2022: O ANO DA DEMOCRACIA E DA CONSTITUIÇÃO - PARTE 1

18/12/2021

Coluna Por Supuesto

Parte 2

É inegável que o próximo ano será decisivo para a continuidade do processo de regeneração da democracia brasileira, que hoje vêm sendo fortemente atacado. Obviamente isto significa também um ano para retomar iniciativas e avançar na efetividade dos princípios fundamentais, direitos e garantias, da Constituição de 1988. E essa visão que temos se desprende, inicialmente, do fato de que haverá um novo processo eleitoral, é dizer, uma possibilidade de renovação à qual deve se prestar especial atenção.

A singularidade do novo ano para a política e o Direito decorre do conjunto de fatos no primeiro terreno e formulações no segundo – congruentes ou incongruentes, razoáveis ou absurdas – quando observadas e analisadas no marco da pandemia. Mas, também, pela lembrança do último resultado nas urnas, produzido pela junção de vontades de saudosos do autoritarismo, oportunistas por costume e liberais de araque, que promoveram um candidato que nada propus a não ser a banalização da violência e que demonstrou, em mais de uma ocasião, sua ignorância constitucional e despreparo para a condução dos fios do Estado.

É claro que em nosso querer e entender, ainda que a democracia e a Constituição não devam depender exclusivamente de resultados eleitorais, o próximo ano bem poderia server para reagrupar a esperança e gerar uma nova fase, afastando de vez as pretensões de golpe híbrido – palavra usada hoje com muita frequência por falta de outra melhor que reflita uma realidade misturada – que combina o abuso das regras da democracia constitucionalmente albergada para desmontar direitos, com a militarização da vida estatal. Desde logo, há que buscar o mecanismo que desconstrua o estado de coisas inconstitucionais de hoje e supere a presença infeliz de um presidente episódico e superveniente que se constituiu em um confesso reincidente em crimes de responsabilidade, tendo em vista a quantidade de infrações político-administrativas por ele praticadas.

Olhar para atrás com o objetivo de impulsar o futuro sugere falarmos dessas duas questões – Democracia e Constituição - ao final do ano, quando os balanços são tão recorrentes e as promessas se mostram tão alvissareiras. Mas, a risco de parecer alheio às leis de festa e recolhimento desta época, há um assunto que devemos confrontar com certa urgência e que no pessoal sempre considero altamente preocupante.  

Consiste em eliminar de vez a melancolia permanente que percorre como um fantasma as subjetividades. A. Hirschman menciona algumas das causas de um desânimo e abatimento que as vezes toma conta do cenário na sua Retórica da Intransigência. São sensações vividas e transmitidas pelas pessoas que definem o processo eleitoral e cuja força e ação são essenciais para deter retrocessos e impulsionar a efetividade dos direitos. A primeira é a retórica da futilidade: “Não vamos modificar nada no 2022, tudo vai seguir igual”; logo a retórica da perversidade: “A ação coletiva somente vai server para piorar o que já é ruim e queremos melhorar” e a retórica do risco: “a ação coletiva vai acabar por estragar outras coisas que queremos que permaneçam”.  [1]

Atitudes contemplativas para com o curso dos acontecimentos, acomodadas ou que partem exclusivamente do cálculo fundado em números para uma pretensão eleitoral podem resultar negativas e que, como se vê, negam a construção coletiva de saídas e se amparam nas individualidades. A Democracia e a Constituição requerem de uma metodologia urgente para uma escola de cidadania permanente. Isso implica elevar a consciência das virtudes de encontrar-nos num cenário democrático, de responsabilidade com as liberdades e de exclusiva intolerância com aquele que não acompanha os valores estampados no texto de 1988

Não tenho certeza -quem têm? - sobre quanto poderíamos avançar superando essas retóricas de Hirschman, entretanto estou convencido de que América Latina – não só o Brasil – não pode perder muito mais tempo para aprofundar a deliberação e a participação popular valendo-se dos mais variados institutos democráticos que a constituição oferece.

