto, o conceito de listas legais exaustivas é incoerente sob o ponto de vista lógico-filosófico (= a realidade tem o péssimo hábito de se antepor à lei). Mas é igualmente verdadeiro que, sendo o cerne do problema a definição entre a concessão de mais ou menos poder a juízes e tribunais, a precaução deveria sobressair entre as opções de resposta normativa. Na medida em que a cautela é a lanterna dos homens responsáveis, melhor é palmilhar o terreno social, ir formando paulatinamente, via atos legislativos exercidos passo por passo, um rol taxativo de implicações legais que a despeito de sua imperfeição servirá de barreira a arroubos criativos, e às vezes arbitrários, por parte daqueles que têm em mãos a caneta decisória. Sobretudo, é a escolha moral e politicamente mais acertada por tratar a sociedade, em especial os indivíduos que a compõem, com dignidade e não como animais de laboratório.
[40] WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil. Execução. Vol. 3. 16 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 194-197.
Imagem Ilustrativa do Post: Figures of Justice // Foto de: Scott Robinson // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/clearlyambiguous/2171313087
Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/