Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
A consolidação dos processos de globalização ocorrida nas últimas décadas está intimamente relacionada ao desenvolvimento da desigualdade socioeconômica a nível mundial. O atual estágio de desenvolvimento capitalista, conhecido por sua relação com as novas tecnologias e a centralidade da informação, também é marcado pela manutenção e crescimento da desigualdade, entre nações, entre empresas e entre pessoas.
Seguindo sinalização de Pierre Bourdieu, “a globalização dos mercados financeiros somada ao progresso da tecnologia assegura uma mobilidade sem precedentes do capital” [1]. Nesse processo, a soberania nacional dos países e o poder do Estado nacional são reduzidos, muito em razão do nível de desenvolvimento do mercado global. Boaventura de Sousa Santos, por sua vez, prefere investigar o assunto sobre a denominação de “processos de globalização”, considerando se tratar de “fenômeno multifacetado com dimensões económicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo” [2].
Com efeito, atualmente presenciamos um contexto de transformação da lógica de atuação das empresas multinacionais. Nas últimas décadas, os processos de globalização implicavam na expansão de empresas multinacionais que dividiam suas zonas de produção pelo mundo, em regra, mantendo sua direção e altos cargos nos países centrais do capitalismo, na medida em que moviam para países da periferia a parcela de sua produção dotada de menor nível técnico.
Não obstante, nos últimos anos ocorreu uma escalada do setor de serviços na economia mundial. Esse setor adquiriu maior importância em vários países, tornando-se o principal setor empregatício no Brasil, por exemplo. O avanço tecnológico atuou nessa realidade potencializando esse movimento do capital internacional, posto que tornou possível (e rentável) a elaboração de plataformas deturpadas de “economia do compartilhamento”, a ponto de, recentemente, terem surgido termos como “uberização da economia” e “economia de bicos”.
A centralidade do setor de serviços na economia possui muitos desdobramentos, entre eles, o aumento da importância do consumo para a economia e a manutenção dos trabalhadores em níveis pouco especializados. Essa mudança na sociedade do trabalho e consumo acompanha um crescimento da desigualdade econômica mundial, que hoje atinge situação inédita.
No Brasil, as primeiras décadas do séc. XXI apresentaram um desenvolvimento econômico e social das classes menos favorecidas. Com efeito, o processo de desenvolvimento econômico posto em prática no país tinha como um de seus objetivos principais a redução da miséria e pobreza, o que foi realizado, principalmente, por meio de políticas de transferência de renda e de valorização do salário mínimo. Cabe destacar, ainda, que essas políticas foram direcionadas primordialmente para a parte mais pobre da população, uma vez que “o salário dos 10% mais pobres aumenta em relação ao salário médio ou mediano”[3], conforme sublinha a economista Laura Carvalho.
Nesse sentido, a lógica de desenvolvimento econômico aplicada durante esses anos no Brasil era fundamentada basicamente na exportação de commodities (como soja e petróleo) e na aposta da expansão do setor de consumos internamente. O desenvolvimento do consumo, por sua vez, ocasionou o aumento dos salários nos setores de baixa produtividade – geralmente aqueles em que os trabalhadores possuem menor formação técnica – uma vez que a demanda por trabalhadores menos qualificados cresceu.
A partir de 2016, no entanto, com a queda dos governos petistas e, consequentemente, a alteração das políticas de distribuição de renda, iniciou-se um novo ciclo de desenvolvimento da economia no país, infelizmente, não favorável para grande parte da população. A ausência de uma reforma tributária realmente progressiva capaz de elevar a carga tributária sobre as grandes fortunas, assim como a ausência de qualquer reforma estrutural capaz de reduzir a concentração de renda, favoreceu o retorno dos índices de miséria, pobreza e desemprego a níveis alarmantes.
Conforme dados da pesquisa PNAD Contínua do IBGE, houve uma perda na renda domiciliar advinda do trabalho nos últimos anos:
“A metade mais pobre do país viu sua renda diminuir 17,1%; a chamada classe média, que ocupa 40% do restante, teve perdas de 4,16%; e os 10% mais ricos viram sua renda crescer 2,55%. Levando em conta os 1% mais ricos, o aumento é ainda maior e o número chega a 10,11%” [4].
Demonstra-se, assim, que as políticas de redução da pobreza e miséria voltadas para a expansão do setor de serviços e do consumo possuíram efeitos passageiros, não sendo capazes de sustentar o avanço social por muito tempo ou de resistir à alteração de governos. Por outro lado, no que se refere ao desenvolvimento de novas formas de organização do trabalho e do consumo, é razoável supor que um novo ciclo está se consolidando, utilizando-se de plataformas altamente flexíveis e tecnológicas. A desigualdade socioeconômica tende a aumentar consideravelmente, uma vez que os prestadores de serviço são privados de qualquer proteção pelas leis trabalhistas, enquanto a população consumidora amplia-se na medida em que usa acriticamente as comodidades oferecidas pelos aplicativos smart.