Vista assim as coisas, ainda deve-se enfrentar dois aspectos da relação Democracia e Constituição, que talvez lembrem a Gramsci e sua distinção de “aparelho público estatal” e “Estado ampliado”. O primeiro se relaciona com seu funcionamento e competências. O segundo com instituições como as igrejas, as universidades, as escolas, as empresas, os meios de comunicação e redes sociais, dentre os mais notórios.

Sobre o primeiro bloco, perguntaríamos, nessa retrospectiva: a) é possível uma democracia consistente a partir de uma espécie de “normalidade” de certo “poder discricionário” de direcionar recursos públicos para aumentar vencimentos de alguns servidores, em detrimento de outros gastos, ou até outros servidores, para garantir apoios eleitorais? Esse caminho se tornou tão previsível quanto padronizado: asfixiar economicamente para “soltar recursos no ano eleitoral”. Pode conviver a democracia com esse descaso a princípios elementares de razoabilidade e eficiência estampados no artigo 37 da Carta de 1988? b) No balanço, pode conviver a democracia com a quebra de consensos histórico-jurídicos para a proteção das liberdades como a garantia constitucional de presunção de inocência? Poucos Estados na contemporaneidade poderiam mostrar ao mundo como uma Corte mudou de orientação três vezes com relação a uma garantia própria de uma cláusula como a o devido processo legal, sendo que, no meio do debate hermenêutico, um candidato presidencial fortemente respaldado foi privado da liberdade, alterando-se todo o quadro de expectativas. Sobretudo, qual o impacto de tais decisões da Corte com as manifestações, na sequência, de um falso libertarianismo,[2] ancorado na transferência automática, no grito e na compulsividade, da capacidade de decidir por parte de uma massa abestelhada a um suposto mito? 

Vou me referir, finalmente, a um ponto para concluir parcialmente e por enquanto com a seguinte questão:  este ponto que me parece extremamente preocupante: pode conviver a democracia com atitudes do aparelho armado, militar e policial, que se aventura a colocar a ideia de “poder moderador” ou, ainda, mas recentemente, de desafiar nos fatos decisão do STF sobre operações no meio da pandemia?       

Muito embora a decisão do Min. Edson Fachin na ADPF 635, cujo efeito inicial foi importantíssimo porque houve uma redução do número de operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro e os dados o Geni (Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos da UFF) apontaram que as mortes em operações policiais caíram 72%, a verdade é que a polícia fluminense retomou as operações e numa entrevista coletiva, policiais literalmente afirmaram que o STF os impedia de trabalhar. [3] O próprio Ministério Público do RJ também declarou que as Polícias Civis e Militar não tem obrigação de comunicar toda operação que realizem.

A decisão do Ministro, referendada pela Corte em agosto de 2020 determina que:

“(i) que, sob pena de responsabilização civil e criminal, não se realizem operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a epidemia do COVID-19, salvo em hipóteses absolutamente excepcionais, que devem ser devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente, com a comunicação imediata ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro responsável pelo controle externo da atividade policial; e (ii) que, nos casos extraordinários de realização dessas operações durante a pandemia, sejam adotados cuidados excepcionais, devidamente identificados por escrito pela autoridade competente, para não colocar em risco ainda maior população, a prestação de serviços públicos sanitários e o desempenho de atividades de ajuda humanitária”.

Há quem reduza o tema da democracia aos limites estreitos da democracia representativa. Há que reduza o tema constitucional ao mero funcionamento regular do aparelho estatal. Efetivar a democracia é efetivar a Constituição e isso está bem além dessa visão precária. Esta coluna continua, por supuesto.       

 

Notas e Referências

[1] Albert Hirschman, A retórica da intransigência. São Paulo: Companhia das Letras. 2019. 

[2] Veja-se o excelente artigo de Sérgio Abranches. A senha para o golpe está dada. In Fola de São Paulo. 12;09.2021. Ilustrada. Ilustríssima. Pp. C4 e C5.

[3] Sobre o ponto veja-se o artigo de Maria Isabel Couto “Ação rápida do Supremo pode salvar vidas” In Folha de São Paulo.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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