O primeiro século do 2º milênio apresenta, já em seu início, amplas mudanças relacionadas ao modo como nos organizamos enquanto sociedade em torno do trabalho e consumo. A correlação entre sociedade do trabalho e sociedade do consumo já foi abordada nesta coluna anteriormente [1], assim como também já discorremos brevemente sobre o atual estado da exploração do trabalho na sociedade global [2]. Desta vez, abordaremos o tema inserindo na análise o aparato teórico desenvolvido por Guy Standing e o seu conceito de “precariado”.
Os estudos de Guy Standing sobre o precariado podem apresentar elementos importantes para compreender o atual panorama em torno da relação trabalho, trabalhadores e capital. Na obra “O Precariado: a nova classe perigosa”, Standing desenvolve com profundidade as características pelas quais o precariado é caracterizado. Já em seu prefácio[3], o autor aponta que tem por objetivo com a obra responder as seguintes questões:
Nele pretendo responder a cinco questões: O que é essa classe? Por que devemos nos preocupar com seu crescimento? Por que ela está crescendo? Quem está ingressando nela? Para onde o precariado está nos levando?
Podemos citar como exemplo de fatores histórico-sociais que cercam o precariado a perda de espaço do modelo fordista e a radical transformação em diversos campos do trabalho provocada pelas novas tecnologias. Não é exagero afirmar que está em curso uma reestruturação da relação entre trabalho, capital e Estado. Entretanto, não há ainda um desfecho tangível para esta remodelação.
Como resultado desse processo, no Brasil, hodiernamente, por exemplo, há enfraquecimento do poder político dos sindicatos e um enorme contingente de trabalhadores em situação precária. Para fins de ilustração, uma pesquisa realizada em 2017 pelo IBGE afirma que por volta de 33 milhões de brasileiros trabalhavam sob regime de CLT, enquanto outros 34 trabalhavam por conta própria ou sem carteira.
Com relação à prática crescente de informalização dos trabalhadores, ou ao menos, de flexibilização das relações de trabalho, Standing aponta o seguinte:
“Durante três décadas, a ideia de facilitar a demissão dos empregados foi defendida como uma maneira de estimular os empregos. Argumentava-se que isso tornaria potenciais empregadores mais inclinados a empregar trabalhadores, uma vez que seria menos custoso livrar-se deles. A fraca garantia de vínculo tem sido descrita pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), pelo Banco Mundial e por outras corporações como necessária para atrair e reter o capital estrangeiro”. [4]
Dessa forma, o surgimento de fenômenos como a chamada uberização e as empresas de economia compartilhada possuem uma relação intrínseca com o precariado. A uberização consiste num método de organização do trabalho no qual empresas dotadas de uma ferramenta tecnológica inovadora abreviam a distância entre consumidores e serviços prestados. Já a “economia compartilhada”, por sua vez, da qual a Uber é um símbolo, é também uma representante da novíssima razão do capitalismo.
Apesar de ter surgido como uma nova maneira de estruturar negócios empresariais, assim como para a prestação de serviços, o modelo enfrenta críticas por supostamente ter subvertido a lógica do compartilhamento no sentindo da geração de lucro concentrado por parte dos empresários. Conforme dados da própria empresa Uber, no Brasil há cerca de 500 mil motoristas parceiros. Trata-se, portanto, de um contingente de trabalhadores bastante expressivo, principalmente se considerarmos que há muitas outras empresas que se organizam desse modo.
Repensar as possibilidades de regulação jurídica de fenômenos como a uberização e as empresas de economia compartilhada é uma tarefa que se coloca no horizonte próximo para toda a sociedade, tanto pelo lado de quem consome quanto pelo lado de quem trabalha. O enorme contingente de “cidadãos-usuários-consumidores” e o exército de “trabalhadores-colaboradores-parceiros” têm um grande desafio pela frente. Uma saída é sinalizada na obra de Guy Standing: de modo preciso, o autor defende que somente uma “política de paraíso”, estimulada por todos os setores da sociedade, será capaz de prover maior qualidade de vida para os cidadãos do nosso tempo.
Notas e Referências
[1] BOURDIEU, Pierre. The Essence of Neoliberalism. In: Le Monde diplomatique, [s. I.], 05 dez. 1998. Disponível em: https://mondediplo.com/1998/12/08bourdieu. Acesso em: 10 jan. 2020.
[2] SANTOS, Boaventura de Souza. Os processos de globalização. In: SANTOS, Boaventura de Souza (org.). A globalização e as ciências sociais. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005.
[3] CARVALHO, Laura. Valsa Brasileira: Do boom ao caos econômico. São Paulo: Editora Todavia, 2018. P. 17.
[4] https://veja.abril.com.br/economia/desigualdade-social-no-pais-aumenta-pelo-17-trimestre-seguido-diz-fgv/ Acesso em: 10 jan. 2020.
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